segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (4) - Percorreram as mesmas peças

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

4.

     Percorreram as mesmas peças que o príncipe já atravessara ao entrar; Rogójin ia um pouco adiante e o príncipe o seguia. Chegaram a um salão de cujas paredes pendiam vários quadros com retratos de bispos e paisagens tão confusas que pareciam borrões de cor. Por sobre a esquadria de uma porta que dava para a sala seguinte se inclinava ligeiramente um quadro de formato um tanto esquisito, como que achatado, pois se tinha uns dois archines de comprimento não chegava a ter de altura mais do que seis verchóki. Representava o Nosso Salvador, depois da descida da Cruz. O príncipe parou a olhá-lo, com ar de estar refletindo; mas prosseguiu fazendo menção de transpor a porta. É que se sentia tão oprimido que tinha pressa em sair daquela casa o mais rapidamente possível. Mas Rogójin o deteve, estacando inesperadamente a olhar para o quadro. 

- Este e os outros, imagine que meu pai os comprou por alguns rublos em um leilão. Gostava de quadros. Levou um “entendido” para dar a opinião. “São rebotalho”, disse o tal, “mas este aqui vale a pena carregar”. Referia-se a este quadro ali em cima. Custou dois rublos. Quando meu pai ainda era vivo esteve aqui um homem que se prontificou a dar trezentos e cinquenta rublos por ele. E na semana passada um negociante, o Savéliev, falando com meu irmão Semión Semiónovitch, chegou a oferecer quinhentos rublos.
- É uma cópia de uma tela de Holbein - disse o príncipe, pondo-se a examinar o quadro. 
- Não entendo muito de arte, mas me parece uma boa cópia. Vi o original no estrangeiro, de forma que reconheci logo.

     Rogójin esqueceu logo o quadro e prosseguiu. Só mesmo a irritação que nele se evidenciou inesperadamente na atitude preocupada podia explicar essa alteração abrupta. O príncipe achou esquisito que a conversa a respeito do quadro, não tendo sido iniciada por ele e sim por Rogójin, fosse por este deixada em suspenso.
     Mas, depois de dar alguns passos, Parfión se saiu com esta:

- E por falar nisso, Liév Nikoláievitch, há muito tempo que estou para lhe perguntar se acredita em Deus.

     O príncipe não pôde deixar de retorquir: 

- Por que me faz assim de chofre uma pergunta dessas, olhando para mim desta forma tão esquisita?
- É que às vezes fico a olhar para aquele quadro - declarou Rogójin, depois de uma pausa, parecendo não ter ouvido as palavras do príncipe. 
- Eu acho - observou o príncipe como a desvendar um pensamento que lhe adviera do assunto do quadro - quer que lhe fale com franqueza?... Esse quadro... esse quadro só serve para fazer muita gente perder a fé.
- Nem mais nem menos! - afirmou logo Rogójin.

     Estavam justamente na porta principal, que dava para as escadas.

- Como? - E o príncipe até parou. - Que disse você? Falei isto por brincadeira. Está você falando sério? Acha mesmo? E qual o motivo por que deseja saber se acredito em Deus?
- Oh! Por nada! Já lhe devia ter feito esta pergunta antes. Hoje em dia existe muita gente que não acredita. Como o senhor viveu no estrangeiro... Uma vez um homem me declarou, é verdade que estava bêbado, que há mais quem não acredite, aqui na Rússia, do que nos outros países. E explicou assim: “É mais fácil para nós do que para eles porque estamos muito mais adiantados!”

     E Rogójin sorriu com ironia. Sem esperar pela resposta abriu a folha da porta e ficou segurando pela maçaneta dando tempo para que o príncipe passasse. Embora surpreendido, o príncipe saiu. Rogójin transpôs o patamar, fechando a porta atrás de si. Ficaram então assim parados um diante do outro, como se não soubessem o que decidir. 

- Então, adeus - disse o príncipe, estendendo-lhe a mão.
- Até à vista - respondeu Rogójin apertando a mão que lhe era estendida, mas o fazendo de um modo quase distraído.

