em busca do tempo perdido
volume II
À Sombra das Moças em Flor
Segunda Parte
Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar
(m)
continuando...
Claro que Saint-Loup não era o primeiro a cair nas artimanhas de uma amante. Porém os outros continuavam sua divertida existência de mundanos, e pensando à moda de mundanos na política e em tudo o mais. Mas a família de Robert achava o "azedo". Não percebiam que para muitos jovens aristocratas uma amante é muitas vezes um mestre, e que as ligações desse gênero são a única escola de moral que os inicia numa cultura superior, onde aprendem o valor do conhecimento desinteressado; e que, sem isso, permaneceriam de espírito inculto, rudes em suas amizades, sem doçura e sem gosto. Até entre a gente baixa (que em termos de grosseria se parece tantas vezes com as pessoas da alta roda), a mulher, mais sensível, mais fina, mais ociosa, tem curiosidade por certos requintes, respeita certas belezas de arte e sentimento que, embora não os compreenda bem, coloca no entanto acima daquilo que mais desejável parece ao homem, o dinheiro, a posição social. Ora, quer se trate da amante de um jovem aristocrata, como Saint-Loup, ou de um jovem operário (os eletricistas, por exemplo, figuram atualmente nas listas da verdadeira Cavalaria), seu amante tem por ela muito respeito e, admiração para não os estender ao que ela própria respeita e admira; e, para ele, a escala de valores torna-se invertida. Devido mesmo a seu sexo, ela é frágil, tem perturbações nervosas, inexplicáveis, que no caso de um homem, e mesmo no de outra mulher, que fosse sua prima ou tia, teriam feito sorrir esse jovem robusto. Mas ele não pode ver sofrer aquela a quem ama. O jovem nobre que, como Saint Loup, tem uma amante, adquire o hábito, quando vai jantar com ela no cabaré, de trazer no bolso o valerianato de que ela pode precisar, de recomendar ao garçom, com firmeza e sem ironia, que feche as portas sem barulho, que não enfeite a mesa com musgo úmido a fim de evitar à amiga essas indisposições que, de sua parte, jamais sentiu, que constituem para ele um mundo oculto em cuja realidade ela o ensinara a acreditar, indisposições que ele agora lastima sem que tenha necessidade de conhecê-las e que lastimará mesmo que sejam outras as mulheres a experimentá-las. A amante de Saint-Loup - como os primeiros monges da idade Média à cristandade - lhe ensinara a piedade para com os animais, pois tinha paixão por eles, e nunca viajava sem seu cachorro, seus canários, seus papagaios; Saint-Loup cuidava deles maternalmente e considerava uns brutamontes as pessoas que não tratam bem os animais. Por outro lado, uma atriz, ou que se dizia uma atriz, como a que vivia com ele-fosse inteligente ou não, coisa que eu ignorava-, fazendo com que ele achasse aborrecida a companhia das mulheres da sociedade e considerasse um suplício o dever de ir a um sarau, preservara-o do esnobismo e o curara da frivolidade. Se, graças a ela, as relações mundanas ocupavam menos espaço na vida de seu jovem amante, em compensação a amante lhe ensinara a pôr nobreza e refinamento em suas amizades, enquanto, fosse ele um simples homem de frequentar salões, a vaidade ou o interesse teriam orientado suas amizades, marcando-as de sua rudeza. Com seu instinto de mulher e apreciando mais nos homens certas qualidades de sensibilidade que, sem ela, o amante teria desconhecido ou depreciado, sempre soubera distinguir e escolher, de imediato, dentre os amigos de Saint-Loup, o que lhe dedicava verdadeira afeição. Sabia forçá-lo a lhe testemunhar reconhecimento, a assinalar as coisas que lhe davam prazer, as que o magoavam. E em breve Saint-Loup, sem ter mais necessidade de que a amante o advertisse, começou a preocupar-se com tudo isso, e em Balbec, onde ela não estava, e por mim, que ela nunca vira e de quem talvez ele ainda não tivesse falado em suas cartas, fechava por conta própria o vidro do carro onde eu estava, retirava as flores que me causavam mal e, quando tinha de se despedir ao mesmo tempo de várias pessoas, cuidava de deixá-las um pouco mais cedo a fim de ficar sozinho e por último comigo, estabelecendo uma distinção entre mim e eles, tratando-me de forma diferente que aos outros. Sua amante abrira-lhe o espírito ao invisível, pusera seriedade em sua vida, delicadezas em seu coração, mas tudo isso passava despercebido à família em prantos, que repetia:
