terça-feira, 8 de abril de 2025

A Montanha Mágica - O termômetro (a)

Thomas Mann


A Montanha Mágica 

Capítulo IV

O termômetro

     A semana de Hans Castorp ia de terça a terça-feira, visto ele ter chegado numa terça-feira. Já fazia alguns dias que liquidara a conta da segunda semana – com a importância modesta de uns cento e sessenta francos, razoável e justificada segundo a sua própria opinião, mesmo que deixassem de ser consideradas as vantagens impagáveis da estadia ali, justamente por ser impossível pagar por elas, e embora figurassem nela certos suplementos que poderiam ser faturados, se assim o quisessem, como, por exemplo, o concerto bimensal e as conferências do Dr. Krokowski. O total de cento e sessenta francos referia-se exclusivamente à pensão propriamente dita, ao que oferecia o hotel como tal, à hospedagem confortável e às cinco refeições reforçadíssimas.

– Não é caro, não; é até barato, e você não pode se queixar de ser explorado aqui em cima – disse o visitante ao morador antigo. – Você gasta, em média, uns seiscentos e cinqüenta francos por mês com o quarto e a comida, e nisso já está incluído o tratamento médico. Muito bem! Admitamos que você gaste ainda uns trinta francos por mês em gorjetas, porque quer mostrar-se generoso e faz questão de ver em toda parte caras sorridentes. Temos então seiscentos e oitenta francos. Você vai me dizer que existem ainda extras e despesas por fora. Vai-se algum dinheiro para bebidas, para cosméticos e charutos; de vez em quando se faz uma excursão, um passeio de carro, e um dia vem a conta do alfaiate ou do sapateiro. Perfeitamente! Mas com tudo isso, você não consegue, nem querendo, ir além de mil francos por mês. Não são nem sequer oitocentos! O total não chega a dez mil francos por ano. Disso não passa. É o que você gasta...
– Grau dez em cálculo mental – disse Joachim. – Eu nem sabia que você era tão forte nisso. E acho mesmo generoso da sua parte fazer logo a conta do ano inteiro. Mas você exagerou a despesa. Eu não fumo charutos e não tenciono chegar à situação de precisar de roupas novas aqui; não, senhor!
 – Bem, então é ainda menos – disse Hans Castorp um tanto confuso. Mas, fossem quais fossem os motivos que o haviam induzido a incluir na conta do primo charutos e roupas novas, a rapidez do seu cálculo mental não passava de uma ilusão, e Joachim se enganara a respeito dos dons naturais do primo. Pois, nesse terreno como em todos os outros, Hans Castorp era antes lerdo e pouco inspirado. No caso em apreço, não se tratava de uma improvisação, realizada com tamanha facilidade, senão do produto de um trabalho executado por escrito: uma noite, durante o repouso – pois também ele acabara por deitar-se depois do jantar, já que todo mundo o fazia –, levantara-se especialmente da sua magnífica espreguiçadeira e, obedecendo a um súbito impulso, fora ao quarto buscar papel e um lápis para calcular. Dessa forma verificara que seu primo – ou melhor, que um pensionista do sanatório – precisava, tudo incluído, de uns doze mil francos por ano, e convencera-se, assim por brincadeira, de que ele próprio estava financeiramente mais do que à altura das despesas exigidas ali em cima, uma vez que dispunha de dezoito a dezenove mil francos por ano.

