domingo, 12 de janeiro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - Waterloo / III — O 18 de Julho de 1815

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Primeiro — Waterloo

III — O 18 de Julho de 1815

     Retrocedamos, que é esse um dos direitos do narrador, e imaginemo-nos no ano de 1815, alguma coisa antes da época em que principia a ação contada na primeira parte deste livro.
     Se na noite de 17 para 18 de Junho de 1815 não tivesse chovido, o futuro da Europa teria sido diferente. Algumas gotas de água de mais ou de menos deitaram Napoleão a perder. Para Waterloo ser o complemento de Austerlitz, bastou à Providência alguma chuva; uma nuvem que passou pelo céu em contrário do que era de esperar naquela estação, foi o suficiente para o desabamento de um mundo.
     A batalha de Waterloo não pôde principiar senão às onze horas e meia, o que deu tempo de chegar Blucher. Porquê? Porque a terra estava molhada.
     Foi necessário que o solo enxugasse um tanto para que a artilharia pudesse manobrar.
     Napoleão era oficial de artilharia, o que facilmente dava a conhecer. Todos os seus planos de batalha são baseados no projeto: Fazer convergir a artilharia sobre um ponto dado era a chave da vitória. Tratava a estratégia do general inimigo como uma cidadela e bata até fazer-lhe brecha. Oprimia o ponto fraco com a metralha; atava e desatava as batalhas com a artilharia. No seu grande génio havia o que quer que fosse de tiro. Esmagar os quadrados, pulverizar os regimentos, romper as linhas, triturar e dispersar as massas, era tudo para ele; bater, bater, bater sem cessar; missão de que encarregava a bala.
     Método temível, o qual junto ao génio, tornou invencível pelo espaço de quinze anos, o sombrio atleta do pugilato da guerra. 
     No dia 18 de Junho de 1815 contava ele tanto mais com a artilharia, quando era superior o número pela sua parte. Wellington não tinha senão cento e cinquenta e nove bocas de fogo; Napoleão dispunha de duzentas e quarenta. 
     Suponha-se o solo enxuto, deixando rodar a artilharia, e a ação começada às seis horas da manhã. A batalha estava ganha e terminada às duas, três horas antes da peripécia prussiana!
     Que quantidade de culpa tem Napoleão na perda desta batalha? O naufrágio é acaso imputável no piloto? 
     O evidente declínio físico de Napoleão agravava-se acaso nesta época com uma certa diminuição inferior?
     Tinham os vinte anos de guerra gasto tanto a lâmina como a bainha, tanto a alma como o corpo? Porventura o cansaço do veterano se fez sentir no capitão? Numa palavra: esse gênio, como muitos historiadores de consideração o julgaram, eclipsava-se? Tornava-se frenético para ocultar a si mesmo o seu enfraquecimento? Começava a oscilar sobre o desvairamento dum sopro de aventura? Tornara-se ele, coisa grave num general, inconsciente do perigo? Na classe de grandes homens materiais a que se pode chamar gigantes da ação, há porventura uma idade para a miopia do génio? A velhice não influi no génio do ideal; para os Dantes e Migueis Ângelos envelhecer é engrandecerem-se; para os Aníbais e Bonapartes será decrescer? Teria Napoleão perdido o sentido direto da vitória? Teria chegado ao estado de não reconhecer o escolho, de não adivinhar o laço, de não pressentir a beira escorregadia dos abismos? Faltar-lhe-ia o faro das catástrofes? Ele que dantes conhecia todos os caminhos do triunfo, e que do alto do seu carro coruscante os indicava com gesto soberano, teria então o sinistro atordoamento de conduzir aos precipícios as suas tumultuosas parelhas de legiões? 
     Teria sido atacado, aos quarenta e seis anos, de uma loucura suprema? Aquele cocheiro titânico do destino, já não seria mais do que um grandioso quebra-costas? 
     Não o supomos.
     O seu plano de batalha, segundo todos confessam, era uma obra-prima. Ir direito ao centro da linha aliada, fazer uma abertura no inimigo, dividi-lo em dois, impelir a metade britânica sobre Hal e a prussiana sobre Tongres, fazer de Wellington e de Blucher dois troços; tomar o Mont-Saint-Jean, apoderar-se de Bruxelas, lançar o alemão no Reno e o inglês no mar. Napoleão tinha tudo isto nesta batalha. Depois ver-se-ia. 
     Convém dizer que não pretendemos desenvolver aqui a história de Waterloo; uma das cenas principais do drama que contamos tem ligação com esta batalha, mas a sua história não é o nosso assunto; e depois, é uma história que já se encontra feita, e feita magistralmente, num sentido por Napoleão, e noutro por muitos historiadores (Walter Scott, Lamartine, Vaulabelle, Charras, Guinet, Thiers.). 
     Quanto a nós, deixamos os historiadores e que se avenham; nós não somos mais do que uma testemunha em distância, um caminhante que passa pela planície, um investigador inclinado sobre essa terra amassada com carne humana, tomando talvez as aparências como realidades; não temos direito de resistir, em nome da ciência, a um conjunto de fatos, em que há decerto miragem, não temos a prática militar nem a competência estratégica que autorizam um sistema, segundo a nossa opinião, os dois capitães foram dominados em Waterloo por um encadeamento de acasos; e quando se trata do destino, misterioso acusado, julgamos como o povo, juiz simples e ingênuo.

continua na página 243...
______________

Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.

_________________________


Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - III — O 18 de Julho de 1815
_______________________

Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira

Nenhum comentário:

Postar um comentário