terça-feira, 8 de abril de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Quinto - Para Caçada Tenebrosa Matilha Silenciosa / I - Ziguezagues estratégicos

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Quinto — Para Caçada Tenebrosa Matilha Silenciosa

I - Ziguezagues estratégicos
     
      Necessária se torna aqui uma observação para inteligência do que vai ler-se e do que mais adiante se verá.
     Bastantes anos há já que o autor deste livro, com pesar obrigado a falar de si, vive ausente de Paris. Depois que ele de lá saiu, Paris transformou-se; surgiu uma nova cidade, que de certo modo lhe é desconhecida. Escusado é dizer que ama Paris, porque Paris é a cidade natal do seu espírito. Em virtude, porém, das demolições e reconstruções, o Paris da sua juventude, esse Paris que ele religiosamente tem trazido sempre gravado na memória, é a esta hora um Paris de outro tempo. Permitam-lhe falar desse Paris, como se ele ainda existisse. Possível é que onde o autor conduzir os leitores, dizendo-lhes: «Em tal rua há tal casa», já hoje não exista nem casa nem rua.
     Eles que verifiquem, se se quiserem dar a esse trabalho, que, pelo que lhe respeita, ignora o Paris novo e escreve com o Paris antigo à vista duma ilusão para ele preciosa.
     É-lhe doce a lembrança de que atrás dele ficou alguma coisa do que viu quando estava na sua terra, e que nem tudo se desvaneceu. Enquanto a gente pisa o solo da pátria, imagina que lhe são indiferentes aquelas ruas; sem valor aquelas janelas, aqueles tetos e aquelas portas; estranhas aquelas paredes; como quaisquer outras aquelas árvores com que deparamos no nosso caminho; inúteis as casas em que entramos, simples pedras o pavimento em que pousamos os pés. Mais tarde, quando um súbito esforço da desgraça nos quebra os laços que nos prendiam ao país natal, vemos então que aquelas ruas nos são caras; que nos faltam aqueles tetos, aquelas janelas e aquelas portas; que nos são necessárias aquelas paredes; nossas bem amadas aquelas árvores; que naquelas casas, em que não entrávamos, todos os dias entrávamos; e que pegado àquele solo, que já não pisamos, deixamos parte das nossas entranhas, do nosso sangue e do nosso coração. Todos esses lugares, que já não vemos, que talvez não tornaremos a ver, tomam para nós um doloroso encanto, vem-nos à lembrança com a melancolia de uma aparição, tornam-nos visível a terra santa, e são, para assim dizer, a própria forma da França; e amamo-los e evocamo-los tais quais eles são, tais quais eles eram, e obstinamo-nos neles e não os queremos alterar em nada, porque nos afeiçoamos à figura da pátria como ao rosto de uma mãe.
     Seja-nos lícito falar do passado no presente. Dito isto, pedimos ao leitor que o tome em nota e continuamos.
     Jean Valjean deixara logo o boulevard e embrenhara-se pelas ruas, dando o maior número de voltas que podia e voltando às vezes atrás a ver se alguém o seguia.
     É manobra própria do veado perseguido pela matilha. Nos terrenos em que podem ficar impressas as pegadas, tem esta manobra, entre outras vantagens, a de enganar no rasto os caçadores e os cães. Chama-se a isto na arte venatória retirada falsa.
     Era uma noite de Lua cheia, com o que Jean Valjean bem pouco se dava. A Lua, ainda muito próxima do horizonte, projetava nas ruas grandes lanços de sombra e luz.
     Jean Valjean podia, pois, deslizar ao longo das casas e das paredes, observando do lado escuro a parte clara. Talvez ele, porém, não refletisse bem que lhe ficava por sondar convenientemente o lado escuro; todavia, em todos os becos desertos próximos à rua de Poliveau, julgou com toda a certeza que ninguém ia atrás dele.
     Cosette caminhava sem fazer perguntas. Os sofrimentos dos seis primeiros anos da sua vida tinham introduzido alguma coisa de passivo na sua natureza. Além disso, e é este um reparo do qual mais do que uma vez teremos ocasião de nos ocuparmos, estava acostumada, sem bem ter consciência disso, às singularidades do velho e às extravagâncias do destino. Finalmente, sentia-se em segurança, estando com ele.
     Jean Valjean não sabia melhor do que Cosette para onde ia. Confiava-se a Deus, como ela se confiava a ele. Parecia-lhe que também um ser maior do que ele lhe travava da mão e julgava senƟr que um ente invisível o conduzia. Finalmente, não tinha nenhum propósito deliberado, nenhum plano, nenhum projeto. Nem mesmo tinha a certeza de que aquele homem fosse Javert, e quanto mais, podia ser Javert, sem que Javert soubesse que ele era Jean Valjean, Pois não andava disfarçado? Não o supunham morto? Contudo, passavam-se coisas, havia alguns dias, que se tornavam singulares. Não lhe era preciso mais. Estava determinado a não tornar a pôr os pés na casa de Gorbeau. Como um animal expulso do covil, procurava uma cova para se esconder até encontrar outra onde se alojasse.
     Jean Valjean descobriu grande número de variados labirintos no bairro de Mouffetard, já adormecido como se ainda tivesse a disciplina da idade média e o jugo do toque a recolher, combinando de diversos modos, em sábias estratégias, a rua de Censier com a rua de Copeau, a rua do Passeio de S. Vítor com a do Poço do Ermitão.
     Não falta por estes sítios quem alugue quartos mobilados, Jean Valjean, porém, nem neles entrou, porque não achou o que lhe convinha. Uma coisa que ele tinha como fora de dúvida era que, ainda quando por acaso lhe tivessem andado em busca do rasto, o tinham perdido.
     Ao dar onze horas em Santo Estêvão do Monte, atravessava ele a rua de Pontoise, em frente do comissariado da polícia, que fica na casa número 11. Alguns instantes depois, o instinto obrigou-o a voltar-se e à luz do lampião do comissariado, que os punha a descoberto, viu distintamente passarem por baixo do dito lampião do lado da rua que estava em trevas três homens que o seguiam de muito perto. Um dos três homens entrou no corredor da casa do comissário. O que caminhava na frente pareceu-lhe com toda a certeza suspeito.

