terça-feira, 8 de abril de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - n)

em busca do tempo perdido


volume II
À Sombra das Moças em Flor

Segunda Parte
Nomes de Lugares: o Lugar


(n)

continuando...

      Aquelas moças também se beneficiavam dessa mudança de proporções sociais, característica da vida nas estâncias balneárias. Todas as vantagens que nos prolongam, nos engrandecem no nosso meio habitual, encontram-se aí invisíveis, na verdade surpresas; em compensação, as pessoas a quem indevidamente se atribuem tais vantagens só progridem amplificadas numa falsa grandeza. O que tornava mais fácil que desconhecidas, e naquele dia essas moças, adquirissem uma importância enorme a meus olhos, e fazia que fosse impossível dar-lhes a conhecer a importância que eu poderia ter.
      Mas, se o passeio do pequeno grupo não era mais que um pedaço da fuga inumerável de passantes, que sempre me perturbara, essa fuga era reduzida aqui a um movimento de tal modo vagaroso que se aproximava da imobilidade. Ora, precisamente porque numa fase tão pouco rápida, os rostos, não mais envoltos num turbilhão e sim calmos e distintos, me parecessem ainda bonitos, isso me impedia de crer, como o fizera tantas vezes quando ia no carro da Sra. de Villeparisis, que, mais de perto, se eu parasse um instante, certos detalhes, uma pele bexiguenta, um defeito nas asas do nariz, um olhar comum, a careta do sorriso, um corpo mal feito, teriam substituído no corpo e no rosto da mulher os que eu sem dúvida imaginara; pois bastava um detalhe bonito do corpo, um frescor de pele entrevisto, para que, de boa-fé, eu lhe ajuntasse um ombro delicioso, um olhar cativante, cuja lembrança ou ideia preconcebida carregava sempre comigo, decifrações rápidas de um ser que se vê de relance, expondo-nos assim aos mesmos erros que essas leituras muito apressadas em que, sobre uma única sílaba e sem ter tempo de identificar as outras, colocamos no lugar da palavra que está escrita uma outra bem diferente que a nossa memória nos fornece. Agora, porém, não podia ser desse modo. Olhara bem os seus rostos; vira cada uma delas, não em todos os instantes raramente de frente, mas mesmo assim de dois ou três ângulos bastante diferentes para que pudesse fazer a retificação, ou a verificação, e a "prova" das diversas suposições de linhas e de cores, sugeridas à primeira vista, e para ver neles, através das expressões sucessivas, algo de inalteravelmente material. Podia dizer, com toda a certeza, que nem em Paris nem em Balbec, nas hipóteses mais favoráveis do que poderiam ser, mesmo que pudesse ficar ali conversar com elas, as passantes que haviam atraído os meus olhos, jamais houvera uma cujo aparecimento, e depois o desaparecimento sem que as tivesse conhecido, deixassem mais pena do que estas o fariam, e me tivessem dado a ideia de que a amizade pudesse ser tamanha embriaguez. Nem entre as atrizes, entre as camponesas, ou entre as moças do pensionato religioso, eu vira nada tão belo, impregnado de tanto desconhecido, tão inestimavelmente precioso, tão verossimilmente inacessível. Da felicidade desconhecida e possível da vida, elas eram um exemplar delicioso e em tão perfeito estado, que era quase por motivos intelectuais que me sentia desesperado por não poder realizar, em condições únicas, sem deixar qualquer margem a um possível engano, a experiência do que nos oferece de misteriosa beleza desejada e da qual a gente se consola de nunca possuir, pelo prazer-como Swann sempre se recusara a fazer, antes de Odette - às mulheres que não deseja, de forma que morremos sem jamais ter sabido o que seria outro prazer. Sem dúvida, podia ser que na verdade não fosse um prazer desconhecido, que, de perto, o seu mistério se dissipasse, que não passasse de uma imaginação, de uma miragem do desejo. Mas, neste caso, eu só poderia atribuí-lo à necessidade de uma lei da natureza-que, aplicando-se a essas moças, seria aplicá-la a todas e não ao defeito do objeto. Pois era aquele que eu teria escolhido de todos, percebendo muito bem, com uma satisfação de botânico, não ser possível encontrar reunidas espécies mais raras do que estas jovens flores que apareciam naquele momento, à minha frente, a linha das ondas com sua ligeira semelhante a um bosquezinho de rosas da Pensilvânia, ornamento de um jardim sobre o penhasco, entre as quais cabe todo o trajeto do oceano percorrido pelo vapor, tão lento em deslizar sobre o traçado horizontal e azul que vai de um caule, que uma borboleta preguiçosa, atrasada no fundo da corola; que no casco do navio há muito ultrapassou, pode esperar, para alçar voo, estando certa que chegará antes do navio, que somente um pedaço azulado separe ainda a proa da primeira pétala da flor para qual ele navega.
      Voltei para dentro porque devia ir jantar em Rivebelle com Robert; minha avó exigia que, nesses dias, antes de partir, eu me deitasse na cama durante hora, sesta que o médico de Balbec logo me ordenou que estendesse à todas outras tardes.
      Aliás, para voltar, nem sequer havia necessidade de deixar o molhe e no hotel pelo hall, ou seja, por trás. Devido a um adiantamento comparável à sábado onde, em Combray, a gente almoçava uma hora mais cedo, agora, no auge do verão, os dias se tornavam tão longos que o sol ainda estava bem alto no céu, como numa hora de lanche, quando se punha a mesa para o jantar no Grande Hotel de Balbec. Assim, as grandes janelas envidraçadas e corrediças ficavam abertas ao mesmo nível do molhe. Bastava-me saltar uma estreita moldura de madeira para achar-me na sala de jantar, que logo deixava para tomar o elevador. Passando pelo escritório, dirigi um sorriso ao gerente e, sem sentir qualquer desagrado, percebi outro em seu rosto; pois, desde que me achava em Balbec, minha atenção compreensiva aos poucos se injetava naquela cara, transmutando-a como uma preparação de História Natural. Seus traços fisionômicos já eram usuais para mim, imbuídos de um significado medíocre sim, mas inteligível como uma escrita que se lê, e não se parecia de modo algum com os caracteres estranhos, intoleráveis, que seu rosto me apresentara naquele primeiro dia, quando vira à minha frente um personagem agora esquecido; personagem que, se me ocorria recordá-lo, julgava desconhecido, difícil de identificar com a personalidade polida e insignificante, da qual não era mais que a caricatura sumária e hedionda. Sem a timidez nem a tristeza do dia da minha chegada, toquei a campainha chamando o ascensorista, o qual agora já não ficava silencioso enquanto eu subia a seu lado no elevador, como numa caixa torácica móvel que se deslocasse ao longo da coluna vertebral, mas repetia me:

