baitasar
estou nas memórias do meu pai menino, as memórias do vô Mitô são histórias de amorosidade com a humanidade, as lembranças ingênuas de um menino encantado com a pureza da vida, as lembranças daquele arroio não o deixam, ah aqueles meninos pelados jogando-se nas suas águas
voltamos sessenta e seis anos... ou mais...
estou de volta
as marés das chuvas crescendo as águas no entorno da minha cidade, São Francisco de Assis ou São Chico, apelido carinhoso e resumido na cidade, esse lembramento aviva minhas carnes, os cabelos brancos escurecem, as pernas cansadas ficam robustas, me aproximo mais e mais destas memórias, um caminho de lembranças conservadas em bom estado, em cada fio do meu cabelo pálido de leite que reluz reencontro personagens de um outro tempo, uma outra vida, uma meninice que fez o molde do que me tornei
minhas carnes ficam com doze anos, o fôlego me volta de uma só vez, os olhos do menino estão atentos e vigilantes, esbugalhos de contentamento, tenho mais que a nostalgia poderia me trazer, possuo a memória do vivido com aqueles guris, aventuras em esconderijos, correndo pelo mato, plantando arroz, o arroio chegando com suas curvas sinuosas
precisava voltar
achei quase tudo no lugar, a nossa casinha humilde com seu telhado de telhas em canoa, a porta, janelas, as mexeriqueiras sumiram e as terras se dividiram ocupadas por muitas outras casas
mas a praça e os bugios ainda andam por lá, viraram atrações da cidade onde os matos se acabam, resta a praça com seus macaqueadores, os visitantes vêm para alimentá-los e se fotografarem juntos, fico de longe, observo ao meu redor
cada dia era um convite à aventura, o canto dos pássaros, o cheiro do mato, o sol entrando entre as mexeriqueiras, traçando suas linhas entre as folhas caídas no chão de terra, uma natureza de apetites e segredos, o negrinho do pastoreio, o boitatá, o saci-pererê e tantas outras histórias saídas da boca da vó Nena
ao entardecer, quando o sol mergulhava atrás da mata, minhas memórias se misturavam com a paleta dourada das folhas flutuando até o chão, a cada nova cor que surgia uma nova história contada pela vó Nena se misturava às aventuras que sonhava sentado embaixo das mexeriqueiras com suas folhas verdes e frutos amadurecendo, as palavras partiam sussurradas ao vento
a vida me parecia fácil de entender
não tenho precisão de fotos, tenho a vida vivida e conservo as lembranças, escuto os chamados dos meninos, Milton! Vamos jogar bola na beirada?!
olho para vó Nena e pergunto, Vó Nena, posso ir?
estremeço quando recordo sua voz, Vai, mas cuida a hora do sol mais fraco, Tem pão quentinho quando eu voltar?
ela sorria e respondia, Vai ter sim, bem quentinho.
e lá se iam os guris de São Chico na direção do arroio Inhacundá
a pelada se jogava com bola de costuras por fora, não parecia que doía chutar, o guri que eu fui crescia entre os amigos enquanto minha mãe irmãos e irmã se foram à capital mudar de vida, deixaram a absoluta calmaria pela agitação das charretes e fordes bigodes, o burburinho civilizatório, o mau cheiro das chaminés
talvez essas lembranças não tenham sido bem assim, algum esquecimento ou alguma invenção, mas... e daí, é como lembro e gosto de lembrar que foi, e se lembro assim, é assim mesmo que foi
depois da pelada, batia aquela vontade danada de pular nas águas do Inhacundá, voltar para casa de banho tomado, mas o que fazer dos calções para não ficarem molhados, era uma pergunta desnecessária
todos se olhavam e lá se iam eles pernas abaixo, corríamos pelados até a barranca e pulávamos um após o outro, feito pedras de dominó enfileiradas, minhas lembranças continuam naqueles voos até suas águas límpidas de cor marrom, cheirando a mato
cheirávamos à vida
sinto que estou flutuando da barranca, as pernas encolhidas, gritos de alegria, olhos arregalados, a satisfação dos braços e mãos estendidas, voltei a ser aquele guri que havia guardado em alguma gaveta do tempo, deixado de lado meio a contragosto
as obrigações surgiram, as brincadeiras pouco a pouco foram substituídas por responsabilidades, no entanto, as lembranças daqueles dias, seus contentamentos e surpresas, continuam vivendo em mim
não consigo deixar de sorrir ao lembrar as memórias de um dia quente e claro de doer as vistas, fecho os olhos e retorno à barranca, olho através da janela do coração
naquela tarde quente e ensolarada, nadávamos pelados até a ilha e tornávamos a saltar nas águas, de repente, Silêncio, O que foi, Psiu, Ouçam, Não tô escutando, As gurias estão rio acima, Vamos espiar.
