quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (11.1) - No aturdimento dos últimos anos

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(11.1)


para jomí garcía ascot
e maría luisa elío

NO ATURDIMENTO DOS últimos anos, Úrsula dispusera de tréguas muito escassas para atender à formação papal de José Arcadio, quando ele teve que ser preparado às carreiras para ir para o seminário. Meme, sua irmã, dividida entre a rigidez de Fernanda e as amarguras de Amaranta, chegou quase ao mesmo tempo à idade prevista para mandá-la ao colégio de freiras onde fariam dela uma virtuose do clavicórdio. Úrsula se sentia atormentada por dúvidas graves em torno da eficácia dos métodos com que temperara o espírito do lânguido aprendiz de Sumo Pontífice e não jogava a culpa na sua tropeçante velhice nem nas nuvens que mal lhe permitiam vislumbrar o contorno das coisas e sim em alguma coisa que ela mesma não conseguia definir mas que imaginava confusamente como um progressivo desgaste do tempo. “Os anos de agora já não vêm como os de antigamente”, costumava dizer, sentindo que a realidade cotidiana lhe escapava das mãos. Antigamente, pensava, as crianças demoravam muito para crescer. Bastava recordar todo o tempo que fora necessário para que José Arcadio, o mais velho, partisse com os ciganos e tudo o que acontecera até que ele voltasse pintado como uma cobra e falando como um astrônomo, e as coisas que tinham acontecido em casa até que Amaranta e Arcadio esquecessem a língua dos índios e aprendessem o castelhano. Que se visse o sol e o sereno que suportara o pobre José Arcadio Buendía debaixo do castanheiro, e o quanto tivera que chorar a sua morte antes que lhe trouxessem moribundo um Coronel Aureliano Buendía que, depois de tanta guerra e depois de tanto se sofrer por ele, ainda não tinha feito cinquenta anos. Em outra época, depois de passar o dia inteiro fazendo animaizinhos de caramelo, ainda lhe sobrava tempo para se ocupar das crianças, para ver-lhes no branco dos olhos que estavam precisando de uma poção de óleo de rícino. Agora, pelo contrário, quando já não tinha nada que fazer e andava com José Arcadio pregado às saias de manhã à noite, a qualidade ruim do tempo obrigava-a a deixar as coisas pela metade. A verdade era que Úrsula resistia ao envelhecimento mesmo quando já tinha perdido a conta da sua idade e atrapalhava em todos os lugares e tentava se meter em tudo e aborrecia os forasteiros com a perguntação de se não tinham deixado ali em casa, no tempo da guerra, um São José de gesso para que o guardassem enquanto não passava a chuva. Ninguém soube com certeza quando começou a perder a vista. Mesmo nos seus últimos anos, quando já não podia se levantar da cama, parecia simplesmente que estava vencida pela decrepitude, mas ninguém descobriu que estava cega. Ela o percebera desde o nascimento de José Arcadio. A princípio, pensou que se tratava de uma debilidade transitória e tomava escondido xarope de tutano e botava mel de abelha nos olhos, mas muito brevemente foi se convencendo de que afundava sem salvação nas trevas, a ponto de nunca ter tido uma noção muito clara da invenção da luz elétrica, porque quando instalaram os primeiros focos só pôde perceber o brilho. Não disse nada a ninguém, pois teria sido um reconhecimento público da sua inutilidade. Empenhou-se numa calada aprendizagem da distância das coisas e das vozes das pessoas, para continuar vendo com a memória quando já não o permitissem as sombras da catarata. Mais tarde havia de descobrir o auxílio imprevisto dos cheiros, que se definiram nas trevas com uma força muito mais convincente do que os volumes e a cor e a salvaram definitivamente da vergonha de uma renúncia. Na escuridão do quarto, podia enfiar a linha na agulha e bordar uma casa, e sabia quando o leite estava para ferver. Conheceu com tanta certeza o lugar em que se encontrava cada coisa que ela mesma se esquecia às vezes de que estava cega. Certa ocasião, Fernanda pôs a casa em polvorosa porque tinha perdido a aliança e Úrsula a encontrou num consolo, no quarto das crianças. Simplesmente, enquanto os outros andavam descuidadamente por todos os lados, ela os vigiava com os seus quatro sentidos, para que nunca a pegassem de surpresa, e ao fim de algum tempo descobriu que cada membro da família repetia todos os dias, sem notar, os mesmos percursos, os mesmos atos, e que quase repetia as mesmas palavras às mesmas horas. Só quando saíam dessa meticulosa rotina é que corriam o risco de perder alguma coisa. De modo que quando viu Fernanda consternada porque havia perdido a aliança, Úrsula se lembrou de que a única coisa diferente que ela fizera naquele dia tinha sido arejar as esteiras das crianças, porque Meme tinha descoberto um percevejo na noite anterior. Como as crianças assistissem à limpeza, Úrsula pensou que Fernanda havia posto a aliança no único lugar onde elas não a poderiam alcançar: o consolo. Fernanda, pelo contrário, procurou-a unicamente nos trajetos do seu itinerário cotidiano, sem saber que a procura das coisas perdidas é dificultada pelos hábitos rotineiros e é por isso que dá tanto trabalho encontrá-las. A educação de José Arcadio ajudou a Úrsula na tarefa extenuante de se manter a par das mínimas mudanças em casa. Quando percebia que Amaranta estava vestindo os santos do quarto, fingia que ensinava ao menino as diferenças entre as cores. 