- Já não há tanta gente como há um mês. E começam a ir embora, os dias vão diminuindo.- Dizia isto não porque fosse verdade, mas porque, tendo uma colocação num hotel numa região mais quente do litoral, gostaria que todos nós fôssemos embora o mais cedo possível para que o hotel fechasse e que ele dispusesse de alguns dias de folga antes de "continuar" em seu novo emprego. "Continuar" e "novo" não eram nele expressões contraditórias, pois "continuar" era a forma usual do verbo "entrar". Espantou-me apenas que ele condescendesse em dizer "colocação", pois pertencia a esse proletariado moderno que deseja apagar na linguagem os vestígios do regime da domesticidade. Aliás, após alguns instantes, anunciou-me que, na "colocação" em que ia "continuar", teria uma "túnica" mais bonita e "honorários" melhores; as palavras "uniforme" e "salário" lhe pareciam antiquadas e inconvenientes. E, como, por uma contradição absurda, o vocabulário, apesar de tudo, sobreviveu no espírito dos "patrões" à concepção da desigualdade, eu sempre compreendia errado o que o ascensorista me dizia. Assim, a única coisa que eu desejava saber era se minha avó se encontrava no hotel. Ora, antecipando-se às minhas perguntas, o ascensorista dizia:
- Aquela senhora acaba de sair do seu quarto. 

     Eu sempre me confundia, achando que era a minha avó.

- Não, aquela senhora que é, acho eu, empregada dos senhores.