e lá fomos nós espiar as meninas se banhando em suas roupas de manga e pernas compridas, passos silenciosos, a respiração trancada, o coração tremendo, até que um pé qualquer pisava em um graveto que se partia, o estalo de um tiro, gritos de surpresa, todos se olhavam e fugíamos nas correrias, elas e nós, voltávamos para buscar calções e vestir as pernas
os risos e o juramento de jamais comentar nada, é a primeira vez que quebro esse juramento
lembro dos dias de chuva dentro do rancho
o céu vestido de nuvens pesadas e cinzas, as poças de água no quintal, meu nariz encostado no vidro da janela embaçada, as águas escorrendo enquanto me perdia em devaneios, esperando mensagens de um mundo distante, a capital
lembrava dos dias ensolarados, as tardes jogando bola, a barranca, fechava os olhos e me permitia olhar para outros lugares, recostava a cabeça na mão e me deixava ficar com saudades esperando pelo sol
não sei se o rumo dos sonhos viaja no tempo e chega na terra dos lugares distantes para mudar as lembranças, apenas atravesso a rua, percorro sem agonias esse passado e seus lugares antes que o estalar dos dedos se faça ouvir, caminho com as mãos nos bolsos, vestindo minha camisa amarela, a mesma que a Elci lembra de me ver pela primeira vez, meus passos deliberadamente lentos, tenho a pele avermelhada mergulhada na luz devastadora do sol radiante, a vasta cabeleira negra cedeu lugar ao cabelo encanecido pelo tempo, cortado baixinho, digo que estou ainda inteiramente ingênuo e sou por inteiro aquele menino
paro e tomo fôlego, ouço as vozes daqueles guris, preces ocultas
ninguém percebe meu espanto e alegria, é o eco daqueles dias que me retorna, sou aquelas memórias que só existem em mim, sou a janela de um portal de aventuras sem fim, pronto para novas aventuras, as portas do desconhecido se abrindo diante de mim
fui feito em muitos anos, lutei em muitos moinhos e sonhos, andei entre devaneios de guri feito homem sozinho, esses pedaços da memória que me pertencem fazem de mim um homem de carne e osso
tenho oitenta e quatro, e sei... sempre terei doze, aquele guri do Inhacundá chegou até aqui e pretende ir mais longe
nada é tão simples do que viver, meus filhos
hoje, sou um narrador intrometido nos próprios jeitos de lembrar, sinto saudade da escola que não fui, fugia para jogar bola e mergulhar no rio, sinto a ausência das letras que deixei pelo caminho sem decifrá-las, fiz um mundo diferente para mim, tenho meus grandes heróis, brilhantes e universais, quero reunir todos enquanto dormem e são felizes
me chega o sonho no sono invadindo os lugares mais retirados do meu corpo, minha consciência vai me abandonando, quase adormeço do mesmo modo que digo que devem descansar, confiantes, sem medo do escuro, pois, no final, sempre venceremos a escuridão
continuo conduzindo as histórias, gostosas lembranças daquele guri, eu sou quem existe no andamento dos compassos recolhidos dentro da memória
intacto
descobri o tempo de dizer o que decifrei do tempo que também sou, aquele que passou, este que está aqui e que irá existir em suas lembranças de mim
eu sou o guri que nunca deixei de ser
no mundo real dos sonhos estou apenas usando minha memória, lembrando o que desejo sonhar de novo, coisas que podem ser acontecidas ou não
sigo vivendo em vocês se abraçando, meus filhos, meu abraço mais forte, desses que acontecem de vez em quando neste mundo, tenham uma vida de muitos sabores
Hiiiipppp!