     O príncipe desceu um degrau e se voltou.

- Quanto à questão de fé - começou sorrindo (evidentemente não queria se despedir sem um remate e parecia estar entregue a qualquer recordação analógica) - quanto à questão de fé, tive na semana passada, em dois dias seguidos, quatro conversas diferentes. Voltava eu para casa pela estrada de ferro recentemente inaugurada e, durante quatro horas, conversei com um homem, no vagão. Fizéramos camaradagem, ali mesmo. Já me haviam falado muito sobre ele, antes. Que era ateu, entre muitas outras coisas mais. Efetivamente se tratava de um homem culto, desde logo fiquei radiante com o ensejo de manter uma conversa com uma pessoa verdadeiramente instruída. Além disso, conforme depois fui verificando, era um indivíduo de uma educação fora do comum, tanto que se entreteve comigo como se eu fosse pessoa de igual valor e com as mesmas ideias dele. Realmente, ele não acreditava em Deus. Mas uma coisa me impressionou sobremaneira: que não tivesse querido, todo aquele tempo, tratar eloquentemente do assunto. E me impressionou justamente porque eu já muitas vezes encontrara descrentes e os tinha ouvido ou lhes havia lido os livros e esses me pareceram bem diferentes deste outro, embora o nível fosse mais ou menos o mesmo. Aproveitei então para lhe observar isso; mas acho que não me expliquei bem, ou o fiz confusamente, pois não me compreendeu. Desci, à noitinha, em um hotel provincial onde, na noite anterior, tinha sido cometido um crime. E todo o mundo falava sobre o caso. Dois camponeses, de meia-idade, amigos desde muito tempo, inteiramente abstêmios, tendo tomado apenas chá, resolveram ocupar o mesmo quarto. Mas um deles reparou, naqueles dias, que o companheiro estava usando um relógio de prata preso a uma corrente de miçangas amarelas. E antes não o tinha nunca visto com aquilo. O homem não era gatuno, pelo contrário, era um homem honesto, tinha posses, como lavrador, não era absolutamente necessitado. Mas aquele relógio o impressionou; e tão fascinado acabou ficando que, por fim, não pôde se dominar. Tomou de um punhal e quando o outro se virou para se ir, ele se aproximou cautelosamente por detrás, mediu bem o golpe, revirou os olhos para o céu, benzeu-se e fez mentalmente esta prece: “Que Deus me perdoe, por amor de Cristo!” E cortou a garganta, do amigo, de um golpe só, tomando-lhe, depois, o relógio. 

     Rogójin emendou várias gargalhadas, como se estivesse com um acesso. E vê-lo dar essas gargalhadas, a ele que antes estivera tão soturno, era positivamente estranho.