     Como na antiga linguagem burguesa, que já deveria estar abolida, um cozinheiro não é uma empregada, eu pensava por um instante:

"Mas ele se engana, nós nem temos nem fábrica nem empregados."

     De súbito, lembrava-me que a qualidade de empregado é como o aspecto do bigode para os garçons: uma satisfação; dá amor-próprio que se dá aos criados, e que aquela senhora que acabara de sair era Françoise (provavelmente em visita à cafeteria, ou a fim de ver costurar a criada do quarto da dama belga), satisfação que ainda não bastava ao ascensorista, pois costumava dizer, apiedando-se de sua classe: "o trabalhador" ou "o pequena"; servindo-se do mesmo singular de Racine quando este diz: "o pobre..." Mas, habitualmente, eu não falava com o ascensorista, pois já estavam longe a minha timidez, era o desejo de agradar dos primeiros dias. Era ele agora quem ficava sem ter respostas na curta passagem entre os andares, trajeto cujos nós precisava ir fiando através do hotel, como feito um brinquedo, e que desdobrava ao nosso redor, andar por andar, suas ramificações de corredores em cujas profundezas a luz se amaciava enfraquecia, diminuía as portas de comunicação ou os degraus das escadas interiores, que acabava convertendo naquele âmbar dourado, misterioso e inconsistente como um crepúsculo, onde Rembrandt recorta ora o peitoril de uma janela, ora a manivela de um poço. E a cada andar, um clarão dourado refletido no tapete anunciava o pôr-do-sol e a janela dos banheiros.
     Perguntava-me se as moças que acabara de ver residiam em Balbec e quem poderiam ser. Quando o desejo está deste modo orientado para uma pequena tribo humana que ele escolheu, tudo o que pode referir-se a ela se torna motivo de emoção e, depois, de fantasia. Ouvira uma senhora dizer no molhe: 

"É uma amiga da pequena Simonet" no mesmo tom de exatidão presunçosa de alguém que dissesse: "É o companheiro inseparável do pequeno de La Rochefoucauld". Logo se percebeu, no rosto da pessoa a quem eram dirigidas tais palavras, uma curiosidade de olhar melhor a pessoa privilegiada que era "amiga do pequeno Simonet". Seguramente, privilégio que não parecia ser dado a qualquer um. Pois a aristocracia é uma coisa relativa. E existem pequenos povoados onde o filho de uma negociante de móveis é o árbitro da elegância e reina numa corte como um jovem príncipe de Gales. Depois, muitas vezes procurei me lembrar de que modo ressoa para mim, na praia, esse nome de Simonet, então ainda incerto em sua forma que mal distinguira, e também quanto a sua significação, na possibilidade que designasse a esta ou aquela pessoa; em suma, envolvido dessa divagação e dessa novidade tão emocionante para nós a seguir, quando esse nome, cujas letras são a cada segundo mais profundamente gravadas em nós devido a nossa atenção permanente, se torna (o que só iria acontecer comigo, quanto à pequena Simonet, alguns anos mais tarde) o primeiro vocábulo que encontraríamos ao despertar, ou após um desmaio, mesmo antes da noção da hora presente, do lugar em que estamos quase antes da palavra "eu", como se a criatura que ele nomeia fosse mais do que nós próprios, e como se, depois de alguns momentos de inconsciência, a trégua que expira fosse aquela em que, antes de tudo, deixávamos de pensar nesse nome.
 
