terça-feira, 17 de outubro de 2023

Edgar Allan Poe - Contos: Uma Descida ao Maelstrom (01)

Edgar Allan Poe - Contos


Uma Descida ao Maelstrom
Título original: A Descent into the Maelstrom
Publicado em 1841


Tínhamos atingido o cume do rochedo mais elevado. O velho, durante alguns minutos, pareceu-me demasiado esgotado para falar.

— Não há ainda muito tempo — disse ele por fim — tê-lo-ia guiado por aqui tão bem como o mais novo dos meus filhos. Mas, há três anos, aconteceu-me a aventura mais extraordinária que jamais suportou um ser mortal, ou pelo menos tão extraordinária que homem algum pôde sobreviver a ela para a contar, e as seis horas desesperantes que passei despedaçaram-me o corpo e a alma. Julgam-me muito velho, mas não o sou. Bastou um quarto de dia para me embranquecer os cabelos negros, ao ponto de tremer depois do mais pequeno esforço e ficar amedrontado por uma sombra. Saiba que mal posso olhar de cima deste pequeno promontório sem sentir vertigens.

O pequeno promontório à beira do qual se deitara tão negligentemente para repousar, de maneira que a parte mais pesada do seu corpo se inclinava e não estava livre de cair senão pelo ponto de apoio que tinha graças ao cotovelo na aresta aguda e escorregadia — o promontório, elevava-se aproximadamente a mil e quinhentos ou mil e seiscentos pés de um caos de rochedos abaixo de nós, imenso precipício de granito luzidio e negro. Por nada do mundo me teria aventurado a seis pés da borda. Na verdade, eu estava tão profundamente agitado pela situação perigosa do meu companheiro que me deixei cair a todo o comprimento no solo, encostando-me a alguns arbustos que estavam perto, não ousando sequer levantar os olhos para o céu. Esforçava-me em vão por me desembaraçar da ideia de que o furor do vento punha em perigo a própria base da montanha. Foi-me preciso tempo para raciocinar e encontrar a coragem de me sentar no meu banco e perscrutar o espaço.

— Não há de que ter medo — disse-me o guia — porque o trouxe aqui para lhe fazer ver à vontade o local do acontecimento de que lhe falava há pouco e lhe contar toda a história com o próprio cenário à sua frente.

« Nós estamos agora — prosseguiu com essa maneira minuciosa que o caracterizava — estamos agora mesmo na costa da Noruega, a 68 graus de latitude, na grande província de Nortland e no lúgubre distrito de Lofoden. A montanha cujo cume ocupamos chama-se Helseggen, a Nebulosa. Agora, levante-se um pouco; agarre-se aos arbustos se sentir vir a vertigem — isso mesmo — e olhe para além desta cintura de vapores que esconde o mar a nossos pés.»

Olhei apressadamente e vi uma vasta extensão de mar cuja cor de tinta me recordou imediatamente o quadro do geógrafo núbio e o seu « Mar Tenebroso» . Era um panorama mais espantosamente desolador do que o que seria dado a uma imaginação humana conceber. A direita e à esquerda, tão longe quanto a vista podia alcançar, alongavam-se, como as muralhas do mundo, as linhas de uma falésia terrivelmente negra e escarpada, cujo caráter sombrio era poderosamente reforçado pela ressaca que subia até à crista branca e lúgubre, uivando e mugindo eternamente. Mesmo em frente do promontório, no cume do qual nós estávamos colocados, a uma distância de seis milhas no mar, avistava-se uma ilha que parecia deserta, ou antes, adivinhava-se no amontoado enorme de escolhos em que estava envolvida. A duas milhas aproximadamente mais perto da terra, erguia-se um ilhéu mais pequeno, horrivelmente pedregoso e estéril, rodeado por grupos descontínuos de rochas negras. 
O aspeto do oceano, na extensão compreendida entre a margem e a ilha mais afastada, tinha qualquer coisa de extraordinário. Nesse momento soprava do lado da terra uma brisa tão forte que um brigue, muito ao largo, estava à capa com as velas nos rizes e o seu casco desaparecia algumas vezes por completo. Contudo, nada havia que se assemelhasse a uma onda regular, mas somente, e a despeito do vento, a um marulhar de água, vivo e incómodo em todos os sentidos, e muito pouca espuma, exceto na vizinhança imediata dos rochedos.