É verdade que ele acabara por tirar dela todo o bem que ela podia lhe fazer; e agora ela
era apenas motivo para que ele sofresse sem parar, pois criara-lhe horror e torturava-o. Um dia,
principiara achá-lo bobo e ridículo, pois os amigos que possuía entre os jovens atores e autores
lhe haviam assegurado que o era, e, por sua vez, ela repetia o que diziam com aquela paixão,
aquela ausência de reserva que a gente mostra a cada vez que recebe de fora e adota opiniões
ou costumes que ignorava de todo. Como aqueles comediantes, afirmava, sem esforço, que era
intransponível o fosso entre ela e Saint-Loup, porque eram de raças diferentes, que ela era uma
intelectual e ele, embora pretendesse sê-lo, era desde a origem um inimigo da inteligência. Esse
modo de ver lhe parecia profundo e procurava confirmá-lo nas palavras mais insignificantes, nos
menores gestos do amante. Mas, quando os mesmos amigos a convenceram também que estava
destruindo, em companhia tão pouco adequada para ela, as grandes promessas de que, segundo
eles, já havia dado mostras, que seu amante acabaria por prejudicá-la, e que, vivendo com ele,
estava estragando o seu futuro de atriz, ao seu desprezo por Saint-Loup foi juntar-se o mesmo
ódio que sentiria se ele tivesse se obstinado em inocular-lhe uma doença mortal. Procurava vê-lo
o menos possível, adiando sempre o momento da ruptura definitiva, a qual me parecia bem pouco
verossímil. Saint-Loup fazia por ela tais sacrifícios que, a menos que ela fosse deslumbrante; mas
nunca havia querido me mostrar sua fotografia, dizendo:
- Primeiro, não é uma beldade, e, além disso, não sai bem nas fotos; são instantâneos
que eu mesmo tirei com a minha Kodak, e lhe darão uma falsa ideia dela.
Parecia difícil que encontrasse um outro homem que consentisse em tais coisas. Eu não
imaginava que uma certa mania de fazer nome, até quando não se tem talento, e a estima, iriam,
mais que a estima privada, de pessoas que se impõem (o que, aliás, talvez não fosse o caso da
amante de Saint-Loup), pudessem ser, mesmo para uma pequena cocote motivos mais
determinantes que o prazer de ganhar dinheiro. Saint-Loup que, dizia compreender bem o que se
passava na cabeça da amante, não a julgava totalmente sincera, nem nas censuras injustas nem
nas promessas de amor eterno, sentira entretanto, em certas ocasiões, que ela haveria de romper
quando pudesse e; isso, movido sem dúvida pelo instinto de conservação do seu amor, mais
carente talvez que ele próprio, empregando aliás uma habilidade prática que nele não conciliava
com os maiores e mais cegos impulsos do coração, recusara-se a constituir um capital, tomara
emprestada uma quantia enorme para que nunca lhe faltasse, mas só a enviava parceladamente.
E de certo, caso ela tivesse na verdade pensado em largá-lo, esperaria friamente encher seu "pé-de-meia", o que, com a somas dadas por Saint-Loup, levaria sem dúvida pouco tempo, mas ainda
assim; concedido em suplemento para prolongar a felicidade do meu novo amigo - ou à sua
desgraça. Esse período dramático da ligação deles - e que agora havia chegado ao ponto mais
agudo, mais cruel para Saint-Loup, pois ela o proibira de permanecer em Paris, onde sua
presença a exasperava, e o forçara a ir passar sua licença em Balbec, próximo ao seu quartel -começara uma noite na casa de uma tia de Saint Loup, com quem obtivera licença para que sua
amiga fosse recitar, para inúmeros convidados, trechos de uma peça simbolista que representara
uma vez num teatro de vanguarda e pela qual o fizera compartilhar da admiração que ela própria
sentia. Mas, quando ela apareceu, com um grande lírio na mão, num vestido copiado da "Ancilla
Domini" e que havia convencido a Robert tratar-se de uma verdadeira "visão de arte", sua entrada
foi acolhida naquela assembleia de homem de clube e de duquesas com sorrisos, que o tom
monótono da salmodia, a estranheza de algumas palavras e sua repetição constante haviam
transformado em risadas loucas, a princípio sufocadas e, depois, tão irresistíveis que a pobre
recitando não pudera continuar. No dia seguinte, a tia de Saint-Loup foi unanimemente censurada
por ter recebido em sua casa uma artista de tal modo grotesca. Um duque bem conhecido não lhe
escondeu que ela só podia queixar-se de si mesma, se criticavam.