     Não sei por que desde o primeiro dia disse comigo que o nome de Simonet deveria ser o de uma das moças; não mais deixei de me perguntar como poderia fazer para conhecer a família Simonet; e isso por meio de pessoas que ela julgasse superiores a si mesma, o que não devia ser difícil se elas todas não passassem de garotas livres do povo, para que não formasse uma ideia desdenhosa de mim. Pois não se pode alcançar o perfeito conhecimento nem efetuar a absorção completa de quem nos desdenha, enquanto não se tiver vencido esse desdém. Ora, de cada vez que a imagem de mulheres tão diversas penetra em nós, a menos que o esquecimento ou a concorrência de outras imagens a elimine, já não temos sossego enquanto não tenhamos convertido essas estranhas em algo semelhante a nós mesmos, pois nossa alma é, sob esse aspecto, dotada do mesmo tipo de reação e de atividade do nosso organismo físico, o qual não pode tolerar a intromissão, em seu seio, de um corpo estranho sem se empenhar imediatamente em digerir e assimilar o intruso. A pequena Simonet devia ser a mais bonita de todas e, aliás, a que chegasse talvez um dia a ser minha amante, pois fora a única a reparar, duas ou três vezes, na fixidez dos meus olhares, voltando ao meio a cabeça. Perguntei ao ascensorista se acaso não conhecia os Simonet em Balbec. Não gostando de confessar que ignorava alguma coisa, ele respondeu que lhe parecera já ter ouvido falar nesse nome. Chegado ao último andar, pedi-lhe que me mandasse a lista dos hóspedes recém-chegados. 
     Saí do elevador, mas, em vez de ir para o meu quarto, continuei pelo corredor, pois àquela hora o camareiro daquele piso, embora temesse as correntes de ar, abrira a janela dos fundos, a qual olhava, em vez do mar, para os lados da colina e do vale, mas não os deixava ver nunca, pois seus vidros eram opacos e estavam quase sempre cerrados. Parei por um momento à sua frente, o tempo de prestar a devida devoção à "vista" que por uma vez me oferecia, para além da colina a que se encostava o hotel, e que só continha uma casa, edificada a certa distância, mas à qual a perspectiva e a luz da tarde, conservando-lhe o volume, davam um burilamento precioso e um escrínio de veludo, como uma dessas arquiteturas em miniatura, pequeno templo ou pequena capela de ourivesaria e esmaltes que servem de relicário e que só em alguns dias são expostas à veneração dos fiéis. Mas aquele instante de adoração já durara demais, pois o camareiro que segurava numa das mãos o molho de chaves e com a outra me cumprimentava, tocando sua calota de sacristão mas sem erguê-la, devido ao ar fresco e puro do entardecer, vinha fechar as duas folhas da janela, como quem fecha as portas de um relicário e subtraía à minha adoração o monumento reduzido e a relíquia de ouro. Entrei no meu quarto. À medida que a estação avançava, mudava o quadro que se avistava da janela. No princípio, havia muita claridade e só fazia sombra se o tempo ficava mau. Desde então, no vidro glauco a que o mar parecia intumescer com suas vagas redonda engastado entre os caixilhos de ferro de minha janela como entre os chumbos de um vitral, desfiava, em toda a profunda orla rochosa da baía, triângulos empenachados de uma espuma imóvel delineada com a delicadeza de uma pena ou de uma pluma desenhada por Pisanello, e fixadas por esse esmalte branco, inalterável e cremoso que figura uma camada de neve nos trabalhos em vidro de Gallé.
     Em breve os dias diminuíram e, no momento em que eu entrava no quarto, o céu violáceo, que parecia estigmatizado pela figura rígida, geométrica, passageiro e fulgurante do sol (semelhante à representação de algum sinal milagroso, de alguma aparição mística), se inclinava para o mar sobre a dobradiça do horizonte como um quadro religioso por cima do altar-mor, enquanto as diferentes partes do ocaso, expostas nos vidros das estantes baixas de mogno, que corriam ao longo das paredes -e que eu reportava em pensamento à maravilhosa pintura de que se destacavam -, pareciam-se com essas cenas diversas que algum mestre antigo realizou outrora para uma confraria sobre um relicário, e dos quais se exibem lado a lado, numa sala de museu, os painéis separados que só a imaginação do visitante volta a pôr em seu lugar sobre as predelas do retábulo. Algumas semanas mais