     Sua segunda conta semanal fora, portanto, liquidada havia três dias, e ele recebera o devido recibo e agradecimento. Significava isso que Hans Castorp alcançara a metade da terceira e, segundo os seus planos, da última semana da sua estadia. No domingo próximo assistiria a mais um dos concertos quinzenais; na segunda-feira escutaria outra das conferências igualmente bimensais do Dr. Krokowski – assim disse de si para si e também o declarou a Joachim. Mas na terça ou quarta-feira partiria e deixaria o primo sozinho, o pobre do Joachim, a cuja pena Radamanto voltara a acrescentar sabe Deus quantos meses, e cujos olhos meigos e negros se cobriam de um véu melancólico, cada vez que se falava da partida iminente de Hans Castorp. Cruzes! Como tinham corrido essas férias! Haviam voado, fugido, evaporado – não se podia dizer como. Eram, afinal de contas, vinte e um dias que os dois primos deviam passar em companhia um do outro, uma longa série cujo fim, no início, parecia muito distante. E agora, de repente, não sobravam mais que três ou quatro míseros dias, um resto insignificante, que, na verdade, se tornava um pouco mais importante pelas duas variantes periódicas do programa habitual, mas sobre o qual já pesava o pressentimento da arrumação das malas e da despedida. Três semanas não representavam quase nada ali em cima – todos o haviam prevenido desse fato. A menor unidade de tempo era ali o mês – dissera Settembrini, e como a estadia de Hans Castorp no Berghof não chegasse a tanto, era uma permanência de nada; não passava de uma visita de médico, como a qualificara o Dr. Behrens. Talvez fosse devido ao aumento da combustão geral que o tempo corria ali tão vertiginosamente? Tal rapidez de vida podia, afinal, servir de consolo a Joachim, quando ele pensava nos cinco meses que tinha à sua frente, contando que não houvesse mais do que isso. Mas, durante essas três semanas deveria ter prestado maior atenção ao curso do tempo, assim como se fazia ao tomar-se a temperatura, quando os sete minutos regulamentares se convertiam num lapso de tempo considerável... Hans Castorp sentia sincera compaixão pelo primo, em cujos olhos se podia ler a mágoa de perder em breve o companheiro; com efeito, experimentava a mais viva compaixão, pensando em que o coitado permaneceria dali por diante sem ele, que tornaria a viver na planície e trabalharia a serviço da técnica das comunicações que ligavam os países. Era uma compaixão tão ardente que em certos momentos lhe doía o coração, e tão viva que às vezes o fazia perguntar seriamente a si mesmo se teria a coragem de deixar Joachim sozinho ali em cima. E justamente por ser esse sentimento tão ardente, Hans Castorp evitava o mais possível falar da sua partida. Era Joachim quem de vez em quando dirigia a conversa para ela, pois Hans Castorp, como já acabamos de dizer, pareceu, por tato e delicadeza naturais, esquivar-se a esse assunto até o último instante.

– Tomara – disse Joachim – que você ao menos tenha descansado aqui, e que lá embaixo se sinta mais forte. 
– Sim, vou dar lembranças a todo mundo – respondeu Hans Castorp – e dizer que você voltará daqui a cinco meses, o mais tardar. Você disse “descansado”? Se eu descansei bem nestes poucos dias? Acho que sim. Creio que mesmo um tempo tão curto deve fazer bem à gente. É verdade que as impressões que recebi aqui foram muito estranhas, estranhas sob todos os pontos de vista, e assim lhes devo grande número de ideias novas; mas também foram fatigantes, tanto para o corpo como para o espírito. Não me parece que já digeri tudo isso e que me aclimatei, o que seria a base de todo descanso. O Maria, graças a Deus, voltou a ter o mesmo sabor de antes. Faz alguns dias que gosto dele novamente. Mas acontece ainda às vezes, quando me assoo, que meu lenço se tinja de vermelho, e este maldito ardor do rosto junto com aquelas absurdas palpitações não me abandonarão, ao que penso, até o fim da minha estadia. Não, senhor! Não se pode falar, no meu caso, de aclimatação. E nem é possível com tão pouco tempo! Seria preciso uma permanência mais longa para a gente se adaptar e assimilar as impressões novas, antes que se possa começar com o descanso e o tal acúmulo de proteínas. É uma lástima! Digo “lástima”, porque certamente foi um erro da minha parte não ter reservado mais tempo para esta viagem, porque era fácil consegui-lo. Assim me parece que lá em casa, na planície, terei antes de mais nada de descansar deste descanso. Vou dormir três semanas a fio, tão esgotado estou. E infelizmente tenho ainda este cata

