terça-feira, 15 de abril de 2025

A Montanha Mágica - O termômetro (c)

Thomas Mann

A Montanha Mágica 


Capítulo IV

O termômetro

continuando...

     Com efeito, apenas entrara no quarto, tirara de cima do lavatório a elegante aquisição da manhã; por meio de sacudidelas verticais apagara os 37,6 que já haviam desempenhado seu papel, e qual um veterano iniciara o repouso com o charuto de vidro na boca. Mas, contrariando todas as expectativas ambiciosas, e embora ele conservasse o instrumento sob a língua durante oito minutos inteiros, o mercúrio não se dilatara além dos mesmos 37,6 – o que, afinal, era febre, se bem que não mais alta do que a que tivera pela manhã. Depois do almoço, a coluna cintilante subiu a 37,7. À noite, quando o paciente estava muito cansado depois das sensações e emoções do dia, parou em 37,5, e na madrugada do dia seguinte marcou apenas 37, para alcançar novamente a posição do dia anterior, por volta do meio-dia. Com tudo isso chegou o almoço do sábado, e, ao seu fim, a hora marcada para o exame.
     Mais tarde, Hans Castorp recordou-se de que Mme. Chauchat usara, durante essa refeição, um suéter amarelo-dourado com grandes botões e bolsos bordados, e que era novo, pelo menos para ele. Quando ela chegara, um pouco atrasada como sempre, apresentara-se na sala daquele modo que Hans Castorp bem conhecia. Depois encaminhara-se a passo silencioso para a sua mesa, como sucedia cinco vezes por dia; instalara-se na cadeira com movimentos lânguidos e, palestrando, começara a comer. Como todos os dias, mas dessa vez com uma atenção particular, Hans Castorp vira-a mover a cabeça, enquanto ela falava, e novamente notara lhe a curva da nuca e a postura lassa das costas, quando seu olhar buscava a mesa dos “russos distintos”, por sobre o ombro de Settembrini, que estava sentado na mesa colocada transversalmente entre eles. Mme. Chauchat, porém, não se voltara durante o almoço nem uma única vez para a sala. Mas, depois da sobremesa, quando o grande relógio de pêndulo, colocado no lado estreito da sala, à direita, junto da mesa dos “russos ordinários”, dera as duas horas, acontecera o seguinte, causando uma emoção misteriosa a Hans Castorp: enquanto ressoavam as duas badaladas – uma e duas – a graciosa enferma virara lentamente a cabeça e também parte do tronco; por cima do ombro olhara clara e abertamente para a mesa de Hans Castorp, e não somente para essa mesa em geral; não, de um modo inequívoco e cruel fixara o olhar nele pessoalmente, esboçando um sorriso em torno dos lábios cerrados e nos olhos rasgados, semelhantes aos de Pribislav, como se quisesse dizer: “Pois então? Está na hora. Você vai ou não vai?” (Pois, quando os olhos falam, tratam-nos por “você”, ainda que a boca não tenha jamais empregado a terceira pessoa.) Fora esse um incidente que transtornara e enchera de espanto o âmago do coração de Hans Castorp. Mal confiara nos seus sentidos. Consternado fitara o rosto de Mme. Chauchat, e depois, levantando os olhos, acima da sua testa e dos seus cabelos, encarara o vazio. Sabia ela que às duas horas ele devia ir ao exame? Assim parecia, e entretanto isso era quase tão pouco provável como se ela soubesse que nesse mesmo instante, no minuto que acabava de escoar, ele se perguntara a si próprio se não deveria mandar Joachim dizer ao Dr. Behrens que seu resfriado já ia melhor, e que ele considerava o exame supérfluo; ideia cujas vantagens acabavam de definhar sob esse sorriso perscrutador, para transformarem-se em puro tédio dos mais repulsivos. Um segundo após, Joachim já pusera na mesa o guardanapo enrolado, e com as sobrancelhas alçadas dera-lhe um sinal. Inclinara-se então para os vizinhos e se afastara da mesa. E Hans Castorp, vacilando interiormente, se bem que de passo firme, e com a sensação de que aquele olhar e aquele sorriso continuavam pousados nele, seguira atrás do primo, em direção à saída.
     Desde a manhã do dia anterior, não haviam voltado a falar do projeto, e ainda nesse instante caminhavam um ao lado do outro, num acordo tácito. Joachim apressava-se. Já passara a hora marcada, e o conselheiro áulico exigia pontualidade. O seu caminho conduzia-os da sala de refeições, pelo corredor do rés-do-chão, passando ao lado da administração e descendo pela escada limpa, coberta de linóleo, até o porão. Joachim bateu à porta fronteira à escada, porta que uma placa de porcelana indicava ser a entrada do consultório.

