volume IV
Sodoma e Gomorra
Capítulo Primeiro
Capítulo Primeiro
Segunda Parte
continuando...
Eu não podia decidir-me a deixar Swann. Ele atingira aquela grande fadiga em que o corpo de um enfermo não é mais que uma retorta onde se processam reações químicas. Seu rosto estava marcado por pequenos pontos azuis da Prússia, que davam a impressão de não pertencer ao mundo dos vivos, e desprendiam esse tipo de odor que, no colégio, depois das "experiências", torna tão desagradável a permanência numa sala de aula de "Ciências". Perguntei-lhe se não tivera uma longa conversa com o príncipe de Guermantes e se não queria me contar de que se tratara.
- Sim - disse ele -, mas atenda primeiro ao Sr. de Charlus e à Sra. de Surgis. Eu esperarei
aqui.
Com efeito, o Sr. de Charlus propusera à Sra. de Surgis deixar, aquele aposento
excessivamente abafado e irem sentar-se por um momento em outro, e, para tanto, não pedira
aos dois filhos que acompanhasse a mãe, porém a mim. Desse modo, ele dava a impressão de
não ligar aos dois jovens, após tê-los seduzido. Ademais, me fazia uma polidez fácil, pois a Sra.
de Surgis-le-Duc era bem malvista. Infelizmente, apenas nos sentáramos num vão sem saída,
ocorreu passar a Sra. de Saint-Euverte, alvo das zombarias do barão. Ela, talvez para dissimular,
ou desdenhar abertamente os maus sentimentos que inspirava ao Sr. de Charlus, e sobretudo
para mostrar que era íntima de uma dama que conversava tão familiarmente com ele, fez um
cumprimento desdenhosamente amigável àquela beldade famosa, que lhe respondeu olhando
com o rabo do olho para o Sr. de Charlus com um sorriso zombeteiro. Mas o vão era tão estreito
que, quando a Sra. de Saint-Euverte quis, atrás de nós, continuar a pescar seus convidados para
o dia seguinte, achou-se presa e não pôde se livrar facilmente, momento precioso que o Sr. de
Charlus, desejoso de fazer brilhar sua verve insolente aos olhos da mãe dos dois jovens, tratou
cuidadosamente de aproveitar. Uma pergunta idiota que lhe fiz sem malícia forneceu-lhe motivo
para um triunfal completo de que a pobre da Sra. de Saint-Euverte, quase imobilizada atrás de
nós, não podia perder uma só palavra.
- Imagine que este jovem impertinente - disse ele, designando-me à Sra. de Surgis acaba
de me perguntar, sem a menor preocupação que se deve ter para ocultar esse gênero de
necessidade, se eu ia à casa da Sra. de Saint-Euverte, ou seja, o mesmo, conforme creio, se eu
tinha cólicas. Em todo caso, tentaria me aliviar num local mais confortável do que na casa de uma
pessoa que, se tenho boa memória, celebrava o centenário quando estreei na sociedade, isto é,
não na casa dela. E, no entanto, quem mais do que ela seria interessante de ouvir? Quantas
recordações históricas, vistas e vividas, do tempo do Primeiro Império e da Restauração, e
também quantas histórias íntimas que certamente nada tinham de Saint ("santo"), mas deveriam
ser muito vertes ("verdes"), a julgar pelas ágeis coxas da venerável saltadeira! O que me impediria
de interrogá-la acerca dessas épocas apaixonantes é a sensibilidade de meu aparelho olfativo. A
proximidade desta senhora é bastante. De repente digo para mim mesmo: "Oh, meu Deus!
Rebentaram minha latrina!" e é simplesmente a marquesa que acaba de abrir a boca para fazer
um convite. E compreendam que, se tivesse a infelicidade de ir à casa dela, a latrina se
multiplicaria em um formidável tonel de dejetos. Entretanto, ela carrega um nome místico que
sempre me faz pensar, com júbilo, embora ela tenha há muito passado pela data de seu jubileu,
naquele verso estúpido, dito "deliquescente": Ah, verde, como era verde a minha alma nesse dia...
Mas preciso de uma verdura mais limpa. Dizem-me que a cavadora infatigável dá garden Parties.
Quanto a mim, chamo a isso "convites para passear nos esgotos". Será que a senhora há de
querer ir sujar-se lá? - perguntou ele à Surgis, que dessa vez sentiu-se constrangida. Pois,
querendo fingir ao barão que lá não ia, e sabendo que daria dias de sua vida para não faltar a
uma matinê Saint-Euverte, venceu a dificuldade pela média, isto é, incerteza. Tal incerteza
assumiu uma forma tão imbecilmente diletante e mesquinhamente vulgar, que o Sr. de Charlus,
não receando ofender a de Surgis, à qual todavia desejava agradar, pôs-se a rir para lhe mostrar
"aquilo não colava".