— Anda, filha — disse ele para Cosette, deixando com presteza a rua de Pontoise.

     Para isso fez um rodeio, contornou a passagem dos Patriarcas, que estava fechada pelo adiantado da hora, percorreu com ligeireza a rua da Espada de Pau e a do Aríete e meteu-se pela das Postas, onde há um beco, em que hoje está o colégio Rollin, e ao qual vem sair a rua Nova de Santa Genoveva.
     (Convém dizer que a rua Nova de Santa Genoveva é uma rua antiga e que pela rua das Postas nem de dez em dez anos passa uma sege de posta. Esta rua das Postas, no século XIII, era habitada por oleiros e o seu verdadeiro nome é o de rua dos Potes).
     A lua lançava neste beco uma luz viva. Jean Valjean escondeu-se numa porta, calculando que, se os homens ainda o seguissem, não podia deixar de os ver, ao passarem por aquela claridade.
     Efetivamente, não eram decorridos três minutos, quando os homens apareceram. Agora, porém, eram quatro, todos de estatura elevada, vestidos com compridos casacões pardos, de chapéus redondos e grossas bengalas nas mãos. Não era menos assustadora a sua marcha sinistra nas trevas do que a sua grande estatura e a desmesurada grandeza dos seus punhos. Dir-se-ia quatro espectros disfarçados em burgueses.
     No meio do beco pararam e juntaram-se em grupo como que a consultar-se.
     Tinham ar indeciso. O que parecia guiá-los voltou-se e apontou acaloradamente com a mão direita na direção do lugar onde Jean Valjean estava escondido; outro parecia indicar com obstinação a direção contrária. No instante em que o primeiro se voltou, a lua bateu-lhe em cheio no rosto e Jean Valjean reconheceu perfeitamente Javert.

continua na página 345...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Quinto - I - Ziguezagues estratégicos
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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