terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - Waterloo / IV — A

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Primeiro — Waterloo

IV — A

     Quem quiser fazer uma ideia clara da batalha de Waterloo, não tem mais do que imaginar um A maiúsculo deitado no chão. A perna esquerda do A é a estrada de Nivelles, a direita é a de Genappe e a corda do A, o carreiro Ohain a Braine-l’Alleud. O cimo do A é o Mont-Saint-Jean, onde está Wellington; a extremidade inferior do lado esquerdo, Hougomont, onde está Reille com Jerónimo Bonaparte; a outra extremidade inferior é a Belle Alliance, onde está Napoleão. Um pouco abaixo do ponto em que a corda do A encontra e corta a perna direita, fica a Haie-Sainte. No meio dessa corda é o ponto onde se disse a palavra final da batalha e onde se colocou o leão, símbolo involuntário do supremo heroísmo da guarda imperial. 
     O triângulo compreendido entre o cimo, as duas pernas e a corda do A é a planura do Mont-Saint-Jean em cuja disputa consistiu toda a batalha. 
     As alas dos dois exércitos estendem-se à direita e à esquerda das duas estradas de Genappe e de Nivelles, fazendo Erlon frente a Picton e Reille a Hill.
     Por trás da extremidade superior do A, isto é, por trás da planura do Mont-Saint-Jean, fica a floresta de Soignes. 
     Quanto à planície em si, represente-se uma vastidão de terreno ondulante, cujas eminências se vão imediatamente sucedendo umas às outras, dominando esta aquela e esta a seguinte. As ondulações vão subindo para o Mont-Saint-Jean, até terminar na floresta.
     Dois exércitos inimigos num campo de batalha são dois lutadores. É uma luta a braço; cada qual procura deitar a terra o seu adversário, agarrando-se àquilo que encontra; uma sarça é um ponto de apoio; um recanto de uma parede, um encosto; escorrega um regimento por falta de uma casinhola a que se encostar; um rebaixe na planície, uma pouca de terra movida, um carreiro transversal em ensejo oportuno, um bosque, um barranco, podem embaraçar o calcanhar desse colosso chamado exército, impedindo-o de recuar. O que sair do campo fica vencido. Daí a necessidade que tem o chefe responsável de examinar a mais pequena moita de árvores, de aprofundar o menor relevo.
     Os dois generais Ɵnham estudado com toda a atenção a planura do Mont-SaintJean, chamada hoje planície de Waterloo. Wellington examinara-a no ano precedente, com previdente sagacidade, como local onde tinha de dar-se uma grande batalha. 
     Nesse dia de 18 de Junho, estava de melhor lado, para o duelo em que se ia empenhar com Napoleão. O exército inglês ficava de cima e o exército francês de baixo.
     Esboçar aqui o aspecto de Napoleão a cavalo, de óculo em punho, na eminência de Rosomme, na madrugada do dia 18 de Junho de 1815, seria uma coisa quase supérflua. Todos o viram, antes de nós o mostrarmos. Esse perfil sereno, coberto com o pequeno chapéu da escola de Brienne, esse uniforme verde, com o sobrepeito branco a esconder o crachá, o sobretudo a esconder as dragonas, a volta do cordão vermelho no colete, os calções de pele, o cavalo branco com o seu jaez de veludo cor de púrpura, tendo nos cantos NN coroados e águias; botas à escudeira sobre meias de seda, as esporas de prata, a espada de Marengo, toda essa figura do último César, aclamada por uns, encarada com olhar severo por outros, têm-na todos presente à imaginação.
     Esta figura permaneceu por muito tempo na luz, livre de certa obscuridade de lenda que se forma em volta da maior parte dos heróis, velando sempre por mais ou menos tempo a verdade; hoje, porém, faz-se o dia e a história. 
     O fulgor desta é impiedoso; tem isto de estranho e divino: que, apesar de ser luz, e exatamente porque o é, espalha sombra muitas vezes, onde só se viam raios, do mesmo homem faz dois fantasmas diferentes; um ataca o outro, as trevas do déspota lutam com o resplendor do capitão, mas ela faz justiça a ambos. Daí uma medida mais exata para a definitiva apreciação dos povos. Babilónia, violada, diminui Alexandre; Roma, manietada, diminui César; a morte de Jerusalém diminui Tito. A tirania segue o tirano. Desgraçado do homem que deixa após si uma sombra escura com a sua forma.

continua na página 243...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.

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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - IV — A
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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira

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