- Que diabo, também! Isso não é coisa que se apresente! Se ao menos aquela mulher
tivesse talento; mas não tem e nunca terá. Bolas! Paris não é idiota, por mais que o digam. A
sociedade não é só composta de imbecis. Essa moça evidentemente imaginou assombrar Paris.
Mas Paris não se assombra com tanta facilidade e existem coisas que a gente não consegue
engolir. Quanto à artista, saiu dizendo a Saint-Loup: - No meio de que peruas, de que galinhas
mal-educadas e malandros, foi você me meter! E acho melhor dizer logo diante dos homens
presentes, não houve um só que não me tivesse feito sinais, e, como repelindo suas tentativas,
procuraram vingar-se.
Palavras que haviam mudado a antipatia de Robert pelas pessoas da sociedade em um
horror ainda mais profundo e doloroso, inspirado principalmente por aqueles que menos o
mereciam, parentes devotados que, a pedido da família, tinham procurado convencer a amiga de
Saint-Loup a romper com ele, atitude que esta lhe apresentava como ditado pelo amor que
dedicavam a ela. Robert, embora tivesse imediatamente deixado de frequentá-los, pensava,
quando estava longe da amiga, como agora, que eles e outros se aproveitavam para voltar à
carga e talvez obtivessem os seus favores. E, quando se referia aos espertos que traem seus
amigos, procuram corromper as mulheres e tentam levá-las aos bordéis, seu rosto transpirava
sofrimento e ódio.
- Eu os mataria com menos remorso que a um cachorro. Ao menos o cachorro é um animal
afável, leal e fiel. Pois eles merecem a guilhotina, muito mais do que os desgraçados que são
levados ao crime pela miséria e pela crueldade dos ricos.
Passava a maior parte do tempo enviando cartas e telegramas à amante. Sempre que,
além de proibi-lo de ir a Paris, ela achava, à distância, um meio de brigar com ele, eu logo o via
por suas feições abatidas. Como a amante nunca lhe dizia o que lhe tinha a censurar, supondo
que, se o não dizia, era porque não sabia e estava simplesmente farta dele, ele, no entanto,
gostaria de ter explicações; e escrevia:
"Diga-me o que fiz de mal. Estou pronto a reconhecer meus erros."
O desgosto que sentia acabava fazendo com que se convencesse de que agira mal. Mas
ela fazia-o esperar indefinidamente suas respostas, aliás desprovidas de sentido. Portanto, era
quase sempre de rosto preocupado, muitas vezes com as mãos vazias, que eu via Saint-Loup
voltar do correio, onde, junto com Françoise, eram os únicos de todo o hotel a irem buscar e levar
as cartas pessoalmente, ele por impaciência de amante, ela por desconfiar dos criados. (Os
telegramas a forçavam a andar ainda muito mais.)
Quando, alguns dias depois do jantar na casa dos Bloch, minha avó me disse, muito
alegre, que Saint-Loup acabava de lhe perguntar se não queria que ele a fotografasse antes de
deixar Balbec, e ao ver que, para isto, ela pusera seu mais belo vestido e estava indecisa entre
vários penteados, senti-me um tanto irritado com aquela infantilidade que tanto me espantava de
sua parte. Cheguei mesmo a indagar comigo se não me havia enganado quanto à minha avó, se
não a colocara num pedestal muito alto, se era mesmo tão desligada de sua pessoa como sempre
acreditara, se não tinha até aquilo que julgara lhe fosse mais estranho, a coqueteria. Infelizmente,
a contrariedade que me causara o projeto da sessão fotógrafo ficava sobretudo, a satisfação que
minha avó parecia sentir com tudo aquilo, de transparecer o bastante para que Françoise o
notasse, apressando-se involuntariamente a aumentá-la com um discurso sentimental e
enternecido, ao qual eu quis dar a impressão de que aderia.