- Gostei disso! Sim, isso derruba tudo! - exclamou convulsivamente, custando a retomar o fôlego. - O seu primeiro homem não acredita em Deus, absolutamente, ao passo que o segundo acredita nele de modo tão categórico que até reza enquanto pratica um assassinato! O senhor não teria capacidade para inventar uma coisa destas, irmão! Ah! Ah! Ah! Isto derruba tudo!
- Na manhã seguinte, saí para andar pela cidade - Continuou o príncipe, assim que Rogójin ficou quieto embora com os lábios ainda repuxados pelo esgar espasmódico da gargalhada. - E vi um soldado embriagado, em um estado horroroso de desordem, a cambalear da parede para o meio-fio. Coseu-se a mim ... me compre uma cruz de prata, barine! Cedo-lha por duas grivnas! É prata maciça.” - Essa cruz que eu estava vendo na mão dele, ele a devera ter furtado. Sacudia-a enfiada em uma fita azul encardida. Qualquer um veria que era de estanho. Era graúda, tinha oito pontas, típico modelo bizantino. Tirei vinte copeques, dei-lhos e imediatamente pus a cruz no pescoço. E pude ver na cara dele quanto ficou alegre por ter enganado um estúpido barine. Sumiu logo; decerto foi beber com o que tinha arranjado pela cruz. Naquela ocasião eu estava estupefato com as impressões violentas que a Rússia me causava! Antes eu não conhecia nada a respeito da Rússia. Eu crescera como que desarticulado e as recordações do meu país, de um certo modo, me eram fantásticas, durante aqueles cinco anos no estrangeiro. Ora, continuei a caminhar, pensando em tais coisas. “Sim, deixarei de julgar este homem que vendeu o seu Cristo. Só Deus sabe o que está oculto no coração fraco de um bêbado”. Uma hora depois, quando regressava ao hotel, passei por uma mulher do povo que tinha uma criança fraquinha ao colo. Era uma mulher bastante moça, e a criança não teria mais do que umas seis semanas. Nisto - e decerto era a primeira vez em toda a sua vidinha! - a criança lhe sorriu. Vi-a benzer-se com grande devoção. Por esse tempo eu tinha mania de fazer perguntas até na rua, ao acaso. - Que estás fazendo, criatura?” Então, tornando a fazer o sinal-da-cruz, com a mesma devoção, a mãe respondeu-me: “Deus, no Céu, cada vez que vê um pecador o invocar, com todo o coração, tem a mesma alegria que uma mãe quando vê o primeiro sorriso no rostinho do filho”. Foi com estas palavras mais ou menos que aquela camponesa me transmitiu este pensamento sutil, profundo e verdadeiramente religioso. Pensamento em que toda a essência da Cristandade encontra a sua expressão. Sim, a concepção de Deus é esta. Ele é nosso Pai é nosso Deus e se compraz nos homens como um pai se compraz em seu filho. A ideia fundamental de Cristo! Uma simples mulher do povo. É verdade que se tratava de uma mãe.., e quem sabe até se essa mulher não era a esposa daquele soldado? Escute, Parfión. Você me fez aquela pergunta. ainda agora. Está aqui a minha resposta: a essência do sentimento religioso não se esboroa sob espécie alguma de raciocínio, ou de ateísmo, e não tem nada de ver com crimes ou delinquências quaisquer. Há alguma coisa mais, além disso. E sempre haverá alguma coisa sobre a qual os ateus arremetem e se esboroam. E sempre se falará dela. E o principal é que essa coisa será notada mais claramente, e de modo mais rápido, no coração russo, do que em qualquer outro. Esta é a minha conclusão. E é uma das principais convicções a que já cheguei, na Rússia. Há muita coisa que fazer. Parfión! Há muita coisa que fazer neste nosso mundo russo, acredite-me. Recorde-se de como foi que nos encontramos em Moscou e conversamos, certa ocasião... e nunca me passou pela cabeça, que, voltando, agora, encontrasse você pela forma por que encontrei. Absolutamente. Está bem... Adeus, até que nos encontremos de novo. Deus esteja com você!

     Virou-se e desceu as escadas.

- Liév Nikoláievitch! - gritou Parfión, lá de cima, quando o príncipe já estava no andar de baixo. - Ainda tem aquela cruz que comprou do soldado?
- Tenho!

     E o príncipe parou.

- Mostre.
“Mais outra das tais coisas estranhas”, pensou o príncipe. E, em um instante, subiu de novo e puxou a cruz sem a tirar do pescoço.
- Dê-me. 
- Para quê? Você... (O príncipe não desejava separar-se da cruz.)
- Quero usá-la. E lhe darei a minha.
- Você está querendo trocar as cruzes? Está bem, Parfión. Com muito gosto. Ficaremos sendo irmãos.

     O príncipe tirou a sua cruz de estanho; e Parfión a sua, de ouro. E trocaram; Parfión não disse nada. Com dolorosa surpresa o príncipe reparou que o mesmo sorriso amargo, irônico e desconfiado continuava estampado nas faces do novo irmão adotivo. E que, como nos outros momentos, isso estava visível, de um modo amplo. Então, ainda calado, Rogójin tomou a mão do príncipe e ficou hesitando, um pouco, sem tomar resolução alguma. Por fim puxou-o, dizendo:

- Venha comigo.