meus filhos, estou flutuando da barranca, as pernas encolhidas, os gritos de contentamento, os olhos arregalados de alegria, os braços estendidos junto com minhas mãos e dedos, meus cabelos nevados se arrepiam, envelheceram, mas minhas memórias pulam ansiosas, gritam alegres, a magia do encantamento é um mundo aberto sem porteiras
fecho os olhos e abraço meu pai, o doutor entra e o examina, olha para mim e diz, Ele se foi.
o tempo se passou rápido desde a partida do último menino pelado que se tenha notícia, passa para todos, já não sirvo o mate em cuia pequena, permaneci naquele quarto por muitos anos depois que ele se foi, até perceber que foi uma benção estar junto naquele momento tranquilo, sussurrando e escutando segredos
esse nosso pai e suas histórias que vão continuar
ela sorria e respondia, Vai ter sim, bem quentinho.
e lá se iam os guris de São Chico na direção do arroio Inhacundá
a pelada se jogava com bola de costuras por fora, não parecia que doía chutar, o guri que eu fui crescia entre os amigos enquanto minha mãe irmãos e irmã se foram à capital mudar de vida, deixaram a absoluta calmaria pela agitação das charretes e fordes bigodes, o burburinho civilizatório, o mau cheiro das chaminés
talvez essas lembranças não tenham sido bem assim, algum esquecimento ou alguma invenção, mas... e daí, é como lembro e gosto de lembrar que foi, e se lembro assim, é assim mesmo que foi
depois da pelada, batia aquela vontade danada de pular nas águas do Inhacundá, voltar para casa de banho tomado, mas o que fazer dos calções para não ficarem molhados, era uma pergunta desnecessária
todos se olhavam e lá se iam eles pernas abaixo, corríamos pelados até a barranca e pulávamos um após o outro, feito pedras de dominó enfileiradas, minhas lembranças continuam naqueles voos até suas águas límpidas de cor marrom, cheirando a mato
cheirávamos à vida
sinto que estou flutuando da barranca, as pernas encolhidas, gritos de alegria, olhos arregalados, a satisfação dos braços e mãos estendidas, voltei a ser aquele guri que havia guardado em alguma gaveta do tempo, deixado de lado meio a contragosto
as obrigações surgiram, as brincadeiras pouco a pouco foram substituídas por responsabilidades, no entanto, as lembranças daqueles dias, seus contentamentos e surpresas, continuam vivendo em mim
não consigo deixar de sorrir ao lembrar as memórias de um dia quente e claro de doer as vistas, fecho os olhos e retorno à barranca, olho através da janela do coração
naquela tarde quente e ensolarada, nadávamos pelados até a ilha e tornávamos a saltar nas águas, de repente, Silêncio, O que foi, Psiu, Ouçam, Não tô escutando, As gurias estão rio acima, Vamos espiar.