- Oh, senhor, esta pobre Senhora que ficará tão feliz que lhe tirem o retrato até vai pôr o
chapéu que sua velha Françoise lhe arranjou; é preciso fazer-lhe a vontade, senhor!
Convenci-me de que não era cruel por zombar da sensibilidade de Françoise lembrando
me que minha mãe e minha avó, meus modelos em tudo, procediam, da mesma forma muitas
vezes. Porém minha avó, percebendo que eu me mostrava aborrecido, afirmou que se aquela
sessão fotográfica me contrariava, desistia dela. Não quis agir assim, e lhe assegurei que não via
nenhum inconveniente deixando-a embelezar-se, mas julguei dar provas de penetração e força ao
lhe dar algumas palavras irônicas e ferinas, destinadas a neutralizar o prazer que ela parecia
sentir em ser fotografada, de modo que, se fui constrangido a ver o magnífico chapéu de minha
avó, consegui ao menos fazer sumir de seu rosto aquela expressão de alegria que me faria feliz e
que, como acontece com frequência quando estão vivas as pessoas a quem mais amamos,
surge-nos como a manifestação exasperadora de um capricho mesquinho em vez de ser a forma
preciosa da felicidade que tanto lhe desejaríamos proporcionar. Meu mau humor provinha
sobretudo do fato de que, naquela semana, minha avó parecera fugir-me e eu não pudesse detê-la um só instante para mim, nem de dia nem de noite. Quando voltava à tarde para estar um
pouco a sós com ela, diziam-me que havia saído; ou então ela se trancava com Françoise para
longos conciliábulos a que não me era permitido perturbar. E, quando, tendo passado a noite fora
com Saint-Loup, pensava durante a volta no momento em que ia poder encontrar e beijar minha
avó, por mais que esperasse que ela batesse no tabique aquelas pancadinhas que me avisariam
para entrar em seu quarto e lhe dar boa-noite, não ouvia nada; acabava por me deitar aborrecido
com ela porque me privava, com uma indiferença que era nova nela, uma alegria com a qual tanto
havia contado; e ficava ainda, o coração palpitando como na minha infância, a escutar a parede,
que permanecia muda, e ia adormecer em lágrimas.
Naquele dia, como nos precedentes, Saint-Loup fora obrigado à ir Doncieres, onde agora
precisariam sempre de seus serviços até o fim, enquanto não regressasse em definitivo.
Lamentava que ele não estivesse em Balbec. Vira descer do carro e entrar, umas no salão de
danças do cassino, outras na sorveteria, algumas jovens que de longe me haviam parecido
fascinantes. Eu estava num desses períodos da juventude, desprovidos de um amor particular,
vazios, onde, por toda a parte como um enamorado em relação à mulher por quem se apaixonou
se deseja, se busca e se vê a Beleza. Em que um só traço real o pouco a se distinguir de uma
mulher vista de longe ou de costas; nos permite projetar a Beleza diante de nós, e imaginamos tê-la reconhecido, o nosso coração bate mais forte, apressamos o passo, e sempre estaremos meio
persuadidos de que era ela, contanto que a mulher tenha desaparecido: somente quando
podemos alcançá-la é que percebemos nosso erro.
Além disso, cada vez mais doente, sentia-me tentado a encarecer os prazeres mais
simples devido às próprias dificuldades com que me defrontava para atingi-los. Julgava perceber
em todos os cantos mulheres elegantes, pois estava muito cansado, se me encontrava na praia,
ou muito tímido, se estivesse no cassino ou numa confeitaria, para que pudesse aproximar-me
delas fosse onde fosse. No entanto, se devesse morrer em breve, gostaria de saber como, na
realidade, eram de perto as mais belas moças que a vida pudesse oferecer, ainda que fosse outro
homem, ou mesmo ninguém, que devesse desfrutar essa oferta (de fato, eu não me dava conta
de que havia um desejo de posse na origem de minha curiosidade). Teria ousado entrar no salão
de baile caso Saint-Loup estivesse comigo. Estando sozinho, simplesmente fiquei diante do
Grande Hotel, esperando o momento de ir encontrar-me com minha avó, quando, ainda quase na
extremidade do molhe, onde faziam mover-se uma estranha mancha, vi que se aproximavam
cinco ou seis mocinhas, tão diversas, pelo aspecto e pelos modos, de todas as pessoas a que a
gente estava acostumado em Balbec, que poderiam ser, desembarcadas não se sabe de onde,
um bando de gaivotas a executarem vagarosamente na praia as retardatárias alcançando as
outras a esvoaçar - um passeio cujo intuito parece tão obscuro aos banhistas, a quem elas não
demonstram ver, quanto claramente ditado pelo seu espírito de pássaros.