     Com efeito, Hans Castorp parecia fadado a regressar à planície com um resfriado de primeira classe. Constipara-se, provavelmente durante o repouso, e para fazermos uma segunda conjetura, durante o repouso noturno, do qual participava havia uma semana, apesar do tempo frio e úmido, que não dava mostras de melhorar antes da sua partida. Mas ficara sabendo que esse tempo não era considerado mau. O conceito de mau tempo não existia, propriamente, ali em cima; não se temia tempo nenhum; mal se preocupavam com a sua qualidade; e com a docilidade elástica peculiar à juventude, com toda a sua facilidade de adaptação às ideias e aos hábitos do ambiente ao qual se achava transferido, Hans Castorp pusera-se a imitar essa indiferença. Quando chovia a cântaros, não se devia pensar que por isso o ar fosse menos seco. E não parecia mesmo sê-lo, pois a gente continuava a ter a cabeça em brasa, como se se achasse numa peça superaquecida ou tivesse tomado muito vinho. No que se refere ao frio, que era forte, teria sido insensato refugiar-se no quarto para escapar dele. Enquanto não nevasse, não se acendia a calefação central, e sentar-se no quarto não era mais confortável do que ficar deitado no compartimento da sacada, agasalhado com um sobretudo de inverno e envolto, conforme as regras, em dois bons cobertores de pelo de camelo. Bem ao contrário, essa última posição era infinitamente mais cômoda; era, nem mais nem menos, a posição mais prazenteira que Hans Castorp se recordava já ter experimentado – opinião que não mudaria pelo fato de um literato e carbonário a qualificar, com uma segunda intenção equívoca e maliciosa, de posição “horizontal”. Principalmente à noite, ela lhe agradava muito, quando a lampadazinha acesa luzia na mesinha a seu lado, e Hans Castorp, bem embrulhado nos cobertores cálidos, tendo entre os dentes o Maria Mancini, de sabor reencontrado, entregava-se ao gozo das vantagens dificilmente definíveis que oferecia esse tipo de cadeira; gozava-as, embora com a ponta do nariz gelada e as mãos que seguravam um livro – ainda o Ocean steamships – rígidas e avermelhadas pelo frio, olhando através dos arcos da loggia para o vale cada vez mais escuro, com as luzes ora dispersas ora aglomeradas, e escutando a música que dali vinha quase todas as noites durante uma hora, sons agradavelmente abafados, familiares e melodiosos: fragmentos de óperas – trechos de Carmen, do Trovador, do Freischütz –, valsas ligeiras, marchas que faziam com que a gente marcasse o ritmo com a cabeça, e alegres mazurcas. Mazurca? Em realidade ela se chamava Marusja, a mocinha com o pequeno rubi, e no compartimento vizinho, atrás da espessa parede de vidro opaco, jazia Joachim. De vez em quando, Hans Castorp trocava com ele algumas palavras em voz baixa, procurando não incomodar os outros “horizontais”. No seu compartimento, Joachim achava-se tão bem instalado quanto Hans Castorp, se bem que não entendesse de música e não soubesse achar prazer nos concertos noturnos. Tanto pior para ele! Em vez disso, lia provavelmente a sua gramática russa. Hans Castorp, porém, deixava o Ocean steamships descansar sobre o cobertor e saboreava com sincera simpatia os sons da música, sondando completamente a profundeza translúcida do seu feitio e encontrando tão franco deleite em determinada invenção musical cheia de caráter e de graça, que só com hostilidade recordava as coisas que Settembrini dissera a respeito da música, considerações irritantes, no sentido de ser ela politicamente suspeita, e que, realmente, não valiam mais do que o dito do avô Giuseppe sobre a Revolução de Julho e os seis dias do Gênese...
     Joachim não participava, portanto, do gozo musical e ignorava também a distração aromática do tabaco. Mas, fora isso, estava no seu compartimento igualmente agasalhado, estendido num abrigo pacato. Terminara o dia, terminara tudo por essa vez, e podia-se ter certeza de que nada mais se produziria, que já não haveria emoções, que mais nenhum esforço se exigiria do músculo cardíaco. Mas ao mesmo tempo não havia dúvida de que no dia seguinte tudo voltaria a repetir-se e recomeçaria, com toda a probabilidade que acarretava essa existência monótona, garantida e regular. E essa dupla segurança era sumamente reconfortante; unida à música e ao sabor ressuscitado do Maria, fazia com que o repouso da noite representasse para Hans Castorp um estado de verdadeira felicidade.
     Mas tudo isso não impedira que o visitante e noviço pouco resistente se houvesse gripado violentamente durante o repouso ou em qualquer outra ocasião. Anunciava-se um intenso resfriado, que se instalara na cavidade frontal, comprimindo-a. A úvula estava irritada e dolorida. O ar não passava normalmente pelo canal que a natureza destinava a esse fim; atravessava-o, frio, com dificuldade, provocando incessantes acessos de tosse. A voz de Hans Castorp adquirira de um dia para outro a tonalidade de um contrabaixo surdo, como que macerado por bebidas fortes. Segundo ele dizia, não pregara olho durante a noite, porque uma secura sufocante da garganta o sobressaltara de quando em quando.