— Vamos ver — dizia a ele — me conte de que cor está vestido São Rafael Arcanjo.

Dessa forma, o menino lhe dava a informação que lhe negavam os olhos e muito antes que ele partisse para o seminário Úrsula já podia distinguir pela textura as diferentes cores da roupa dos santos. As vezes aconteciam acidentes imprevistos. Uma tarde, estava Amaranta bordando na varanda das begônias e Úrsula tropeçou nela. 

— Pelo amor de Deus — protestou Amaranta — veja por onde anda. 

— É você — disse Úrsula — quem está sentada onde não deve. 

Para ela, estava certo. Mas naquele dia começou a se dar conta de alguma coisa que ninguém havia descoberto e era que no transcurso do ano o sol ia mudando imperceptivelmente de posição e quem se sentava na varanda tinha que ir mudando de lugar pouco a pouco e sem o perceber. A partir de então, Úrsula tinha apenas que se lembrar da data para saber o lugar exato em que Amaranta estava sentada. Embora o tremor das mãos fosse cada vez mais perceptível e já não pudesse com o peso dos pés, nunca se vira a sua figura miudinha em tantos lugares ao mesmo tempo. Era quase tão diligente como quando arcava com toda a responsabilidade da casa. Entretanto, na impenetrável solidão da velhice, dispunha de tal clarividência para examinar mesmo os mais insignificantes acontecimentos da família que pela primeira vez viu com clareza as verdades que as suas ocupações de outros tempos lhe haviam impedido de ver. Na época em que preparavam José Arcadio para o seminário, já tinha feito uma recapitulação infinitesimal da vida da casa desde a fundação de Macondo e havia mudado completamente a opinião que tivera dos seus descendentes. Percebeu que o Coronel Aureliano Buendía não tinha perdido o afeto à família por causa do endurecimento da guerra, como ela acreditava antes, mas que nunca tinha amado ninguém, nem sequer a sua esposa Remedios ou as incontáveis mulheres de uma noite que haviam passado pela sua vida e muito menos ainda os seus filhos. Vislumbrou que não tinha feito tantas guerras por idealismo, como todo mundo pensava, nem tinha renunciado à vitória iminente por cansaço, como todo mundo pensava, mas que tinha ganho e perdido pelo mesmo motivo, por pura e pecaminosa soberba. Chegou à conclusão de que aquele filho por quem ela teria dado a vida era simplesmente um homem incapacitado para o amor. Uma noite, quando o tinha no ventre, ouviu-o chorar. Era um lamento tão definido que José Arcadio Buendía acordou do seu lado e se alegrou com a ideia de que a criança ia ser ventríloqua. Outras pessoas prognosticaram que seria adivinho. Ela, pelo contrário, estremeceu com a certeza de que aquele bramido profundo era um primeiro indício do temível rabo de porco e rogou a Deus que lhe deixasse morrer a criatura no ventre. Mas a lucidez da velhice lhe permitiu ver, e assim o repetiu muitas vezes, que o choro das crianças no ventre da mãe não é um anúncio de ventriloquia nem de faculdade adivinhatória, mas um sinal inequívoco de incapacidade para o amor. Aquela desvalorização da imagem do filho despertou-lhe de uma vez toda a compaixão que estava devendo a ele. Amaranta, pelo contrário, cuja dureza de coração a espantava, cuja concentrada amargura a amargava, foi revelada no último exame como a mulher mais terna que jamais pudesse haver existido e compreendeu com uma penosa clarividência que as injustas torturas a que submetera Pietro Crespi não eram ditadas por uma vontade de vingança, como todo mundo pensava, nem o lento martírio com que frustrara a vida do Coronel Gerineldo Márquez tinha sido determinado pelo fel ruim da sua amargura, como todo mundo pensava, mas sim que ambas as ações tinham sido uma luta de morte entre um amor sem medidas e uma covardia invencível, e triunfara finalmente o medo irracional que Amaranta sempre tivera do seu próprio e atormentado coração. Foi por essa época que Úrsula começou a se referir a Rebeca, a evocá-la com um velho carinho exaltado pelo arrependimento tardio e pela admiração repentina, tendo compreendido que somente ela, Rebeca, a que nunca se alimentara do seu leite e sim da terra e da cal das paredes, a que não levara nas veias o sangue do seu sangue e sim o sangue desconhecido de desconhecidos cujos ossos continuavam chocalhando na tumba, Rebeca, a do coração impaciente, a do ventre arrebatado, era a única que tinha tido a valentia sem freios que Úrsula desejara para a sua estirpe. 