— A ilha que vê lá em baixo — continuou o velho homem— é chamada pelos noruegueses Vurrgh. A que está a meio caminho é Moskoe. A que está a uma milha ao norte é Ambaaren. Lá em baixo são: Islesen, Hotholm, Keildhelm e Buckholm. Mais longe — entre Moskoe e Vurrgh — Otherholm, Flimen, Sandflesen e Stockholm. São estes os verdadeiros nomes destes lugares; mas não consigo compreender porque julguei necessário dizê-los a si. Ouve alguma coisa? Vê alguma mudança na água?

Nós estávamos já há cerca de dez minutos no cimo de Helseggen, onde subíramos a partir do interior de Lofoden, de forma que não podíamos avistar o mar, e eis que ele nos aparecera de repente do cume mais elevado. Enquanto o velho falava, tive a perceção de um ruído mais forte, que ia crescendo como o mugido de uma imensa manada de búfalos numa pradaria da América, e nesse mesmo momento vi o que os marinheiros chamam o caráter ondulante do mar tornar-se rapidamente numa corrente que se deslocava para leste. Enquanto eu olhava, esta corrente adquiriu uma prodigiosa rapidez. Aumentava de velocidade de um momento para o outro com uma impetuosidade incrível. Em cinco minutos todo o mar, até Vurrgh, foi fustigado por uma fúria indomável; mas era entre Moskoe e a costa que principalmente a borrasca dominava. Ali, o vasto leito das águas, sulcado por mil correntes contrárias, rebentava repentinamente em convulsões frenéticas, ofegando, borbulhando, assobiando, voltando-se em gigantescos e inumeráveis turbilhões, rodopiando e precipitando-se totalmente para leste, com uma rapidez que não se manifesta nem nas cataratas.
Passados alguns minutos, o panorama sofreu uma outra mudança radical. A superfície geral tornou-se um pouco mais uniforme, e os turbilhões desapareceram um a um, enquanto prodigiosas manchas de espuma apareceram onde eu não vira nenhuma até então. Depois estas manchas alongaram-se até uma grande distância e, combinando-se entre elas, adotaram o movimento giratório dos turbilhões acalmados e pareceram formar o gérmen de um vórtice mais vasto. De repente, muito de repente, este apareceu e tomou uma forma distinta e definida, num círculo de mais de uma milha de diâmetro. O extremo do turbilhão estava marcado por uma cintura de espuma luminosa, mas nem uma parcela deslizava para a garganta do terrível funil, cujo interior, tão longe quanto o olhar podia avistar, tinha uma parte líquida, lisa, brilhante e de um negro de azeviche, formando com o horizonte um ângulo de cerca de 45 graus, rodando sobre si próprio sob a influência de um movimento ensurdecedor e projetando para o ar uma voz medonha, meio grito, meio rugido, tal como nem as cataratas do Niágara nas suas convulsões jamais enviaram para os céus. 
A montanha tremia mesmo na base e o rochedo mexia-se. Deitei-me de bruços, e num excesso de agitação nervosa, encostei-me à relva rala. 

— Isto — disse-me por fim o velhote — não pode ser outra coisa senão o turbilhão do Maelstrom. Chamam-lhe algumas vezes assim, mas nós, os noruegueses, chamamos-lhe o Moskoe-Strom, por causa da ilha de Moskoe, que está situada a meio caminho.