– É bem desagradável – disse Joachim. – É quase escandaloso. Você deve saber que aqui em cima os resfriados não são permitidos, que se nega a sua existência. Oficialmente, são impossíveis, com esse ar seco, e um paciente que se apresentasse ao Behrens como gripado seria muito mal recebido. Bem, com você o caso é diferente. Você, afinal, pode se permitir uma coisa dessas. Seria bom se conseguíssemos cortar a gripe. Lá na planície há métodos de fazê-lo, mas aqui... Não acho que o seu caso vá despertar grande interesse. É preferível não adoecer aqui, porque ninguém se preocupa com a gente. Isto é uma velha regra que você pode aprender ainda antes de partir. Quando cheguei aqui, havia uma senhora que durante uma semana a fio tapou a orelha com a mão e gemeu de dor. Finalmente, o Behrens foi examiná-la. “A senhora pode ficar completamente tranquila”, disse ele. “Isso não vem da tuberculose.” E nisso ficou a coisa. Sim, senhor! Temos que dar um jeito. Amanhã falarei com o massagista, quando ele vier ao meu quarto. Com ele começa a via hierárquica, e dali o caso passará pelos canais regulamentares. E, talvez, acabem fazendo qualquer coisa por você.

     Assim falou Joachim, e a via hierárquica foi brilhantemente posta à prova. Na sexta-feira, quando Hans Castorp regressou do passeio matinal, bateram à sua porta, e daí resultou uma oportunidade para travar conhecimento pessoal com a enfermeira-chefe, Srta. von Mylendonk, ou Superiora, como a chamavam. Até então, enxergara apenas de longe essa personagem aparentemente muito ocupada; vira-a sair do quarto de um enfermo, para atravessar o corredor e entrar em outro quarto do lado oposto; ou ouvira-lhe a voz coaxante, durante uma das suas rápidas passagens pela sala de refeições. Desta vez, porém, a visita destinava-se a ele próprio. Atraída pela sua gripe, dera com os ossudos dedos rápidas batidas à porta do aposento. Transpôs o limiar, ainda antes de ele dizer “Entre”, e deteve-se por um instante, para certificar-se do número do quarto.

– Trinta e quatro – coaxou sem abafar a voz. – Está certo. Escute, rapaz, on me dit que vous avez pris froid. I hear you have caught a cold. Wy, cajetsia, prostudilisj – e continuou em alemão: – Ouvi dizer que está resfriado. Qual é a língua que compreende? Ah, já vejo que é alemão. Pois é, a visita do jovem Ziemssen, já sei. Estão esperando por mim na sala de operações, por causa de um indivíduo que será anestesiado e acaba de comer salada de feijão. Quando a gente não tem os olhos em toda parte... Então, rapaz, acha mesmo que se resfriou aqui?