Uma dessas desconhecidas empurrava sua bicicleta; duas outras empunhavam tacos de
golfe; e sua roupa singular destoava do vestido das outras moças de Balbec, entre as quais, na
verdade, havia algumas que se entregavam à prática de esportes mas sem para isso adotar uma
roupa especial.
Era a hora em que as damas e cavalheiros vinham diariamente dar uma volta pelo molhe,
expostos aos reflexos implacáveis que fixava sobre eles, como se fossem portadores de alguma
tara que ela devesse inspecionar nos menores detalhes, a esposa do primeiro magistrado,
orgulhosamente sentada diante do quiosque de música, em meio à temida fila de cadeiras onde
eles próprios, dali a pouco, iriam instalar-se, atores transformados em críticos, para julgar por sua
vez todos os que desfilariam à sua frente. Todas essas pessoas que andavam pelo molhe,
gingando de modo tão acentuado como se ele fosse o convés de um bar (pois não sabiam erguer
uma perna sem ao mesmo tempo mexer com os braços; virar os olhos, empertigar os ombros,
compensar com um movimento balouçam do lado oposto o movimento que acabavam de fazer do
outro lado, e congestionam a fisionomia) e que, fingindo não ver para dar a entender que não se
importavam com as outras pessoas que andavam a seu lado ou vinham em sentido contrário
olhando disfarçadamente para evitar esbarrões, entretanto chocavam-se com ela, pois tinham
sido reciprocamente, de sua parte, motivo da mesma atenção secreta oculta sob o mesmo
aparente desdém; pois o amor, e consequentemente o temor, da multidão constitui um dos mais
poderosos impulsos em todos os homem quer procurem agradar aos outros, quer busquem
espantá-los, ou ainda mostrar que os desprezam. No solitário, a reclusão, mesmo sendo absoluta
e durando até o fim da vida, tem muitas vezes por princípio um amor desordenado da multidão
que o avassala tanto, acima de qualquer outro sentimento, que, não podendo obter, ao sair, a
admiração do porteiro, dos transeuntes, do cocheiro ali parado, prefere nunca ser visto por eles e,
por isso, renuncia a toda a atividade que o obrigasse a sair de casa.
No meio de todas aquelas pessoas, algumas das quais estavam pensando em algo mas
traíam então a mobilidade do espírito pelos gestos bruscos, pelos olhares que divagavam, tudo
tão desarmonioso quanto à circunspecta hesitação de seus vizinhos, as mocinhas que eu vira,
com o domínio dos movimentos que provém da perfeita flexibilidade do corpo e um sincero
desprezo pelo resto da humanidade, vinham vindo em linha reta, sem hesitação nem rigidez,
executando exatamente os movimentos desejados, numa total independência de cada um dos
membros em relação aos outros, conservando a maior parte do corpo aquela habilidade tão
notável nas boas valsistas. Já não estavam muito longe de mim. Embora cada qual fosse de tipo
inteiramente diverso das outras, todas eram belas; para falar a verdade, eu as via há tão pouco
tempo e sem ousar encará-las fixamente, que ainda não conseguira individualizar nenhuma delas.