– Entre! – gritou Behrens, arrastando fortemente a primeira sílaba. Achava-se no centro da peça, vestido de avental, e tinha na mão direita o estetoscópio preto com o qual dava umas palmadinhas na perna. 
– Vamos, vamos! – disse, com os olhos esbugalhados fitos no relógio de parede. – Un poco più presto, signori! Não estamos aqui ao serviço exclusivo de Vossas Senhorias. 

     O Dr. Krokowski estava sentado diante da dupla escrivaninha, junto à janela, pálido, com sua blusa de alpaca preta, apoiando os cotovelos na tábua da mesa; numa das mãos tinha a caneta e com a outra cofiava a barba; à sua frente jaziam papéis, provavelmente as fichas do paciente. Olhou os jovens que entravam com a expressão vaga de uma pessoa que se acha presente apenas para ajudar.

– Então, deixe ver o boletim – disse o conselheiro áulico, em resposta às desculpas de Joachim. Tirou-lhe da mão a papeleta de temperatura, para examiná-la, enquanto o enfermo se apressava a desnudar o tronco, suspendendo as roupas despidas no cabide ao lado da porta. Ninguém se ocupava de Hans Castorp. Durante algum tempo, ele permaneceu de pé, contemplando os outros. Depois, sentou-se numa poltrona de estilo antigo, guarnecida de borlas nos braços, e que se encontrava ao lado de uma mesinha com uma garrafa de água. Estantes carregadas de volumosas obras de medicina e de pastas cheias de documentos de casos estendiam-se ao longo das paredes. Fora disso, a mobília constava só de uma chaise longue, revestida de branco, que podia ser levantada e baixada mediante uma manivela, e cuja cabeceira estava coberta com um guardanapo de papel. 
– Vírgula 7, vírgula 9, vírgula 8 – disse Behrens, folheando as fichas semanais, onde Joachim registrara fielmente as temperaturas tomadas cinco vezes por dia. – Ainda um pequeno excesso de animação, meu caro Ziemssen. O senhor não pode pretender que ficou mais calmo, desde o outro dia. (O “outro dia” fora quatro semanas atrás.) Não está desintoxicado, não, senhor! – acrescentou. – Ora, isto não se consegue de um dia para outro. Afinal de contas, não somos feiticeiros. 

     Joachim fez que sim com um gesto de cabeça e encolheu os ombros desnudos, se bem que pudesse objetar que não se achava no sanatório precisamente desde a véspera.

– E como vão aquelas pontadas no hilo direito, onde sempre havia anomalias? Melhor? Bem, venha cá! Vamos bater humildemente à sua porta. – E com isso começou o exame.