     Hans Castorp ficou perplexo ante esse linguajar de uma senhora da alta aristocracia. Enquanto ela falava, parecia passar por cima das suas próprias palavras, voltando a cabeça de cá para lá, num movimento irrequieto, circular, e erguendo o nariz, como para farejar, assim como fazem as feras na jaula. A mão direita sardenta, apenas cerrada, com o polegar levantado, bamboleava no punho, como para dizer: “Depressa, depressa! Não escute o que eu digo! Fale, afinal, para que eu possa sair”. Era uma quarentona, de reduzida estatura, sem formas atraentes, vestida de jaleco branco, cinturado, de hospital, e trazia sobre o peito uma cruz adornada de granadas. Sob a touca de enfermeira apareciam uns escassos cabelos arruivados; o olhar parecia inseguro, e num dos olhos congestionados, de um azul aquoso, havia um terçol bastante adiantado. O nariz era arrebitado, e a boca tinha algo de sapo, enquanto o lábio inferior avançava obliquamente e fazia, ao falar, um movimento de pá. Hans Castorp, não obstante, contemplou a Srta. von Mylendonk com toda a afabilidade singela, cheia de indulgência e confiança, que lhe era peculiar.

– Que tipo de resfriado é esse? – voltou a enfermeira-chefe a perguntar, esforçando-se por dar a seus olhos uma insistência penetrante, o que no entanto não conseguiu, porque seu olhar se desviava logo. – Não gostamos de resfriados. Resfria-se com frequência? Seu primo também se resfria a cada instante, não é? Que idade tem o senhor? Vinte e quatro? É uma idade perigosa. Só agora chegou aqui e já se resfriou? Num caso desses não convém falar de resfriado, meu prezado rapaz. Isto é lero-lero lá embaixo. – A palavra “lero-lero” soava horrorosa e extravagante na sua boca, proferida com aquele movimento de pá do lábio inferior. – O senhor tem um belíssimo catarro nas vias respiratórias; isso não se discute, basta ver os seus olhos. – E de novo ela fez a estranha tentativa de encará-lo com um olhar penetrante, sem que dessa vez tivesse melhor êxito. – Mas catarros não vêm do frio. Eles vêm é de uma infecção para a qual a gente está predisposta. Agora resta apenas saber se se trata ou não de uma infecção inofensiva. Todo o resto é lero-lero. – Mais uma vez essa palavra repugnante! – É bem possível que no seu caso a predisposição tenha caráter inócuo – acrescentou fitando-o de um modo inexplicável, com o terçol adiantado. – Aqui tenho um simples antisséptico, pode ser que lhe faça bem. – Com isso tirou da bolsa de couro negro, que lhe pendia do cinturão, um pequeno embrulho que colocou na mesa. Era Formaminto. – Mas o senhor me parece corado, como se tivesse febre. – Ela não parava de fitá-lo, com um olhar que sempre se afastava do seu alvo. – Já tomou a temperatura? 

     Hans Castorp disse que não.

– Por que não? – perguntou, e o lábio inferior, avançado obliquamente, permaneceu nessa posição... 

     Ele não respondeu. O bom Hans Castorp era ainda muito jovem e conservara o hábito do silêncio, próprio dos colegiais que se plantam na carteira, nada sabem e por isso se calam.

– O senhor não toma nunca a sua temperatura? 
– Tomo, Srª. Superiora; quando estou com febre, tomo. 
– Olhe, meu rapaz, a gente toma a temperatura justamente para ver se tem ou não tem febre. E segundo a sua opinião não está com febre, no momento? 
– Não sei, Srª. Superiora. Não tenho certeza. Desde que cheguei aqui já sinto ao mesmo tempo calor e frio. 
– Hum, hum! E onde está o seu termômetro? 
– Não trouxe nenhum comigo, Srª. Superiora. Para quê? Eu vim aqui apenas de visita. Estou bem de saúde. 
– Lero-lero! O senhor me mandou chamar porque está bem de saúde?  
– Não, senhora – riu-se ele cortesmente. 
– Mas porque estou um pouco... – ...resfriado. Já vi muito resfriado desses. Aqui, tome! – disse ela e pôs-se novamente a mexer na bolsa. Por fim retirou dois estojos alongados, de couro, um preto e outro vermelho, que colocou igualmente na mesa. – Este custa três francos e este custa cinco. Claro que o senhor fica melhor servido com o de cinco. É para toda a vida, se o manejar com cuidado. 