A não ser uma, cujo nariz reto e pele morena faziam contraste com as outras, como, num quadro
da Renascença, um rei Mago de tipo árabe, só me eram conhecidas, esta pelos olhos duros,
atrevidos e risonhos; outra pelas faces onde o tom de rosa ostentava esse marrom acobreado que
dá ideia de gerânio; e mesmo esses traços eu não tinha ainda indissoluvelmente nenhum deles
antes a uma que a outra menina qualquer: quando (conforme a ordem em que se desenrolava
aquele conjunto, maravilhoso porque ali avizinhavam os mais diversos aspectos, e todas as
gamas de cores - elas se aproximavam umas das outras, mas disposto de modo confuso como
uma mulher em que eu não pudesse reconhecer e isolar as frases no momento de sua imagem,
percebidas mas esquecidas logo após) via emergir um oval branco, negros, olhos verdes, não
sabia se eram os mesmos que me haviam encantado a pouco, não tinha condições de ligá-los a
esta ou aquela moça que eu tivesse esperado das demais, e reconhecido. E essa ausência, na
minha visão, dos limites que em breve estabeleceria entre elas, propagava através do seu grupo
uma flutuação harmoniosa, a contínua translação de uma beleza fluída, coletiva e móvel.
Não era talvez somente o acaso que, na vida, para reunir essas amigas, as escolhera
todas tão bonitas; talvez essas moças (cuja atitude bastava para revelar sua natureza audaciosa,
frívola e dura), extremamente sensíveis a todo ridículo e a qualquer feiura, incapazes de sentirem
uma atração de ordem moral ou intelectual, tivessem naturalmente experimentado a mesma
repulsa por todas as companheiras de sua idade cujas inclinações contemplativas ou sensíveis se
traíssem pela timidez, pelo constrangimento, pela falta de jeito, por aquilo que elas deveriam
denominar "um tipo antipático", e as tinham desse modo mantido afastadas; enquanto se haviam
unido a outras para as quais as atraía uma certa mescla de graça, agilidade e elegância física,
única forma sob a qual podiam imaginar a franqueza de um caráter sedutor e a promessa de boas
horas de convivência. Talvez igualmente a classe a que pertenciam, e que eu não poderia
precisar, estivesse nesse ponto de evolução onde, seja pelo enriquecimento e o lazer, seja pelos
novos hábitos esportivos, espalhados até em certos ambientes populares, e de uma cultura física
a que ainda não viera ajuntar-se a da inteligência, um meio social similar às harmoniosas e
fecundas escolas de escultura, que ainda não buscam a expressão atormentada, produz, com
naturalidade e abundância, belos corpos de bonitas pernas, lindas ancas, rostos saudáveis e
tranquilos, com um ar de agilidade e esperteza. E não eram nobres modelos calmos de beleza
humana que eu via ali diante do mar, como estátuas expostas ao sol numa costa da Grécia?
Como se julgassem, do seio do seu bando que progredia ao longo do molhe tal um cometa
luminoso, que a multidão ao redor era composta de seres de outra raça e dos quais nem sequer o
sofrimento lhes despertaria um sentimento de solidariedade, elas pareciam não vê-la, forçando as
pessoas paradas a se afastarem, da mesma maneira que à passagem de uma máquina que
partisse desenfreada e da qual não seria acertado esperar que evitasse os pedestres, e quando
muito se limitavam a entreolhar-se rindo, se algum velho senhor, cuja existência não admitiam e
cujo contato evitavam, fugia com movimentos medrosos ou coléricos, mas precipitados ou risíveis.
Em relação a quem não pertencesse ao seu grupo, não exibiam nenhuma afetação de desprezo;
seu desprezo sincero era bastante. Mas não podiam ver um obstáculo sem se divertirem em
transpô-lo, tomando impulso ou de pés juntos, pois eram todas cheias e exuberantes dessa
juventude que temos tanta necessidade de consumir que, mesmo quando estamos tristes ou
doentes, obedecendo mais às exigências da idade que ao humor do dia, nunca deixamos passar
uma ocasião de salto ou deslizamento, sem aproveitá-la conscienciosamente, interrompendo,
semeando a nossa marcha lenta como Chopin, a frase mais melancólica-com graciosos torneios
onde o capricho se mistura ao virtuosismo de seus olhos. Portanto, era toda a sua vida que me
inspirava desejo; desejo odioso porque o sentia irrealizável, mas embriagador, pois o que fora até
então a minha vida deixara bruscamente de ser a minha vida total, não sendo mais que uma
pequena parcela do espaço estendido diante de mim, que eu ardia por transpirar, que era
constituído pela vida daquelas moças, oferecendo-me esse prolongamento, essa possível
multiplicação de si mesmo, que é a felicidade. E, sem dúvida, o fato de não haver entre nós
nenhum hábito, nenhuma ideia em comum, devia tornar mais difícil ligar-me a elas e agradar-lhes.
