quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - Waterloo / XV — Cambronne

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Primeiro — Waterloo

XV Cambronne
     
     Ao leitor francês que quer ser respeitado não pode ser repetida a frase mais bela que talvez tenham pronunciado lábios franceses. É proibir o sublime ao historiador; nós, porém, infringimos a proibição, apesar de todos os riscos e perigos que possamos correr. 
     Entre aqueles gigantes, houve um titã, que foi Cambronne. 
     O que pode haver de mais grandioso do que pronunciar essa palavra e em seguida morrer! Porque é morrer empregar todos os esforços para o conseguir; porque esse homem não é culpado de ter sobrevivido, a despeito da metralha.
     O homem que ganhou a batalha de Waterloo, não foi Napoleão, derrotado; não foi Wellington, recuando às quatro horas, e sem esperança às cinco; não foi Blucher, que não combateu: o homem que ganhou a batalha de Waterloo foi Cambronne. 
     Fulminar com tal palavra o trovão que nos aniquila, é vencer. 
     Respondendo de semelhante modo à catástrofe, falar assim ao destino, dar aquela base ao leão futuro, arremessar aquela réplica à chuva da noite precedente, ao muro traidor de Hougomont, à azinhaga de Ohain, à demora de Gruchy e à chegada de Blucher, ser a ironia do sepulcro, fazer com que ficasse de pé depois de tudo ter caído, afogar em duas sílabas a coalizão europeia, oferecer aos reis as sentinas já conhecidas dos Césares, fazer da última a primeira das páginas juntando-lhes o relâmpago da França, terminar insolentemente Waterloo com o carnaval, completar Leónidas com Rebelais, resumir esta vitória numa palavra suprema, impossível de se pronunciar, perder o terreno e salvar a história, depois da carnificina ter por si os que riem, é imenso.
     É o insulto ao raio. Este facto atinge a grandeza esquiliana. 
     A palavra de Cambronne produz o efeito de uma fratura. É o arrombamento de um peito pelo desprezo; é a explosão da superabundância do sofrimento. Quem venceu? Foi Wellington? Não. Sem Blucher estava perdido. Foi Blucher? Não. Se Wellington não tivesse começado, Blucher não teria podido acabar. Esse Cambronne, esse transeunte da última hora, esse soldado ignorado, essa insignificância da guerra, conhece a mentira que há numa catástrofe, pungente redobro de dor; e no momento em que estala de raiva, oferecem-lhe o escárnio, a vida! Como deixaria de estoirar!
     Estão ali todos os reis da Europa, os generais felizes; os Júpiteres tonantes contam cem mil soldados vitoriosos, e por trás dos cem mil mais um milhão; as suas peças estão escancaradas e com os morrões acesos, têm debaixo dos pés a guarda imperial e o grande exército, acabam de aniquilar Napoleão, e não resta senão Cambronne; não há para protestar senão este pequeno verme. Mas o verme protestará. Para isto, procurou uma palavra como se procurasse uma espada. Sobrevém-lhe espuma e essa espuma é a palavra procurada. 
     Em presença da vitória sem vitoriosos, aquele desesperado ergue-se; sofre-lhe o peso enorme, mas regista-lhe a nulidade; faz mais do que escarrar-lhe em cima; e, sob a opressão do número, da força e da matéria, encontra na alma uma expressão, o excremento. Repetimo-lo, dizer, fazer, achar uma tal coisa, é ser vencedor. O espirito dos grandes dias entrou no homem desconhecido naquele fatal momento. Cambronne achou a expressão de Waterloo como Rouget de L’Isle achou a Marselhesa, pela visita de sopro que vem de cima.
     Um eflúvio da tempestade divina destaca-se e vem passar atrás destes homens, fá-los estremecer, um entoa o cântico supremo, o outro solta o grito, terrível. Essa palavra de desprezo titânico não a lança Cambronne somente à Europa em nome do império, seria pouco; lança-a ao passado em nome da revolução. Ouve-se e reconhece-se em Cambronne a velha alma dos gigantes. Parece que é Danton falando, ou Kléber rugindo. 
     A palavra de Cambronne respondeu a voz inglesa: Fogo!
     As baterias flamejaram, a colina estremeceu, de todas aquelas bocas de bronze saiu um último e espantoso vómito de metralha; densa nuvem de fumo um pouco esbranquiçado pelos primeiros raios da Lua, toldou o espaço, e quando se dissipou não havia mais nada. Os temíveis restos tinham sido aniquilados, a guarda estava morta As quatro paredes do reduto vivo jaziam por terra, apenas se distinguia num ou noutro ponto, algum estremecimento entre os cadáveres. 
     Foi assim que as legiões francesas, mais grandiosas do que as romanas, expiraram em Mont-Saint-Jean, no solo ensopado em água e sangue, no meio das sombrias searas de trigo, no lugar em que hoje passa, às quatro horas da manhã, assobiando e fustigando alegremente o seu cavalo, o condutor José, que faz o serviço da mala-posta de Nivelles.

continua na página 266...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - XV — Cambronne
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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