O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Segunda Parte
4.
Percorreram as mesmas peças que o príncipe já atravessara ao entrar; Rogójin ia um pouco adiante e o príncipe o seguia. Chegaram a um salão de cujas paredes pendiam vários quadros com retratos de bispos e paisagens tão confusas que pareciam borrões de cor. Por sobre a esquadria de uma porta que dava para a sala seguinte se inclinava ligeiramente um quadro de formato um tanto esquisito, como que achatado, pois se tinha uns dois archines de comprimento não chegava a ter de altura mais do que seis verchóki. Representava o Nosso Salvador, depois da descida da Cruz. O príncipe parou a olhá-lo, com ar de estar refletindo; mas prosseguiu fazendo menção de transpor a porta. É que se sentia tão oprimido que tinha pressa em sair daquela casa o mais rapidamente possível. Mas Rogójin o deteve, estacando inesperadamente a olhar para o quadro.
- Este e
os outros, imagine que meu pai os comprou por alguns rublos em um leilão.
Gostava de quadros. Levou um “entendido” para dar a opinião. “São rebotalho”,
disse o tal, “mas este aqui vale a pena carregar”. Referia-se a este quadro ali em
cima. Custou dois rublos. Quando meu pai ainda era vivo esteve aqui um homem
que se prontificou a dar trezentos e cinquenta rublos por ele. E na semana
passada um negociante, o Savéliev, falando com meu irmão Semión
Semiónovitch, chegou a oferecer quinhentos rublos.
- É uma cópia de uma tela
de Holbein - disse o príncipe, pondo-se a examinar o quadro.
- Não entendo muito de arte, mas me parece uma boa cópia. Vi o original no
estrangeiro, de forma que reconheci logo.
Rogójin esqueceu logo o quadro e
prosseguiu. Só mesmo a irritação que nele se evidenciou inesperadamente na
atitude preocupada podia explicar essa alteração abrupta. O príncipe achou
esquisito que a conversa a respeito do quadro, não tendo sido iniciada por ele e
sim por Rogójin, fosse por este deixada em suspenso.
Mas, depois de dar alguns passos, Parfión se saiu com esta:
- E por falar nisso,
Liév Nikoláievitch, há muito tempo que estou para lhe perguntar se acredita em
Deus.
O príncipe não pôde deixar de retorquir:
- Por que me faz assim de chofre uma pergunta dessas, olhando para mim
desta forma tão esquisita?
- É que às vezes fico a olhar para aquele quadro - declarou Rogójin, depois de
uma pausa, parecendo não ter ouvido as palavras do príncipe.
- Eu acho -
observou o príncipe como a desvendar um pensamento que lhe adviera do
assunto do quadro - quer que lhe fale com franqueza?... Esse quadro... esse
quadro só serve para fazer muita gente perder a fé.
- Nem mais nem menos! -
afirmou logo Rogójin.
Estavam justamente na porta principal, que dava para as
escadas.
- Como? - E o príncipe até parou. - Que disse você? Falei isto por
brincadeira. Está você falando sério? Acha mesmo? E qual o motivo por que
deseja saber se acredito em Deus?
- Oh! Por nada! Já lhe devia ter feito esta pergunta antes. Hoje em dia existe
muita gente que não acredita. Como o senhor viveu no estrangeiro... Uma vez um
homem me declarou, é verdade que estava bêbado, que há mais quem não
acredite, aqui na Rússia, do que nos outros países. E explicou assim: “É mais fácil
para nós do que para eles porque estamos muito mais adiantados!”
E Rogójin
sorriu com ironia. Sem esperar pela resposta abriu a folha da porta e ficou
segurando pela maçaneta dando tempo para que o príncipe passasse. Embora
surpreendido, o príncipe saiu. Rogójin transpôs o patamar, fechando a porta atrás
de si. Ficaram então assim parados um diante do outro, como se não soubessem o
que decidir.
- Então, adeus - disse o príncipe, estendendo-lhe a mão.
- Até à vista - respondeu
Rogójin apertando a mão que lhe era estendida, mas o fazendo de um modo
quase distraído.