     Sorrindo, Hans Castorp tirou da mesa o estojo vermelho.
     Abriu-o. Faceiro como uma joia, jazia o utensílio de vidro na concavidade exatamente adaptada à sua forma e forrada de veludo encarnado. Os graus completos eram marcados com riscas vermelhas, e os décimos, com riscas pretas. Os números eram vermelhos. A parte inferior, que ia se adelgaçando, estava cheia de cintilante mercúrio. A coluna aparecia baixa, marcando uma temperatura muito inferior ao grau normal do calor animal.
     Hans Castorp não ignorava o que devia a si mesmo e ao seu prestígio.

– Vou comprar este – disse, sem prestar a mínima atenção ao outro. – O de cinco. Será que lhe posso... 
– Feito! – coaxou a enfermeira-chefe. – Não convém fazer economias quando se trata de compras importantes. Não há pressa, que vão pô-lo na conta. Deixe-me vê-lo. Para começar, vamos fazê-lo descer completamente, assim. – Tirou-lhe o termômetro da mão e agitou-o repetidas vezes no ar, fazendo com que a coluna de mercúrio parasse abaixo de 35. – Já vai subir, o mercúrio, já vai subir – acrescentou. – E agora tome a sua aquisição. Sem dúvida já sabe como se procede aqui. Debaixo da sua prezada língua, durante sete minutos, quatro vezes por dia, e mantenha bem fechadinhos os seus simpáticos lábios. Adeusinho, meu rapaz. Desejo-lhe um bom resultado. – E saiu do quarto. 

     Hans Castorp, que fizera uma mesura, quedava-se junto à mesinha, e seu olhar passava da porta pela qual saíra a enfermeira-chefe ao instrumento que ela deixara. “Então é essa a Srta. von Mylendonk”, disse de si para si. “Settembrini não gosta dela, e realmente ela tem seus lados ruins. O terçol não é nada bonito, mas isso, com certeza, não é permanente. Mas por que me chama sempre de ‘rapaz’? Que rudeza estranha! E logo me vendeu um termômetro. Anda sempre com alguns na bolsa. Parece que aqui há termômetros em toda parte, em qualquer loja, inclusive nos lugares onde ninguém os esperaria encontrar, segundo afirma Joachim. Ora, eu nem tive o trabalho de procurar um, pois já me caiu nas mãos.” Tirou do estojo o frágil objeto, contemplou o e pôs-se a andar nervosamente pelo quarto. Seu coração batia depressa e violentamente. Lançou um olhar para a porta aberta da sacada. A seguir fez menção de se encaminhar à do quarto, na intenção de ir ter com Joachim. Mas desistiu disso e deixou-se ficar de pé, perto da mesa, pigarreando, para verificar a rouquidão. Depois tossiu francamente. “Pois é, agora vou ver se o resfriado me deu febre”, falou com os seus botões, enquanto introduzia, num movimento rápido, o termômetro na boca, com a ponta de mercúrio sob a língua, de modo que o instrumento, apontando obliquamente para cima, saía por entre os lábios que ele cerrava bem para não dar entrada ao ar. Feito isso, olhou o relógio de pulso. Eram nove e trinta e seis. E começou a esperar que decorressem sete minutos.

“Nem um segundo a mais”, pensou, “nem um a menos. Em mim podem ter confiança, nas duas direções. Não há necessidade de me dar uma ‘irmã muda’, como àquela criatura de que falou Settembrini, a tal Ottilie Kneifer.” A seguir pôs-se a passear pelo quarto, comprimindo o instrumento com a língua. 

continua pág 109...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
O termômetro (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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