segunda-feira, 7 de abril de 2025

Stendhal - O Vermelho e o Negro: (XLIII)

Livro II

Ela não é galante,
não usa ruge algum.


Sainte-Beuve

Capítulo XLIII


     UMA HORA DEPOIS, quando dormia profundamente, foi despertado por lágrimas que sentia escorrerem sobre sua mão. Ah! É Mathilde outra vez, pensou, ainda meio adormecido. Ela vem, fiel à sua teoria, atacar minha resolução com sentimentos ternos. Aborrecido com a perspectiva dessa nova cena de gênero patético, não abriu os olhos. Os versos de Belphégor, fugindo de sua mulher, vieram-lhe à memória. 
     Ele ouviu um suspiro singular, abriu os olhos: era a sra. de Rênal.

– Ah! Te revejo antes de morrer, será uma ilusão?, exclamou, lançando-se aos pés dela. Mas perdão, senhora, sou apenas um assassino a seus olhos, disse em seguida, voltando a si.
– Senhor... Venho conjurá-lo a apelar, sei que não quer isso... Os soluços a sufocavam, ela não conseguia falar.
– Digne-se perdoar-me.
– Se queres que te perdoe, disse ela levantando-se e jogando-se nos braços dele, apela imediatamente de tua sentença de morte.

      Julien a cobriu de beijos.

– Virás me ver todos os dias nesses dois meses?
– Juro que o farei. Todos os dias, a menos que meu marido proíba.
– Eu assino!, exclamou Julien. Então me perdoas! Será possível?

      Ele a apertava nos braços, estava louco de felicidade. Ela deu um pequeno grito.

– Não foi nada, ela disse, machucaste-me.– Em teu ombro, disse Julien, desfazendo-se em lágrimas. Afastou-se um pouco e cobriu a mão dela de beijos ardentes. Quem me diria isso na última vez que te vi, em teu quarto, em Verrières?
– Quem me diria então que eu escreveria ao sr. de la Mole aquela carta infame?
– Saibas que sempre te amei, que não amei senão a ti.
– É mesmo possível?, exclamou a sra. de Rênal, também arrebatada. Apoiou-se contra Julien, que estava a seus joelhos, e por muito tempo choraram em silêncio.

      Em nenhuma época de sua vida Julien tivera um momento assim. 
      Muito tempo depois, quando puderam falar, a sra. de Rênal disse:

– E essa jovem sra. Michelet, ou melhor, essa srta. de La Mole? Pois na verdade começo a acreditar nesse estranho romance!
– Ele só é verdadeiro na aparência, respondeu Julien. Ela é minha mulher, mas não é minha amante.

      Interrompendo-se inúmeras vezes um ao outro, eles conseguiram com muito esforço contar mutuamente o que ignoravam. A carta escrita ao sr. de La Mole fora redigida pelo jovem padre que dirigia a consciência da sra. de Rênal, e a seguir copiada por ela.

– Que horror a religião me fez cometer!, ela dizia; e ainda assim suavizei as passagens mais terríveis dessa carta....

      Os transportes e a felicidade de Julien provavam-lhe o quanto ele a perdoava. Nunca ele estivera tão louco de amor.

– Acredito-me no entanto piedosa, disse a sra. de Rênal na continuação da conversa. Creio sinceramente em Deus; creio igualmente, e disso tenho a prova, que o crime que cometo é terrível, e a partir do momento em que te vejo, mesmo depois que me disparaste dois tiros de pistola... E aqui, contra sua vontade, Julien a cobriu de beijos.
– Deixa-me, ela continuou, quero raciocinar contigo por receio de esquecer isso... A partir do momento em que te vejo, todos os deveres desaparecem, não sou mais que amor por ti, ou melhor, a palavra amor é ainda muito fraca. Sinto por ti o que deveria sentir unicamente por Deus: uma mistura de respeito, de amor, de obediência... Em verdade, não sei o que me inspiras. Se me mandasses esfaquear o carcereiro, o crime seria cometido antes que eu pensasse nele. Explica-me isso bem claramente antes que eu te deixe, quero ver com clareza em meu coração; pois dentro de dois meses nos deixaremos... Será que nos deixaremos?, ela acrescentou, sorrindo.
– Retiro minha palavra, exclamou Julien, levantando-se; não apelarei da sentença de morte se, por veneno, faca, pistola, carvão ou qualquer outro meio, buscares pôr fim à tua vida.

     A fisionomia da sra. de Rênal mudou completamente; a mais viva ternura deu lugar a um devaneio profundo.

