Victor Hugo - Os Miseráveis
Segunda Parte - Cosette
Livro Primeiro — Waterloo
IV — A
O triângulo compreendido entre o cimo, as duas pernas e a corda do A é a planura do
Mont-Saint-Jean em cuja disputa consistiu toda a batalha.
As alas dos dois exércitos estendem-se à direita e à esquerda das duas estradas de
Genappe e de Nivelles, fazendo Erlon frente a Picton e Reille a Hill.
Por trás da extremidade superior do A, isto é, por trás da planura do Mont-Saint-Jean,
fica a floresta de Soignes.
Quanto à planície em si, represente-se uma vastidão de terreno ondulante, cujas
eminências se vão imediatamente sucedendo umas às outras, dominando esta aquela e
esta a seguinte. As ondulações vão subindo para o Mont-Saint-Jean, até terminar na
floresta.
Dois exércitos inimigos num campo de batalha são dois lutadores. É uma luta a braço;
cada qual procura deitar a terra o seu adversário, agarrando-se àquilo que encontra;
uma sarça é um ponto de apoio; um recanto de uma parede, um encosto; escorrega um
regimento por falta de uma casinhola a que se encostar; um rebaixe na planície, uma
pouca de terra movida, um carreiro transversal em ensejo oportuno, um bosque, um
barranco, podem embaraçar o calcanhar desse colosso chamado exército, impedindo-o
de recuar. O que sair do campo fica vencido. Daí a necessidade que tem o chefe
responsável de examinar a mais pequena moita de árvores, de aprofundar o menor
relevo.
Os dois generais Ɵnham estudado com toda a atenção a planura do Mont-SaintJean,
chamada hoje planície de Waterloo. Wellington examinara-a no ano precedente, com
previdente sagacidade, como local onde tinha de dar-se uma grande batalha.
Nesse dia de 18 de Junho, estava de melhor lado, para o duelo em que se ia
empenhar com Napoleão. O exército inglês ficava de cima e o exército francês de baixo.
Esboçar aqui o aspecto de Napoleão a cavalo, de óculo em punho, na eminência de
Rosomme, na madrugada do dia 18 de Junho de 1815, seria uma coisa quase supérflua.
Todos o viram, antes de nós o mostrarmos. Esse perfil sereno, coberto com o pequeno
chapéu da escola de Brienne, esse uniforme verde, com o sobrepeito branco a esconder
o crachá, o sobretudo a esconder as dragonas, a volta do cordão vermelho no colete, os
calções de pele, o cavalo branco com o seu jaez de veludo cor de púrpura, tendo nos
cantos NN coroados e águias; botas à escudeira sobre meias de seda, as esporas de
prata, a espada de Marengo, toda essa figura do último César, aclamada por uns,
encarada com olhar severo por outros, têm-na todos presente à imaginação.
Esta figura permaneceu por muito tempo na luz, livre de certa obscuridade de lenda
que se forma em volta da maior parte dos heróis, velando sempre por mais ou menos
tempo a verdade; hoje, porém, faz-se o dia e a história.
O fulgor desta é impiedoso; tem isto de estranho e divino: que, apesar de ser luz, e
exatamente porque o é, espalha sombra muitas vezes, onde só se viam raios, do mesmo
homem faz dois fantasmas diferentes; um ataca o outro, as trevas do déspota lutam com
o resplendor do capitão, mas ela faz justiça a ambos. Daí uma medida mais exata para a
definitiva apreciação dos povos. Babilónia, violada, diminui Alexandre; Roma,
manietada, diminui César; a morte de Jerusalém diminui Tito. A tirania segue o tirano.
Desgraçado do homem que deixa após si uma sombra escura com a sua forma.
continua na página 243...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - IV — A
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
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