O príncipe desceu um degrau e se voltou.
- Quanto à questão de fé - começou sorrindo (evidentemente não queria se
despedir sem um remate e parecia estar entregue a qualquer recordação
analógica) - quanto à questão de fé, tive na semana passada, em dois dias
seguidos, quatro conversas diferentes. Voltava eu para casa pela estrada de ferro
recentemente inaugurada e, durante quatro horas, conversei com um homem, no
vagão. Fizéramos camaradagem, ali mesmo. Já me haviam falado muito sobre
ele, antes. Que era ateu, entre muitas outras coisas mais. Efetivamente se tratava
de um homem culto, desde logo fiquei radiante com o ensejo de manter uma
conversa com uma pessoa verdadeiramente instruída. Além disso, conforme
depois fui verificando, era um indivíduo de uma educação fora do comum, tanto
que se entreteve comigo como se eu fosse
pessoa de igual valor e com as mesmas ideias dele. Realmente, ele não
acreditava em Deus. Mas uma coisa me impressionou sobremaneira: que não
tivesse querido, todo aquele tempo, tratar eloquentemente do assunto. E me
impressionou justamente porque eu já muitas vezes encontrara descrentes e os
tinha ouvido ou lhes havia lido os livros e esses me pareceram bem diferentes
deste outro, embora o nível fosse mais ou menos o mesmo. Aproveitei então para
lhe observar isso; mas acho que não me expliquei bem, ou o fiz confusamente,
pois não me compreendeu. Desci, à noitinha, em um hotel provincial onde, na
noite anterior, tinha sido cometido um crime. E todo o mundo falava sobre o
caso. Dois camponeses, de meia-idade, amigos desde muito tempo, inteiramente
abstêmios, tendo tomado apenas chá, resolveram ocupar o mesmo quarto. Mas
um deles reparou, naqueles dias, que o companheiro estava usando um relógio de
prata preso a uma corrente de miçangas amarelas. E antes não o tinha nunca
visto com aquilo. O homem não era gatuno, pelo contrário, era um homem
honesto, tinha posses, como lavrador, não era absolutamente necessitado. Mas
aquele relógio o impressionou; e tão fascinado acabou ficando que, por fim, não
pôde se dominar. Tomou de um punhal e quando o outro se virou para se ir, ele se
aproximou cautelosamente por detrás, mediu bem o golpe, revirou os olhos para
o céu, benzeu-se e fez mentalmente esta prece: “Que Deus me perdoe, por amor
de Cristo!” E cortou a garganta, do amigo, de um golpe só, tomando-lhe, depois,
o relógio.
Rogójin emendou várias gargalhadas, como se estivesse com um acesso. E vê-lo
dar essas gargalhadas, a ele que antes estivera tão soturno, era positivamente
estranho.
- Gostei disso! Sim, isso derruba tudo! - exclamou convulsivamente, custando a
retomar o fôlego.
- O seu primeiro homem não acredita em Deus, absolutamente, ao passo que o
segundo acredita nele de modo tão categórico que até reza enquanto pratica um
assassinato! O senhor não teria capacidade para inventar uma coisa destas,
irmão! Ah! Ah! Ah! Isto derruba tudo!
- Na manhã seguinte, saí para andar pela
cidade - Continuou o príncipe, assim que Rogójin ficou quieto embora com os
lábios ainda repuxados pelo esgar espasmódico da gargalhada.
- E vi um soldado embriagado, em um estado horroroso de desordem, a
cambalear da parede para o meio-fio. Coseu-se a mim ... me compre uma cruz
de prata, barine! Cedo-lha por duas grivnas! É prata maciça.” - Essa cruz que eu
estava vendo na mão dele, ele a devera ter furtado. Sacudia-a enfiada em uma
fita azul encardida. Qualquer um veria que era de estanho. Era graúda, tinha oito
pontas, típico modelo bizantino. Tirei vinte copeques, dei-lhos e imediatamente
pus a cruz no pescoço. E pude ver na cara dele quanto ficou alegre por ter
enganado um estúpido barine. Sumiu logo; decerto foi beber com o que tinha
arranjado pela cruz. Naquela ocasião eu estava estupefato com as impressões
violentas que a Rússia me causava! Antes eu não conhecia nada a respeito da
Rússia. Eu crescera como que desarticulado e as recordações do meu país, de
um certo modo, me eram fantásticas, durante aqueles cinco anos no estrangeiro.