tarde, quando eu subia, o sol já se havia posto. Semelhante àquela que eu via em Combray por cima do Calvário, quando voltava do passeio e me apressava a descer à cozinha antes do jantar; uma faixa de céu rubro ficava por sobre o mar compacto e recortado como carne congelada e, um instante após, sobre o mar já frio e azulado como o peixe a que chamam de tainha, o céu, do mesmo tom rosado de um desses salmões que dali a pouco nos iriam servir em Rivebelle, reavivava o prazer que eu teria em vestir a casaca para ir jantar. No mar, e bem perto da margem, tentavam elevar-se, uns sobre os outros, em camadas cada vez mais amplas, vapores de um negro de fuligem mas também de um polimento e de uma consistência de ágata, de um peso visível, de modo que os mais elevados, inclinando-se sobre a haste deformada e até para fora do centro de gravidade dos que até então os haviam sustentado, pareciam estar a ponto de arrastar toda aquela armação já a meio caminho do céu, e precipitá-la no mar. A vista de um barco que se afastava como um viajante noturno dava-me a mesma impressão, que já tinha tido no trem, de estar liberado das necessidades do sono e do enclausuramento em um quarto. Aliás, já não me sentia prisioneiro no quarto em que me achava, pois, dentro de uma hora, ia deixá-lo para entrar num carro. Atirei-me na cama; e sentia-me cercado por todos os lados de imagens do mar, como se estivesse no beliche de um desses barcos que via passar bem perto de mim, barcos que depois, durante a noite, nos assombraria ver deslocarem-se lentamente na escuridão, como cisnes sombrios e silenciosos mas que não dormem.
     Mas muitas vezes, de fato, não passavam de imagens; esquecia-me que, por trás dessas cores, cavava-se o triste vazio da praia, percorrida pelo vento inquieto da noite que eu tão intensamente sentira na chegada a Balbec; além do mais, mesmo em meu quarto, todo preocupado com as moças que vira passar, já não me sentia com disposição tão calma nem tão desinteressada para que pudessem produzir-se em meu espírito impressões verdadeiramente profundas de beleza. A espera pelo jantar em Rivebelle fazia meu humor ainda mais frívolo, e meu pensamento, ocupando nesses momentos a superfície do corpo, que eu ia vestir para tentar parecer o mais agradável possível aos olhos femininos que em mim se demorariam no restaurante iluminado, era incapaz de imaginar qualquer profundidade sob o colorido das coisas. E, se, debaixo da minha janela, o voo macio e incansável dos ferreiros e das andorinhas não subisse como um repuxo, como uma girândola de vida, unindo o intervalo de seus altos foguetes com a fieira imóvel e branca dos longos sulcos horizontais, se não fosse o encantador milagre desse fenômeno natural local que una à realidade as paisagens que tinha diante dos olhos, eu poderia acreditar que não passavam de uma seleção, todo dia renovada, de pinturas que me mostravam arbitrariamente no local em que me achava e sem que tivessem relação obrigatória com este. Às vezes era uma exposição de estampas japonesas: ao lado do delgado recorte do sol, rubro e redondo como a lua, uma nuvem amarela parecia um lago, contra o qual os negros gladíolos se levantavam, como se fossem árvores plantadas à margem; uma faixa de um rosa suave, como jamais voltara a ver desde a minha primeira caixa de lápis de cor, inchava-se como um rio, em cujas margens os barquinhos pareciam estar esperando, em seco, que os pusessem para flutuar. E com o olhar desdenhoso, entediado e frívolo de um amador ou de uma mulher que percorre uma galeria entre duas visitas mundanas, murmurava comigo mesmo: "Curioso, este pôr-do-sol; é estranho; mas enfim, já vi outros tão delicados e espantosos como este." Mais me agradavam as tardes em que um navio absorvido e tornado fluido pelo horizonte surgia exatamente da mesma cor que ele, assim como numa tela impressionista, de tal modo que parecia ser também da mesma matéria, como se sua proa e os cordames não passassem de recortes feitos no azul vaporoso do céu, que neles se fazia mais sutil e filigranado. Às vezes o oceano enchia quase toda a minha janela, aumentada como estava por uma faixa de céu bordada no alto apenas por uma linha que era do mesmo azul do mar, mas que, por isso mesmo, eu imaginava ser ainda o mar, atribuindo sua tonalidade