- Admiro sempre as pessoas que fazem planos - disse - muitas vezes desisto na última
hora. Há um caso de vestido de verão, pode mudar as coisas. Agirei sob a inspiração do
momento.
De minha parte, estava indignado com o abominável discurso do Sr. de Charlus. Desejaria
acumular de bens a doadora de garden-parties. Infelizmente na sociedade, como no mundo
político, as vítimas são tão covardes que não se pode querer mal aos carrascos por muito tempo.
A Sra. Saint-Euverte, que lograra retirar-se do vão cuja entrada impedíamos, roçou
involuntariamente pelo barão de passagem e, por um reflexo de esnobismo que aniquilava nela
toda a cólera, talvez até na esperança de tal tipo de abordagem que não devia ser a primeira
tentativa:
- Oh, perdão - senhor de Charlus! exclamou -, espero não o ter machucado como se se
ajoelhasse diante de seu mestre.
Este só se dignou a responder com um largo sorriso irônico e concedeu apenas um "boa
noite" que, como se só se desse conta da presença da marquesa quando ela o saudara primeiro,
era um insulto a mais. Enfim, com um servilismo supremo, do qual sofria por ela, a Sra. de Saint
Euverte se aproximou de mim e, tomando-me à parte, disse-me ao ouvido:
- Mas, que foi que eu fiz ao Sr. de Charlus? Dizem que não me acha bastante chique para
ele - ajuntou, rindo à bandeiras despregadas.
Permaneci sério. Por um lado, achava estúpido que ela parecesse acreditar, ou quisesse
fazer crer, que ninguém de fato era tão chique feito ela. Por outro lado, as pessoas que riem com
tanta força do que falaram, e que não é engraçado, tomando a seu cargo a hilaridade, dispensara-
nos desse modo de participar dela.
- Outros asseguram que ele está ofendido porque não o tenho convidado. Mas ele não me
encoraja muito. Dá impressão de estar amuado comigo (a expressão pareceu-me fraca). Procure
sabê-lo e venha dizer se vai amanhã. E, se ele sentir remorsos e quiser acompanhá-lo, traga-o.
Para todo pecado, misericórdia. Isso até me daria bastante prazer, por causa da Sto. de Surgis, a
quem o fato aborreceria. Dou-lhe carta branca. O senhor tem faro mais fino para essas coisas, e
eu não quero dar a impressão de mendigar convidados. Em todo caso, conto absolutamente com
o senhor.
Imaginei que Swann devia cansar-se de me aguardar. Além disso, não queria voltar muito
tarde para casa, devido a Albertine, e, despedindo-me da Sra. de Surgis e do Sr. de Charlus, fui
ao encontro do meu doente na sala de jogos. Perguntei-lhe se o que dissera ao príncipe, na
conversa que tiveram no jardim, fora exatamente o que o Sr. de Bréauté (não lhe disse o nome)
nos contara e se relacionava com uma pecinha de Bergotte. Ele desatou a rir:
- Não há nisso uma só palavra de verdade, uma única sequer; foi tudo inteiramente
inventado e teria sido completamente idiota. Na verdade, é inaudita essa geração espontânea do
erro. Não pergunto quem lhe disse isto, mas seria de fato curioso, num quadro tão delimitado
quanto este, remontar de pessoa em pessoa para saber como tal coisa se formou. De resto, como
pode interessar às outras pessoas o que o príncipe me falou? As pessoas são bastante curiosas.
Por mim, nunca fui curioso, a não ser quando estive apaixonado e quando fui ciumento. E pelo
muito que me adiantou! O senhor é ciumento? -
Disse a Swann que jamais sentira ciúmes, que nem mesmo sabia de que se tratava.
- Pois bem, felicito-o. Quando se tem um pouquinho de ciúme, isso não chega a ser
desagradável sob dois pontos de vista. De um lado, porque permite às pessoas que não são
curiosas interessarem-se pela vida das outras pessoas, ou pelo menos de uma outra. E depois,
porque faz muito bem sentir a doçura de possuir, de subir no carro com uma mulher, de não
deixá-la ir sozinha. Isto, porém, ocorre apenas nos primeiros tempos do mal ou quando a cura
está quase completa. No intervalo, é o mais atroz dos suplícios. Aliás, mesmo as duas doçuras de
que lhe falo, devo lhe dizer que pouco as conheci: a primeira, por culpa da minha natureza, que
não é capaz de reflexões muito prolongadas; a segunda, por causa das circunstâncias, por culpa
da minha mulher, quero dizer, das mulheres de quem estive enciumado. Mas não importa. Mesmo
quando a gente não liga mais às coisas, não é absolutamente indiferente que nos tenham
importado, porque era sempre por motivos que aos outros escapavam. Percebemos que está em
nós apenas a lembrança desses sentimentos; em nós é que é preciso entrar para contemplá-la.