– E se morrêssemos já?, disse ela, por fim.
– Quem sabe o que encontraremos na outra vida?, respondeu Julien. Talvez tormentos, talvez absolutamente nada. Não podemos passar dois meses juntos de uma maneira deliciosa? Dois meses são muitos dias. Nunca terei sido tão feliz.
– Nunca terás sido tão feliz?
– Nunca, repetiu Julien, arrebatado, e te falo como falo a mim mesmo. Deus preserva-me de exagerar.
– Falar assim é uma ordem, ela disse, com um sorriso tímido e melancólico.
– Pois então jura, pelo amor que tens por mim, não atentar contra tua vida por nenhum meio direto nem indireto... Considera, ele acrescentou, que deves viver para o meu filho, que Mathilde abandonará a lacaios assim que for marquesa de Croisenois.
– Juro, ela disse friamente, mas quero levar tua apelação redigida e assinada por ti. Irei eu mesma até o procurador geral.
– Toma cuidado, podes te comprometer.
– Depois de ter vindo te ver na prisão, tornei-me para sempre, em Besançon e em todo o Franco-Condado, uma heroína de anedotas, ela disse, com profunda aflição. Os limites do austero pudor foram transpostos... Sou uma mulher que perdeu a honra; é verdade que por tua causa...

      Sua entonação era tão triste que Julien a abraçou com uma felicidade inteiramente nova para ele. Não era mais a embriaguez do amor, era o reconhecimento extremo. Ele acabava de perceber, pela primeira vez, toda a extensão do sacrifício que ela lhe fizera.
      Alguma alma caridosa certamente informou o sr. de Rênal das longas visitas que sua mulher fazia à prisão de Julien; pois, ao cabo de três dias, ele enviou-lhe a carruagem com a ordem expressa de voltar imediatamente a Verrières.
     Essa separação cruel foi um mau começo de dia para Julien. Avisaram-no, duas ou três horas depois, que um certo padre intrigante, mas que não pudera promover-se entre os jesuítas de Besançon, plantara-se desde cedo fora da porta da prisão, na rua. Chovia muito, e ali esse homem pretendia fazer-se de mártir. Julien estava contrariado e essa tolice o aborreceu profundamente.
     Ele já havia recusado a visita desse padre, mas o homem pusera na cabeça confessar Julien e granjear um nome entre as mulheres de Besançon, por todas as confidências que afirmaria ter recebido.
     Ele declarava em voz alta que passaria o dia e a noite à porta da prisão. – Deus me envia para tocar o coração desse outro apóstata... E o povo miúdo, sempre curioso de uma cena, começava a juntar-se.

– Sim, meus irmãos, ele dizia, passarei aqui o dia, a noite, e também todos os dias e todas as noites seguintes. O Espírito Santo falou-me, tenho uma missão do alto; devo salvar a alma do jovem Sorel. Uni-vos às minhas preces etc. etc.

     Julien tinha horror do escândalo e de tudo que pudesse chamar a atenção sobre ele. Pensou em aproveitar o momento para escapar do mundo incógnito; mas ele tinha alguma esperança de rever a sra. de Rênal, e estava perdidamente apaixonado.
      A porta da prisão situava-se numa das ruas mais frequentadas. A ideia desse padre enlameado, causando ajuntamento e escândalo, torturava sua alma. – E, sem dúvida, a todo instante ele repete meu nome! Esse momento era mais penoso que a morte.
     Por duas ou três vezes, com uma hora de intervalo, ele chamou um guarda que lhe era devotado, para mandá-lo ver se o padre ainda estava à porta da prisão.

– Senhor, ele está ajoelhado na lama, dizia sempre o guarda; reza em voz alta e recita litanias em favor de sua alma... O impertinente!, pensou Julien. Nesse momento, de fato, ele ouviu um burburinho abafado, era o povo respondendo às litanias. Para o cúmulo da impaciência, viu o próprio guarda agitar os lábios repetindo as palavras latinas. – Começam a dizer, acrescentou o guarda, que o senhor deve ter o coração muito endurecido para recusar o auxílio desse santo homem.
– Ó minha pátria, como ainda és bárbara!, exclamou Julien, possuído de cólera. E continuou seu raciocínio em voz alta e sem considerar a presença do guarda.
– Esse homem quer um artigo no jornal, e ei-lo certo de obtê-lo.

      Ah! Malditos provincianos! Em Paris eu não seria submetido a tais vexames. Lá o charlatanismo é mais engenhoso.

– Mande entrar esse santo padre, disse por fim ao guarda, e o suor corria-lhe na testa. O guarda fez o sinal da cruz e saiu muito alegre.

     O santo padre era horrivelmente feio, ainda mais enlameado. A chuva fria que caía aumentava a obscuridade e a umidade do cárcere. O padre quis abraçar Julien e mostrou-se enternecido enquanto lhe falava. A mais baixa hipocrisia era demasiado evidente; em toda a sua vida Julien nunca tivera tanta raiva.
     Um quarto de hora depois da entrada do padre, Julien sentiu-se um covarde completo. Pela primeira vez a morte lhe pareceu horrível. Ele pensava no estado de putrefação em que estaria seu corpo dois dias após a execução etc. etc.
     Ia trair-se por algum sinal de fraqueza ou lançar-se sobre o padre e estrangulá-lo com a corrente, quando teve a ideia de pedir ao santo homem que fosse rezar por ele uma boa missa de quarenta francos, naquele dia mesmo. 
     Já era meio-dia, o padre partiu precipitadamente.

continua página 345...

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro:  (XLIII)
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.
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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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