diferente a um efeito de luz. Em outra ocasião, o mar só se pintava na parte inferior da janela, estando todo o espaço restante coberto de tantas nuvens amontoadas umas contra as outras, em bandas horizontais, que as janelas pareciam, por premeditação ou especialidade do artista, apresentar um "estudo de nuvens", ao passo que as diferentes vitrinas das estantes, mostrando nuvens semelhantes, mas em outra parte do horizonte e diversamente coloridas pela luz, pareciam oferecer como que a repetição, cara a certos mestres contemporâneos, de um só e mesmo efeito, apanhado sempre em horas diferentes, mas que agora, com a imobilidade da arte, podiam ser todos vistos em conjunto em uma mesma habitação, executados a pastel e cada qual sob seu vidro. E às vezes, no céu e no mar uniformemente cinzentos, um leve tom rosado se ajuntava com delicado requinte, enquanto uma borboleta adormecida na parte inferior da janela parecia apor com suas asas junto daquela "harmonia em cinza e rosa" ao gosto das de Whistler, a assinatura predileta do mestre de Chelsea. Até mesmo o tom de rosa desaparecia; nada mais havia para olhar. Levantava-me por um momento e, antes de me estender de novo na cama, fechava as longas cortinas. Acima delas, via, da cama, a raia de claridade que ainda restava ensombrecer-se e diminuir progressivamente; mas era sem tristeza nem nostalgia que deixava assim morrer, no alto das cortinas, a hora em que de hábito estava à mesa, pois sabia que este dia era diferente dos outros, mais comprido como os dias polares, que a noite só interrompe durante alguns minutos; sabia que da crisálida desse crepúsculo se preparava para sair, por uma radiosa metamorfose, a luz deslumbrante do restaurante de Rivebelle. Dizia-me: "é hora"; espreguiçava-me na cama, erguia-me, concluía a toalete; e achava uma delícia esses momentos inúteis, livres de todo peso material, onde, enquanto os outros estavam embaixo jantando, eu empregava as forças acumuladas pela inatividade daquele fim de dia apenas em secar o corpo, vestir o smoking, dar o nó na gravata, fazer todos esses gestos já dominados pelo prazer esperado de rever uma mulher que vira da última vez que fora a Rivebelle, que parecera olhar-me, e que só se levantara um instante da mesa talvez na esperança de que a seguisse; era com muita alegria que me enfeitava com todos aqueles atrativos para entregar-me inteiramente a um vida nova, livre e despreocupada, em que apoiaria minhas indecisões na calma da Saint-Loup e escolheria, entre as espécies da História Natural e as provenientes de todas as regiões, aquelas que, formando os pratos inusitados logo encomendados pelo meu amigo, teriam tentado a minha gulodice ou a minha imaginação.
     Por fim chegaram os dias em que eu não podia mais entrar no hotel ao voltar do molhe, pelas janelas do refeitório. Os vidros já não estavam abertos, pois era noite lá fora e o enxame de pobres e de curiosos, atraídos pelo resplendor inacessível para eles, pendia, em negros cachos enregelados pelas paredes luminosas e escorregadias da colmeia de vidro.
     Bateram; era Aimé, que fizera questão de entregar-me em mão própria as últimas listas de hóspedes. Antes de se retirar, Aimé insistiu em afirmar que Dreyfus era mil vezes culpado.

- Vão saber de tudo – disse-me. - Não neste ano, mas no ano que vem. Foi um senhor muito relacionado no Estado-Maior quem me falou. Perguntei se não se resolveriam a descobrir tudo de uma vez antes do fim do ano. - Ele pousou o cigarro - continuou Aimé, imitando a cena e sacudindo a cabeça indicando, como fizera o seu hóspede, como se dissesse: não é necessário ser exigente demais. - Não este ano, Aimé - foi o que me disse batendo-me no ombro -, não é possível. Mas na Páscoa, sim! - E Aimé bateu-me de leve no ombro dizendo: - Veja, estou mostrando exatamente como ele fez seja por estar lisonjeado com aquela familiaridade de um grande personagem, seja para que eu pudesse melhor apreciar, com pleno conhecimento de causa, o valor do argumento e nossos motivos de esperança.

continua na página 165...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Primeira Parte
Segunda Parte
À Sombra das Moças em Flor (Nomes de Lugares: o Lugar - n)
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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