Ora, continuei a caminhar, pensando em tais coisas. “Sim, deixarei de julgar este
homem que vendeu o seu Cristo. Só Deus sabe o que está oculto no coração fraco
de um bêbado”. Uma hora depois, quando regressava ao hotel, passei por uma
mulher do povo que tinha uma criança fraquinha ao colo. Era uma mulher
bastante moça, e a criança não teria mais do que umas seis semanas. Nisto - e
decerto era a primeira vez em toda a sua vidinha! - a criança lhe sorriu. Vi-a
benzer-se com grande devoção. Por esse tempo eu tinha mania de fazer
perguntas até na rua, ao acaso. - Que estás fazendo, criatura?” Então, tornando a
fazer o sinal-da-cruz, com a mesma devoção, a mãe respondeu-me: “Deus, no
Céu, cada vez que vê um pecador o invocar, com todo o coração, tem a mesma
alegria que uma mãe quando vê o primeiro sorriso no rostinho do filho”. Foi com
estas palavras mais ou menos que aquela camponesa me transmitiu este
pensamento sutil, profundo e verdadeiramente religioso. Pensamento em que
toda a essência da Cristandade encontra a sua expressão. Sim, a concepção de
Deus é esta. Ele é nosso Pai é nosso Deus e se compraz nos homens como um pai
se compraz em seu filho. A ideia fundamental de Cristo! Uma simples mulher do
povo. É verdade que se tratava de uma mãe.., e quem sabe até se essa mulher
não era a esposa daquele soldado? Escute, Parfión. Você me fez aquela pergunta.
ainda agora. Está aqui a minha resposta: a essência do sentimento religioso não se
esboroa sob espécie alguma de raciocínio, ou de ateísmo, e não tem nada de ver
com crimes ou delinquências quaisquer. Há alguma coisa mais, além disso. E
sempre haverá alguma coisa sobre a qual os ateus arremetem e se esboroam. E
sempre se falará dela. E o principal é que essa coisa será notada mais
claramente, e de modo mais rápido, no coração russo, do que em qualquer outro.
Esta é a minha conclusão. E é uma das principais convicções a que já cheguei,
na Rússia. Há muita coisa que fazer. Parfión! Há muita coisa que fazer neste
nosso mundo russo, acredite-me. Recorde-se de como foi que nos
encontramos em Moscou e conversamos, certa ocasião... e nunca me passou
pela cabeça, que, voltando, agora, encontrasse você pela forma por que
encontrei. Absolutamente. Está bem... Adeus, até que nos encontremos de novo.
Deus esteja com você!
Virou-se e desceu as escadas.
- Liév Nikoláievitch! - gritou Parfión, lá de cima, quando o príncipe já estava no
andar de baixo.
- Ainda tem aquela cruz que comprou do soldado?
- Tenho!
E o príncipe parou.
- Mostre.
“Mais outra das tais coisas estranhas”, pensou o príncipe. E, em um instante,
subiu de novo e puxou a cruz sem a tirar do pescoço.
- Dê-me.
- Para quê? Você... (O príncipe não desejava separar-se da cruz.)
- Quero usá-la.
E lhe darei a minha.
- Você está querendo trocar as cruzes? Está bem, Parfión. Com muito gosto.
Ficaremos sendo irmãos.
O príncipe tirou a sua cruz de estanho; e Parfión a sua, de ouro. E trocaram;
Parfión não disse nada.
Com dolorosa surpresa o príncipe reparou que o mesmo sorriso amargo, irônico
e desconfiado continuava estampado nas faces do novo irmão adotivo. E que,
como nos outros momentos, isso estava visível, de um modo amplo. Então, ainda
calado, Rogójin tomou a mão do príncipe e ficou hesitando, um pouco, sem
tomar resolução alguma. Por fim puxou-o, dizendo:
- Venha comigo.