Não caçoe muito desse jargão idealista, mas o que quero dizer é que tenho amado muito a vida e
amado muito as artes. Pois bem, agora que estou um tanto cansado para viver com os outros,
esses antigos sentimentos tão pessoais, tão meus, parecem-me, o que é a mania de todos os
colecionadores, muito preciosos. Abro o coração para mim mesmo como uma espécie de vitrina,
contemplo um a um tantos amores que os outros não terão conhecido. E dessa coleção, à qual
estou agora ainda mais ligado do que às outras, digo-me, um tanto como Mazarino quanto a seus
livros, mas, enfim, sem qualquer angústia, que será bem aborrecido deixar tudo isto. Mas vamos à
conversa com o príncipe, não a contaria senão a uma só pessoa e essa pessoa vai ser o senhor. -
Eu não podia ouvi-lo sem ser impelido pela conversa que o Sr. de Charlus, que voltara à sala de
jogos, proferia indefinidamente bem perto de nós.
- E o senhor também lê? O que faz? - perguntou ele ao conde Arnulphe, que nem sequer
conhecia o livro de Balzac. Mas sua miopia, como ele visse tudo muito diminuído, dava o aspecto
de quem enxerga de muito longe, de modo que, rara poesias deus grego escultural, em suas
pupilas se inscreviam como que distintas estrelas misteriosas.
- E se fôssemos dar alguns passos pelo jardim, senhor - disse a Swann, enquanto o conde
Arnulphe, com voz vacilante que parecia indiferente que seu desenvolvimento, ao menos mental,
não era completo, respondeu ao Sr. de Charlus com uma precisão ingênua e complacente:
- Oh, no meu caso é antes o golfe, o tênis, o balão, a corrida a pé, e sobretudo o jóquei.
Da mesma forma Minerva, tendo-se subdividido, deixara de ser, numa determinada cidade,
a deusa da Sabedoria e encarnara uma parte de si mesma em uma divindade puramente
esportiva, hípica, "Athenas Hippia". Também ia a Saint-Moritz para esquiar, pois Palas Tritogenéia
frequentava altos cimos e capturava os cavaleiros.
- Ah! - respondeu o Sr. de Charlus; com o sorriso transcendente do intelectual que nem se
dá ao trabalho de dissimular sua zombaria, mas que, além disso, sente-se tão superior aos outros
e despreza de tal modo a inteligência dos que são menos tolos, mal os diferencia dos que o são
mais, uma vez que lhe possam ser agradáveis de outra maneira. Falando a Arnulphe, o Sr. de
Charlus achava que lhe conferia por isso mesmo uma superioridade que todos deveriam invejar e
reconhecer.
- Não - respondeu-me Swann; -estou cansado demais para caminhar; é preferível que nos
sentemos em algum canto, já não aguento ficar de pé. -
Era verdade; e, no entanto, começar a conversar já lhe deu uma certa vivacidade. É que
na fadiga mais real existe, sobretudo entre às pessoas nervosas, uma parcela que depende da
atenção e que só se conserva através da memória. Ficamos subitamente cansados logo que
começamos conversar, e para nos refazermos da fadiga basta esquecê-la. De certo Swann não
era exatamente um desses fatigados exaustos que, chegam abatidos, desfeitos, não se
agüentando mais nas pernas, reanimam-se numa conversa como uma flor na água e podem,
durante horas, esgotar nas próprias palavras forças que infelizmente não transmitem aos que os
escutam e que parecem cada vez mais abatidos à medida que o conversador se sente mais
recuperado. Mas Swann pertencia àquela forte raça judia, de energia vital e resistência à morte
parecem participar os próprios indivíduo atacados cada qual de doenças particulares, como ela
própria o é a perseguição, eles se debatem indefinidamente em agonias terríveis que podem
prolongar-se além de todo limite verossímil, quando já não se vê mais que uma barba de profeta
encimada por um nariz imenso que se dilata para haurir os últimos fôlegos, antes da hora das
orações rituais e quando principia o desfile pontual dos parentes afastados que avançam com
movimentos mecânicos, como num friso assírio.