     Atravessaram o patamar do primeiro andar e Rogójin tocou a campainha da outra porta fronteira. Abriu-a uma velha, toda arcada, que usava um lenço preto dobrado sobre as cãs e que se inclinou profundamente, diante de Rogójin, sem articular palavra. Este lhe perguntou, às pressas, qualquer coisa, e foi entrando, sem esperar resposta, guiando o príncipe através das salas. Outra vez atravessaram cômodos escuros, de um asseio extraordinário, mas álgidos e severos, mobiliados com peças antiquadas que cobertas claras escondiam. Sem se fazer anunciar, Rogójin conduziu o príncipe para o interior de um aposento pequeno, espécie de saleta de visitas que uma parede de mogno envernizado dividia, com portas em cada extremidade, uma delas dando para um dormitório, naturalmente. Em um canto da saleta, perto da lareira, uma velhinha estava sentada em uma poltrona. Nem por isso parecia tão idosa. Tinha um rosto redondo, aparentando boa saúde, mas estava bastante grisalha e, logo à primeira vista, se percebia que se tornara quase infantil. Vestia um vestido de lã preta, tinha um grande xalemanta passado pelos ombros, e, na cabeça, uma touca branca, muito limpa, com fitas pretas que desciam ao pescoço, onde se atavam. Os pés descansavam sobre um escabelo. Uma outra velhota, muito asseada, um pouco mais idosa, lhe fazia companhia. Também estava de luto e, como a outra, usava um toucado. Estava calada, tecendo uma meia, e era assim uma espécie de companheira. Ambas davam a impressão de estar sempre caladas. A primeira velha, vendo o filho com o príncipe, sorriu-lhes, sacudindo a cabeça várias vezes, o que era uma maneira de mostrar satisfação.

- Mãe - disse Rogójin, beijando-lhe a mão - este é o meu grande amigo, o Príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin. Trocamos agora mesmo as nossas cruzes. Já uma vez, em Moscou, foi um verdadeiro irmão para comigo. Fez muita coisa por mim. Abençoe-o, mãe, como se estivesse dando a bênção a um filho seu. Assim, não, minha velhinha! Deixe-me arranjar direito os dedos da senhora. 

     Mas antes que Parfión conseguisse pegar-lhe nos dedos, já ela erguia a mão direita, com dois dedos dobrados sob o polegar, e três vezes, com devoção, fez o sinal-da-cruz sobre o príncipe. Depois ficou a acenar com a cabeça, bondosamente, significando afeição, outra vez.

- Vamos, Liév Nikoláievitch. Eu o trouxe aqui somente para isso - explicou Rogójin. E quando chegaram, de novo, à escadaria, acrescentou: - Sabe? Ela não compreende nada do que a gente lhe diz! E, portanto, não compreendeu uma só palavra do que falei; mas o abençoou. Evidentemente, fez isso lá por sua própria vontade. Bem, agora, adeus. É hora do senhor ir indo. E eu também.

     Abriu a porta.

- Deixe-me ao menos abraçá-lo, ao nos separarmos, estranho camarada! - exclamou o príncipe, olhando-o com um ar de amável censura. 

     E ia abraçá-lo; mas Rogójin, que também tinha aberto os braços, logo os deixou cair, outra vez. Faltou-lhe coragem. Voltou-se, para não olhar o príncipe, não querendo o abraço. Mas, repentinamente, murmurou, depois de uma estranha risada:

- Está com medo? Embora tenhamos trocado de cruzes, não o assassinarei, por causa do seu relógio.

     E todo o seu rosto se alterou. Ficou terrivelmente pálido, com os lábios a tremer, os olhos quase sinistros. Mas acabou abraçando o príncipe, ardorosamente. E disse, depois, quase sem fôlego: 

 
- Bem, tome-a então, já que assim está destinado. Ela é sua! Dou-a... Lembre-se de Rogójin!

     Dando-lhe as costas, depois, para não vê-lo mais, entrou apressadamente, batendo com a porta.

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