Atravessaram o patamar do primeiro andar e Rogójin tocou a campainha da
outra porta fronteira. Abriu-a uma velha, toda arcada, que usava um lenço preto
dobrado sobre as cãs e que se inclinou profundamente, diante de Rogójin, sem
articular palavra. Este lhe perguntou, às pressas, qualquer coisa, e foi entrando,
sem esperar resposta, guiando o príncipe através das salas. Outra vez
atravessaram cômodos escuros, de um asseio extraordinário, mas álgidos e
severos, mobiliados com peças antiquadas que cobertas claras escondiam. Sem
se fazer anunciar, Rogójin conduziu o príncipe para o interior de um aposento
pequeno, espécie de saleta de visitas que uma parede de mogno envernizado
dividia, com portas em cada extremidade, uma delas dando para um dormitório,
naturalmente.
Em um canto da saleta, perto da lareira, uma velhinha estava sentada em
uma poltrona. Nem por isso parecia tão idosa. Tinha um rosto redondo,
aparentando boa saúde, mas estava bastante grisalha e, logo à primeira vista, se
percebia que se tornara quase infantil. Vestia um vestido de lã preta, tinha um
grande xalemanta passado pelos ombros, e, na cabeça, uma touca branca, muito
limpa, com fitas pretas que desciam ao pescoço, onde se atavam. Os pés
descansavam sobre um escabelo. Uma outra velhota, muito asseada, um pouco
mais idosa, lhe fazia companhia. Também estava de luto e, como a outra, usava
um toucado. Estava calada, tecendo uma meia, e era assim uma espécie de
companheira. Ambas davam a impressão de estar sempre caladas. A primeira
velha, vendo o filho com o príncipe, sorriu-lhes, sacudindo a cabeça várias vezes,
o que era uma maneira de mostrar satisfação.
- Mãe - disse Rogójin, beijando-lhe a mão - este é o meu grande amigo, o Príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin.
Trocamos agora mesmo as nossas cruzes. Já uma vez, em Moscou, foi um
verdadeiro irmão para comigo. Fez muita coisa por mim. Abençoe-o, mãe,
como se estivesse dando a bênção a um filho seu. Assim, não, minha velhinha!
Deixe-me arranjar direito os dedos da senhora.
Mas antes que Parfión
conseguisse pegar-lhe nos dedos, já ela erguia a mão direita, com dois dedos
dobrados sob o polegar, e três vezes, com devoção, fez o sinal-da-cruz sobre o
príncipe. Depois ficou a acenar com a cabeça, bondosamente, significando
afeição, outra vez.
- Vamos, Liév Nikoláievitch. Eu o trouxe aqui somente para
isso - explicou Rogójin. E quando chegaram, de novo, à escadaria, acrescentou: -
Sabe? Ela não compreende nada do que a gente lhe diz! E, portanto, não
compreendeu uma só palavra do que falei; mas o abençoou. Evidentemente, fez
isso lá por sua própria vontade. Bem, agora, adeus. É hora do senhor ir indo. E eu
também.
Abriu a porta.
- Deixe-me ao menos abraçá-lo, ao nos separarmos, estranho camarada! -
exclamou o príncipe, olhando-o com um ar de amável censura.
E ia abraçá-lo;
mas Rogójin, que também tinha aberto os braços, logo os deixou cair, outra vez.
Faltou-lhe coragem. Voltou-se, para não olhar o príncipe, não querendo o abraço.
Mas, repentinamente, murmurou, depois de uma estranha risada:
- Está com
medo? Embora tenhamos trocado de cruzes, não o assassinarei, por causa do seu
relógio.
E todo o seu rosto se alterou. Ficou terrivelmente pálido, com os lábios a
tremer, os olhos quase sinistros. Mas acabou abraçando o príncipe,
ardorosamente. E disse, depois, quase sem fôlego:
- Bem, tome-a então, já que assim está destinado. Ela é sua! Dou-a... Lembre-se de Rogójin!
Dando-lhe as costas, depois, para não vê-lo mais, entrou apressadamente,
batendo com a porta.
continua página 199...
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