Mas talvez também fosse graças à essas diferenças, graças à consciência de que não entrava na
composição da natureza e das ações daquelas moças nem um só elemento que eu conhecesse
ou possuísse, que acabava de ocorrer em mim, à exaustão, a sede semelhante àquela com que
arde uma terra esturricada; de uma vida que minha alma, visto que nunca recebera dela uma só
gota, assimilaria tanto mais avidamente, a longos haustos, na mais perfeita absorção.
De tal forma olhara aquela ciclista de olhos brilhantes que ela pareceu nem perceber isso e
falou à maior algo que não ouvi mas que a fez rir. Na verdade, essa morena não era a que mais
me agradava, justamente por ser morena e porque (desde o dia em que vira Gilberte na pequena
ladeira de Tansonville) uma menina ruiva, de pele dourada, ficara sendo para mim o ideal
inacessível. Mas a própria, Gilberte, não a amara eu, sobretudo porque me surgira carimbada pela
auréola de amiga de Bergotte, de ir visitar catedrais em sua companhia. E do mesmo modo não
podia eu alegrar-me de ter visto essa morena me olhar (o que me fazia esperar que talvez fosse
mais fácil entrar em relações primeiro com ela), pois me apresentaria, outras, à implacável que
saltara por cima do velho, à cruel que dissera: "Esse velho me dá pena"; sucessivamente a todas,
das quais aliás tinha o prestígio de companheira inseparável. E, no entanto, a suposição de que
um dia eu poderia ser amigo desta ou daquela das moças, que seus olhos, cujos olhares
desconhecida às vezes me tocavam, brincando sobre mim sem o saber, como um efeito sobre um
muro, poderiam, por uma alquimia milagrosa, deixar transpenetrar ao dia, entre suas parcelas
inefáveis, a ideia de minha existência, alguma amizade por minha pessoa, que eu próprio poderia
um dia tomar lugar entre elas, em tese; após o passeio ao longo do mar. Essa hipótese parecia
me encerrar uma contradição insolúvel, como se diante de um friso antigo, ou de um afresco em
que figura um cortejo, eu julgasse possível, enquanto espectador, tomar parte, amado por elas,
em meio às divinas processionárias.
Era então irrealizável a ventura de conhecer aquelas moças? Certamente não era a
primeira do gênero a que eu tivesse renunciado. Bastava lembrar que eram desconhecidas que,
mesmo em Balbec, quando o carro se afastava a toda a velocidade, fora obrigado a abandonar
para sempre. E até o prazer que me dava entrar no grupo, nobre como se fosse composto de
virgens helênicas, provinha de possuir algo da fuga das passantes pela estrada. Essa fugacidade
dos seres que não nos são conhecidos, que nos forçam a desatracar da vida costumeira onde as
mulheres que frequentamos acabam por revelar suas taras, coloca-nos nesse estado de
perseguição em que nada mais detém a fantasia. Ora, desprover dela os nossos prazeres é
reduzi-los a coisa alguma. Oferecidas na casa de uma dessas alcoviteiras que, aliás, eu não
desprezava, como já vimos, retiradas do elemento que lhes proporcionava tantos matizes e
incertezas, essas moças teriam me encantado menos. É preciso que a imaginação, despertada
pela insegurança de poder atingir seu objetivo, crie uma finalidade que nos esconda a outra, e,
substituindo o prazer sensual pela ideia de penetrar numa vida, nos impeça de reconhecer
semelhante prazer, de experimentar seu legítimo sabor, de restringi-lo a seus limites. É preciso
que entre nós e o peixe - que, se o víssemos pela primeira vez servido numa mesa não pareceria
valer os mil ardis e rodeios necessários para capturá-lo se interponha, durante as tardes de
pesca, o redemoinho a cuja superfície vêm aflorar, sem que saibamos exatamente o que
pensamos fazer com isso, o polido de uma carne, a indecisão de uma forma, na fluidez de um
azul móvel e transparente.
continua na página 160...
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - m)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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