e lá fomos nós espiar as meninas se banhando em suas roupas de manga e pernas compridas, passos silenciosos, a respiração trancada, o coração tremendo, até que um pé qualquer pisava em um graveto que se partia, o estalo de um tiro, gritos de surpresa, todos se olhavam e fugíamos nas correrias, elas e nós, voltávamos para buscar calções e vestir as pernas
os risos e o juramento de jamais comentar nada, é a primeira vez que quebro esse juramento
lembro dos dias de chuva dentro do rancho
o céu vestido de nuvens pesadas e cinzas, as poças de água no quintal, meu nariz encostado no vidro da janela embaçada, as águas escorrendo enquanto me perdia em devaneios, esperando mensagens de um mundo distante, a capital
lembrava dos dias ensolarados, as tardes jogando bola, a barranca, fechava os olhos e me permitia olhar para outros lugares, recostava a cabeça na mão e me deixava ficar com saudades esperando pelo sol
não sei se o rumo dos sonhos viaja no tempo e chega na terra dos lugares distantes para mudar as lembranças, apenas atravesso a rua, percorro sem agonias esse passado e seus lugares antes que o estalar dos dedos se faça ouvir, caminho com as mãos nos bolsos, vestindo minha camisa amarela, a mesma que a Elci lembra de me ver pela primeira vez, meus passos deliberadamente lentos, tenho a pele avermelhada mergulhada na luz devastadora do sol radiante, a vasta cabeleira negra cedeu lugar ao cabelo encanecido pelo tempo, cortado baixinho, digo que estou ainda inteiramente ingênuo e sou por inteiro aquele menino
paro e tomo fôlego, ouço as vozes daqueles guris, preces ocultas
ninguém percebe meu espanto e alegria, é o eco daqueles dias que me retorna, sou aquelas memórias que só existem em mim, sou a janela de um portal de aventuras sem fim, pronto para novas aventuras, as portas do desconhecido se abrindo diante de mim
fui feito em muitos anos, lutei em muitos moinhos e sonhos, andei entre devaneios de guri feito homem sozinho, esses pedaços da memória que me pertencem fazem de mim um homem de carne e osso
tenho oitenta e quatro, e sei... sempre terei doze, aquele guri do Inhacundá chegou até aqui e pretende ir mais longe
nada é tão simples do que viver, meus filhos
hoje, sou um narrador intrometido nos próprios jeitos de lembrar, sinto saudade da escola que não fui, fugia para jogar bola e mergulhar no rio, sinto a ausência das letras que deixei pelo caminho sem decifrá-las, fiz um mundo diferente para mim, tenho meus grandes heróis, brilhantes e universais, quero reunir todos enquanto dormem e são felizes
me chega o sonho no sono invadindo os lugares mais retirados do meu corpo, minha consciência vai me abandonando, quase adormeço do mesmo modo que digo que devem descansar, confiantes, sem medo do escuro, pois, no final, sempre venceremos a escuridão
continuo conduzindo as histórias, gostosas lembranças daquele guri, eu sou quem existe no andamento dos compassos recolhidos dentro da memória
intacto
descobri o tempo de dizer o que decifrei do tempo que também sou, aquele que passou, este que está aqui e que irá existir em suas lembranças de mim
eu sou o guri que nunca deixei de ser
no mundo real dos sonhos estou apenas usando minha memória, lembrando o que desejo sonhar de novo, coisas que podem ser acontecidas ou não
sigo vivendo em vocês se abraçando, meus filhos, meu abraço mais forte, desses que acontecem de vez em quando neste mundo, tenham uma vida de muitos sabores
Hiiiipppp!
meus filhos, estou flutuando da barranca, as pernas encolhidas, os gritos de contentamento, os olhos arregalados de alegria, os braços estendidos junto com minhas mãos e dedos, meus cabelos nevados se arrepiam, envelheceram, mas minhas memórias pulam ansiosas, gritam alegres, a magia do encantamento é um mundo aberto sem porteiras
fecho os olhos e abraço meu pai, o doutor entra e o examina, olha para mim e diz, Ele se foi.
o tempo se passou rápido desde a partida do último menino pelado que se tenha notícia, passa para todos, já não sirvo o mate em cuia pequena, permaneci naquele quarto por muitos anos depois que ele se foi, até perceber que foi uma benção estar junto naquele momento tranquilo, sussurrando e escutando segredos
esse nosso pai e suas histórias que vão continuar
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