— Rebeca — dizia, tateando as paredes — que injustos nós fomos com você!

Em casa, simplesmente acreditavam que tresvariava, sobretudo desde que dera para andar com o braço direito levantado, como o Arcanjo Gabriel. Fernanda se deu conta, entretanto, de que havia um sol de clarividência nas sombras desse desvario, pois Úrsula podia dizer sem titubear quanto dinheiro se havia gasto em casa durante o último ano. Amaranta teve uma ideia semelhante certo dia em que a mãe mexia na cozinha uma panela de sopa e disse de repente, sem saber que estava sendo ouvida, que o moinho de fubá que haviam comprado dos primeiros ciganos, e que havia desaparecido desde antes que José Arcadio desse sessenta e cinco vezes a volta ao mundo, ainda estava na casa de Pilar Ternera. Também quase centenária, mas sã e ágil apesar da inconcebível gordura que espantava as crianças como em outros tempos a sua risada espantava os pombos, Pilar Ternera não se surpreendeu com o acerto de Úrsula, porque a sua própria experiência começava a indicar que uma velhice alerta pode ser mais sagaz que as averiguações das cartas. 

Entretanto, quando Úrsula percebeu que o tempo não lhe havia chegado para consolidar a vocação de José Arcadio deixou-se aturdir pela consternação. Começou a cometer erros tentando ver com os olhos as coisas que a intuição lhe permitia ver com maior claridade. Certa manhã jogou na cabeça do menino o conteúdo de um tinteiro, pensando que era água-de-colônia. Ocasionou tantas dificuldades com a teimosia de intervir em tudo, que se sentiu transtornada por crises de mau humor, e tentava vencer as trevas que finalmente a estavam tolhendo como uma camisa de teias de aranha. Foi então que lhe ocorreu que a sua inabilidade não era a primeira vitória da decrepitude e da escuridão, mas uma falha do tempo. Pensava que antigamente, quando Deus não fazia com os meses e os anos as mesmas trapaças que faziam os turcos ao medir uma jarda de percal, as coisas eram diferentes. Agora não apenas as crianças cresciam mais depressa, mas até os sentimentos evoluíam de outro modo. Nem bem Remedios, a bela, subira ao céu de corpo e alma, já Fernanda, sem consideração, andava resmungando pelos cantos que ela levara os lençóis. Nem bem haviam esfriado os corpos dos Aurelianos nas tumbas e já Aureliano Segundo tinha outra vez a casa tomada, cheia de bêbados que tocavam acordeão e se encharcavam de champanha, como se não tivessem morrido cristãos e sim cachorros, e como se aquela casa de loucos, que tantas dores de cabeça e tantos animaizinhos de caramelo tinha custado, estivesse predestinada a se converter numa lixeira de perdição. Lembrando-se destas coisas enquanto aprontavam o baú de José Arcadio, Úrsula se perguntava se não era preferível se deitar logo de uma vez na sepultura e lhe jogarem a terra por cima, e perguntava a Deus, sem medo, se realmente acreditava que as pessoas eram feitas de ferro para suportar tantas penas e mortificações; e perguntando e perguntando ia atiçando a sua própria perturbação e sentia desejos irreprimíveis de se soltar e não ter papas na língua como um forasteiro e de se permitir afinal um instante de rebeldia, o instante tantas vezes desejado e tantas vezes adiado, para cortar a resignação pela raiz e cagar de uma vez para tudo e tirar do coração os infinitos montes de palavrões que tivera que engolir durante um século inteiro de conformismo. 

— Porra! — gritou.

Amaranta, que começava a colocar a roupa no baú, pensou que ela tinha sido picada por um escorpião. 

— Onde está? — perguntou alarmada.

— O quê? 

— O animal! — esclareceu Amaranta. 

Úrsula pôs o dedo no coração. 

— Aqui — disse. 

continua página 157...
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