     O Dr. Behrens, com as pernas separadas e o tronco inclinado para trás, meteu o estetoscópio sob o braço e começou a percutir a parte superior do ombro direito de Joachim; batia servindo-se do poderoso dedo médio da mão direita como martelo e apoiando-se na mão esquerda. Depois desceu pela omoplata e apalpou lateralmente a parte central e inferior das costas, feito o quê, Joachim, bem amestrado, levantou o braço para que o médico pudesse explorar também a região axilar. Tudo isso se repetiu então no lado esquerdo. A seguir, o conselheiro áulico deu ordem de meia-volta, para examinar o peito. Percutiu a zona logo abaixo do pescoço, junto à clavícula, bateu acima e abaixo do peito, primeiro à direita e depois à esquerda. Após ter percutido suficientemente, pôs-se a auscultar, colocando o estetoscópio nas costas e no peito de Joachim e apertando a orelha contra a concha; dessa forma foi percorrendo todas as regiões anteriormente apalpadas. Ao mesmo tempo era preciso que Joachim ora respirasse com vigor ora tossisse artificialmente, o que parecia fatigá-lo muito, pois ofegava e seus olhos enchiam-se de lágrimas. O Dr. Behrens, porém, comunicava tudo quanto ouvia em palavras breves e precisas ao assistente sentado à escrivaninha, de modo que Hans Castorp não pôde deixar de pensar numa sessão no alfaiate, quando o elegante artífice toma as medidas para um traje e, numa ordem tradicional, vai colocando a fita métrica aqui e ali em volta do corpo e dos membros do freguês, para então ditar as cifras assim obtidas ao oficial que, de costas encurvadas, se empenha em anotá-las. “Sopróide”, “diminuído”, ditava o Dr. Behrens. “Vesicular”, dizia, e outra vez “vesicular” – parecia que isso era um bom sinal. “Rude”, continuava, fazendo uma careta. “Muito rude.” “Estalido.” E o Dr. Krokowski ia tomando nota, como um aprendiz faz com os centímetros ditados pelo alfaiate. 
     Hans Castorp, com a cabeça inclinada para o lado, acompanhava os acontecimentos, perdendo-se numa contemplação pensativa do torso de Joachim, cujas costelas – graças a Deus não faltava ainda nenhuma – levantavam-se com as arfadas sob a pele tesa e ressaltavam alto por cima do estômago reentrante. Estudava esse corpo esbelto, de efebo, com a epiderme trigueiro amarelada e os pelos negros na zona do esterno e nos braços musculosos, um dos quais exibia em volta do pulso uma corrente de ouro. “São braços de ginasta”, pensava Hans Castorp. “Ele sempre gostou de cultura física, ao passo que eu nunca achei graça nisso. Era devido à sua predileção pelas armas. Sempre se preocupou com o corpo, muito mais do que eu, ou pelo menos de outra forma; pois eu nunca deixei de ser civil, e mais me importavam banhos quentes e boas comidas e bebidas, enquanto ele se dedicava a esforços e exercícios viris. E agora o seu corpo passou para o primeiro plano, mas de um modo muito diverso; tornou-se independente e tomou ares de importância, em virtude da doença. Está ‘animado’ e não quer ‘desintoxicar-se’ e ficar ‘calmo’, por mais que o pobre Joachim deseje ser soldado, lá na planície. Imaginem! Ele tem uma compleição perfeita, tal qual o Apolo de Belvedere, com exceção dos pelos. Mas interiormente está enfermo e por fora demasiado aquecido pela doença. Pois a doença faz o homem mais corporal, torna-o corpo e nada mais...” E ao ventilar essas ideias, assustou-se e enviou um olhar rápido e perscrutador do tronco nu de Joachim para os seus olhos negros e meigos, que a respiração forçada e a tosse artificial haviam enchido de lágrimas, e que durante o exame olhavam, melancólicos, por cima do espectador, perdendo-se no vazio.  

      Nesse ínterim, o Dr. Behrens terminara o seu trabalho. 

– Está bem, Ziemssen – disse. – Tudo em ordem, dentro das possibilidades. Na próxima vez (era dentro de quatro semanas) acho que estará um pouco melhor. 
– Quanto tempo pensa o senhor conselheiro que... 
– Tem pressa, outra vez? Nesse estado de intoxicação, o senhor não pode brincar com os seus bichinhos. Meio ano, foi o que lhe disse naquele dia. Quanto a mim, pode contar a partir de então, mas considere isso como o mínimo. Afinal de contas, pode-se viver aqui, tenha paciência. Isso não é nenhum calabouço, não é uma... uma mina siberiana. Ou quer o senhor pretender que o nosso estabelecimento se pareça com uma coisa dessas? Está bem, Ziemssen. Pode ir. O seguinte, faz favor, se mais alguém tiver vontade... – exclamou, olhando para o teto. Estendendo o braço, passou o estetoscópio ao Dr. Krokowski, que se levantou e o apanhou, a fim de proceder com Joachim a um pequeno exame de assistente. 

     Também Hans Castorp erguera-se de um pulo, e fixando os olhos no conselheiro áulico, que, com as pernas separadas e a boca aberta, se quedava absorto pelos próprios pensamentos, aprontou-se a toda a pressa. Precipitava-se; não conseguiu imediatamente sair da camisa pontilhada, quando a tirava pela cabeça. E finalmente encontrou-se à frente do Dr. Behrens, branco, louro e delgado – visivelmente de um tipo mais civil do que Joachim Ziemssen.
     Mas o conselheiro, continuando abstrato, deixou-o esperar. O Dr. Krokowski já voltara a sentar-se, e Joachim começara a se vestir, quando Behrens resolveu, finalmente, reparar na pessoa que “ainda tinha vontade”.

– Ah! Sim, é o senhor – disse então, agarrando o braço de Hans Castorp com a gigantesca manzorra. Afastou-o um pouquinho de si e passou por ele um olhar penetrante. Não lhe estudava o rosto, assim como se faz com um ser humano, senão o corpo. Virou-o como se vira um corpo, e contemplou-lhe também as costas. – Hum! – murmurou. – É isso. Vamos ver o que o senhor vai revelar aos meus dedos. – E começou a percuti-lo, procedendo da mesma forma que antes.

     Explorou os mesmos lugares como no exame de Joachim Ziemssen, repetindo a percussão em diferentes pontos. Durante certo tempo insistiu, para fins de comparação, em golpear alternadamente em cima, junto da clavícula esquerda, e um pouco mais abaixo. 