As descrições vulgares deste turbilhão não me tinham de maneira alguma preparado para o que eu via. A de Jonas Ramus, que é talvez mais pormenorizada do que nenhuma outra, não dá a mais ligeira ideia da magnificência e do horror do quadro — nem a estranha e encantadora sensação de novidade que confunde o espectador. Eu não sei precisamente qual o ponto de vista, nem a que horas o viu o escritor em causa, mas não pôde ser nem do cume de Helseggen, nem durante uma tempestade. Há contudo algumas passagens da sua descrição que podem ser citadas pelos pormenores, se bem que sejam muito insuficientes para dar uma ideia do espetáculo.

« Entre Lofoden e Moskoe — diz ele — a profundidade da água é de trinta e seis a quarenta braças, mas do outro lado, do lado de Ver (quer dizer, Vurrgh), esta profundeza diminui a ponto de um navio não poder procurar aí uma passagem sem correr o perigo de se despedaçar sobre as rochas, o que pode acontecer com o tempo mais calmo. Quando vem a maré, a corrente lança-se no espaço compreendido entre Lofoden e Moskoe com uma tumultuosa rapidez, mas o rugido do seu terrível refluxo é apenas igualado com dificuldade pelas mais altas e terríveis cataratas. Ouve-se o barulho a várias léguas, e os turbilhões ou torrentes cavadas são de uma tal extensão e de uma tal profundidade que se um navio entrar na zona da sua atração é inevitavelmente absorvido e arrastado para o fundo, sendo ali feito em pedaços de encontro aos rochedos. E quando a corrente enfraquece, os destroços são trazidos à superfície. Mas estes intervalos de tranquilidade não surgem senão entre o refluxo e o fluxo, quando o tempo está calmo, e duram apenas um quarto de hora; depois a violência da corrente recomeça gradualmente. 

« Quando se agita ao máximo e quando a sua força é aumentada por uma tempestade, é perigoso aproximar-se mesmo a uma milha de distância. Barcaças, iates e navios são arrastados por se não acautelarem antes de se encontrarem ao alcance da sua esfera de atração. Acontece muito frequentemente que as baleias vêm demasiado perto da corrente e são dominadas pela sua violência; e é impossível descrever os seus uivos e rugidos perante a inutilidade dos esforços para se libertarem.

« Uma vez, um urso, ao tentar passar a nado o estreito entre Lofoden e Moskoe, foi arrastado pela corrente e levado para o fundo. Rugia tão horrorosamente que se ouvia na margem. Enormes troncos de pinheiros engolidos pela corrente reapareciam quebrados, despedaçados e a tal ponto que dir-se-ia que lhes tinham arrancado a casca. Isso demonstra claramente que o fundo é constituído por rochas pontiagudas sobre as quais eles rolaram. Esta corrente é regulada pelo fluxo e refluxo do mar, que se observa de seis em seis horas. No ano de 1645, no domingo da Sexagésima, muito cedo, pela manhã, precipitou-se o turbilhão com um tal estrondo e uma tal impetuosidade que pedras foram arrancadas às casas da encosta...»

No que se refere à profundidade da água, não compreendo como puderam avaliá-la na proximidade imediata do turbilhão. As quarenta braças devem referir-se somente nas partes do canal mais próximas da margem, quer de Moskoe, quer de Lofoden. A profundidade no centro do Moskoe-Strom deve ser incomensuravelmente maior, e basta, para adquirir a certeza, dar uma vista de olhos pelo abismo do turbilhão, quando se está no cume mais elevado de Helseggen. Ao relancear o olhar pelo cimo deste pico no Phlégéthon uivante, não pude deixar de sorrir da simplicidade com a qual o bom Jonas Ramus conta, como coisas difíceis de acreditar, as suas anedotas de ursos e de baleias, porque me parecia que era coisa evidente que o maior navio, se chegasse ao alcance desta mortal atração, devia resistir a ele tanto quanto uma pena a um sopro de vento e desaparecer imediatamente como por encanto.  


continua na página 365...
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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
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