– Está ouvindo? – perguntou, dirigindo-se ao Dr. Krokowski... Este, sentado em frente da escrivaninha, a cinco passos de distância, confirmou por um movimento de cabeça que estava ouvindo: com ar grave inclinou o queixo para o peito, de tal modo que a barba se comprimiu e as pontinhas se levantaram. 
– Respire profundamente! Agora tussa! – ordenou o conselheiro, que tornara a pegar o estetoscópio, e Hans Castorp esfalfou-se, durante uns oito ou dez minutos, enquanto o médico escutava sem proferir nenhuma palavra, não fazendo mais do que colocar o instrumento aqui e ali e auscultar, cuidadosa e repetidamente, vários lugares nos quais já insistira quando da percussão. A seguir enfiou o estetoscópio por baixo do braço, juntou as mãos nas costas e olhou o chão entre si e Hans Castorp.
– Pois é, Castorp – disse enfim, e era a primeira vez que chamava o jovem simplesmente pelo sobrenome. – O resultado é praeter-propter, como eu esperava desde o princípio. Observei o senhor com um olho vigilante, Castorp (agora posso dizê-lo), desde o dia em que tive a imerecida honra de conhecê-lo, e cheguei à opinião bastante firme de que o senhor era, clandestinamente, um dos nossos e acabaria por perceber esse fato, como fizeram tantos outros que vieram aqui para divertir-se, estudaram o ambiente, torcendo o nariz, e um belo dia ficaram sabendo que seria conveniente para eles, e não apenas conveniente – o senhor entenda-me bem! –, abandonar a atitude de curiosidade displicente e passar aqui uma temporada extensa. 

     Hans Castorp empalideceu e Joachim, a ponto de abotoar os suspensórios, imobilizou-se e escutou...

– O senhor tem aí um primo tão bonzinho e tão simpático – prosseguiu o conselheiro, com um gesto de cabeça em direção a Joachim, enquanto se balançava alternadamente nos calcanhares e nas pontas dos pés –, um primo do qual espero que possa dizer, daqui a pouco, que um dia “esteve” doente. Ora, mesmo que chegássemos a esse ponto, não deixaria de ser uma realidade que o senhor seu primo irmão teve uma vez uma doença, e isso lança a priori, como dizem os filósofos, uma certa luz sobre o senhor, meu caro Castorp... 
– Mas ele não é meu primo irmão, senhor conselheiro. 
- Será possível que o senhor queira renegar seu primo? Primo irmão ou não, em todo caso é um consangüíneo. Por que lado? 
– Pelo lado de minha mãe, senhor conselheiro. Ele é filho de um meia ir... 
– E a senhora sua mãe anda bem de saúde? 
– Não, senhor. Ela não vive mais. Morreu quando eu ainda era menino. 
– Ah! sim? De quê? 
– De uma embolia, senhor conselheiro. 
– Embolia? Bem, isso aconteceu faz muito tempo. E o senhor seu pai? 
– Morreu de pneumonia – disse Hans Castorp. 
– E meu avô também – acrescentou.
– Ah, o avô também? Hum, deixemos então os seus ascendentes. Quanto ao senhor, creio que foi sempre meio anêmico, não é? Mas, e o trabalho físico ou intelectual nunca o cansou? Pelo contrário? E o senhor costuma ter palpitações? Só recentemente? Muito bem, e além disso parece existir uma decidida tendência para catarros nas vias respiratórias. O senhor sabe que já esteve enfermo? 
– Eu? 
– Sim, é à sua prezada pessoa que me refiro. Pode ouvir a diferença? – E o conselheiro áulico pôs-se a percutir a região esquerda do peito, ora em cima, ora mais embaixo. 
– Ali, o som é um pouco mais surdo do que aqui – disse Hans Castorp.
– Ótimo! O senhor deveria tornar-se especialista. Ali há portanto uma maciez, e tal maciez tem sua origem em focos antigos que já se esclerosaram, ou se assim lhe agrada melhor, já cicatrizaram. O senhor é um doente veterano, Castorp, mas não convém censurar ninguém por não lhe ter comunicado esse fato. O diagnóstico na fase precoce é muito difícil, sobretudo para os senhores nossos colegas na planície. Eu nem quero dizer, precisamente, que nós aqui temos ouvidos mais finos, embora a especialização e a prática influam bastante. É o ar que nos ajuda a ouvir, sabe? Esse ar rarefeito e seco das alturas. 
– Claro, compreendo – disse Hans Castorp. 
– Muito bem, Castorp! E agora preste atenção, meu filho. Vou lhe dizer algumas palavras de ouro. Se no seu caso houvesse apenas isso (o senhor me entenda bem!) e tudo se limitasse àquela maciez e cicatrizes no interior do seu odre de Éolo e a esses corpos estranhos de substâncias calcáreas, eu mandaria o senhor para seus lares e penates e não me preocuparia nem um pouquinho com a sua saúde, compreende? Mas, assim sendo, e em face dos fatos que verifiquei além disso, e considerando que o senhor já se encontra aqui entre nós, não vale a pena regressar, Hans Castorp, pois dentro em breve teria de apresentar-se novamente. 

     Hans Castorp voltou a sentir o sangue lhe afluir ao coração, fazendo com que ele martelasse violentamente. Joachim continuava de pé, com as mãos nos botões traseiros da calça, e tinha os olhos baixos.

– Olhe, além da maciez – disse o conselheiro áulico –, tem o senhor à esquerda, bem em cima, uma respiração rude que toca as raias de um ruído bolhoso e provém, indubitavelmente, de um lugar novo. Não quero dizer que já se trata de um estado de fusão, mas não há dúvida nenhuma de que é um lugar úmido, e se o senhor continuasse a viver daquele jeito na planície, então lhe garanto, meu caro amigo, que mais dia menos dia todo o lóbulo iria água abaixo.

     Hans Castorp quedava-se imóvel; sua boca estremecia singularmente, e via-se com absoluta nitidez como o seu coração batia contra as costelas. Seu olhar vagou até Joachim, cujos olhos, no entanto, não encontrou, e dali novamente ao rosto do Dr. Behrens, com os esbugalhados olhos azuis, as faces azuladas e a boca com o bigodinho torto de um lado. 

– Como confirmação objetiva – continuou o conselheiro – temos ainda a sua temperatura: 37,6 às dez da manhã, o que corresponde, pouco mais ou menos, às observações acústicas. 
– Eu pensei – disse Hans Castorp – que essa febre viesse simplesmente do catarro. 
– E o catarro? – retrucou o médico. – De onde vem? Permita-me que lhe diga uma coisa, Castorp, e abra os ouvidos. Ao que saiba, o senhor dispõe de circunvoluções cerebrais em número suficiente. Bem, o ar que temos aqui é bom contra a enfermidade. Não é isso o que o senhor pensa? E com razão. Mas, ao mesmo tempo, este ar é bom para a enfermidade; compreende? No começo acelera o seu curso, revoluciona o corpo, fomenta a irrupção da doença latente, e tal irrupção é, com a sua licença, o seu catarro. Eu não sei se o senhor na planície já era propenso a febres, mas aqui, em todo caso, o senhor está febril desde o primeiro dia da sua permanência, e não somente em virtude desse seu catarro, se quiser ouvir a minha opinião. 
– Sim, sim – disse Hans Castorp –, é o que acho também. 
– Provavelmente sentiu-se logo estonteado – confirmou o conselheiro. – É a obra dos venenos solúveis que os micróbios produzem. Eles têm efeito inebriante sobre o sistema nervoso central, compreende o senhor? E daí vêm as bochechas alegremente rosadas. Bem, Castorp, o senhor vai se meter na cama; assim podemos ver se algumas semanas de repouso total bastam para desembriagá-lo. Então se falará sobre o resto. Tiraremos uma vista bonita do seu interior; o senhor gostará de espiar para dentro da sua própria pessoa. Mas já lhe digo uma coisa: um caso como o seu não se cura de hoje para depois de amanhã. Não há lugar para êxitos de propaganda e curas milagrosas. Eu tive logo a impressão de que o senhor seria um paciente melhor e teria mais talento para a doença do que esse general-de-brigada que deseja safar-se cada vez que tem uns décimos a menos. Como se “descansar armas” não fosse um comando tão bonito quanto “ombro armas”. A calma é o primeiro dever do cidadão, e a impaciência apenas o prejudica. Trate de não me decepcionar, Castorp, e eu faço questão que não desminta os meus conhecimentos psicológicos! E agora, marche-marche, para o estábulo. 

     Com essas palavras, o conselheiro áulico deu por terminada a entrevista e sentou-se à escrivaninha, a fim de aproveitar, como homem atarefado que era, o intervalo até o próximo exame, para fazer alguns trabalhos escritos. O Dr. Krokowski, porém, ergueu-se do seu lugar, aproximou-se de Hans Castorp e, com a cabeça inclinada para trás, esboçou um sorriso cordial que descortinava no meio da barba os dentes amarelados. Pôs a mão esquerda no ombro do jovem e apertou energicamente a mão direita de Hans Castorp.  

continua pág 119...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
O termômetro (c)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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