Fomos nos sentar, mas antes de se afastar do grupo que o Sr. de Charlus formava com os
dois jovens e a mãe destes, Swann não pôde evitar lançar, sobre o corpete da Sra. de Surgis,
longos olhares de conhecedor, dilatados e concupiscentes. Colocou o monóculo para observar
melhor e, sempre falando comigo, de vez em quando deixava cair um olhar na direção daquela
dama.
- Eis, palavra por palavra, a minha conversa com o príncipe - disse-me logo que nos
sentamos; e, se está lembrado do que lhe disse há pouco, verá por que o escolhi para confidente.
E depois, também, por uma outra razão que um dia o senhor saberá. "- Meu caro Swann disse-me
o príncipe de Guermantes -, o senhor há de me desculpar se tenho dado a impressão de evitá-lo
desde algum tempo. (Eu absolutamente não percebera nada, pois andava doente e fugia de todo
o mundo.) Em primeiro lugar, tinha ouvido dizer, e bem previa, que o senhor tinha opiniões
inteiramente opostas às minhas acerca do caso desgraçado que divide o nosso país. Ora, ser-me
ia muito penoso que as professasse diante de mim. Meu nervosismo era tão grande que a
princesa, tendo ouvido há dois anos, o seu cunhado, o grão-duque de Hesse, dizer que Dreyfus
era inocente, não se contentara em rebater a afirmativa com vivacidade, mas também não a
repetira para mim, com receio de me contrariar. Quase na mesma ocasião, o príncipe real da
Suécia viera a Paris e, tendo provavelmente ouvido dizer que a imperatriz Eugênia era dreyfusista,
confundira-a com a princesa (estranha confusão, há de convir, entre uma mulher da estirpe da
minha esposa e uma espanhola, muito menos bem-nascida do que se diz, e casada com um
simples Bonaparte) e lhe havia dito: 'Princesa, estou duplamente feliz em vê-la, pois sei que
professa as mesmas ideias que eu sobre o Caso Dreyfus, o que não me espanta, visto que Vossa
Alteza é bávara.' O que acarretara ao príncipe esta resposta: 'Monsenhor, não passo de uma
princesa francesa, e penso como todos os meus compatriotas.' Ora, meu caro Swann, há cerca de
um ano e meio, uma conversa que tive com o general de Beauserfeuil fez-me suspeitar de que,
não propriamente um erro, porém graves irregularidades haviam sido cometidas no desenrolar do
processo."
Fomos interrompidos (Swann fazia questão de que não lhe ouvissem a narrativa) pela voz
do Sr. de Charlus que (aliás, sem se incomodar conosco) passava reconduzindo a Sra. de Surgis
e se deteve para retê-la ainda mais, fosse por causa dos filhos dela, ou por esse desejo próprio
dos Guermantes de não ver acabar o minuto atual, desejo que os agulhava numa espécie de
ansiosa inércia. Swann revelou-me a problema um pouco depois, algo que para mim tirou ao
nome de Surgis-le-Duca poesia que eu lhe atribuíra. A marquesa de Surgis-le-Duc tinha uma ação
mundana muito maior, alianças muito mais belas que seu primo, conde de Surgis, que, pobre,
vivia em suas terras. Mas a palavra findava o título, "le Duc", de modo algum tinha a origem que
eu lhe emprestava e que me fizera aproximá-lo, na minha imaginação, de Bourg-l'A Bois-le-Roi,
etc.. Simplesmente um conde de Surgis desposara, durante a Restauração, a filha de um
industrial riquíssimo, Sr. Leduc, ou Le Duc, próprio filho de um fabricante de produtos químicos, o
homem mais rico do seu tempo, e que era para da França. O rei Carlos X havia criado para si e o
filho nascido desse casamento o marquesado de Surgis-le-Duc, pois o marquesado de Surgis já
existia na família. O acréscimo do nome burguês impedira esse ramo de se aliar, por causa da
enorme fortuna, às primeiras famílias do reino. E a marquesa atual de Surgis-le-Duc, de grande
nascimento, poderia ter uma situação de primeira ordem. Um demônio de perversidade a impelira,
desdenhando sua situação já feita, a abandonar o lar conjugal, a viver da maneira mais
escandalosa. Depois, o mundo desdenhava por ela há vinte anos, quando estava a seus pés, lhe
faltara cruelmente, quando fazia dez anos que ninguém mais a saudava, a não ser as amigas
fiéis, e ela empreendera reconquistar laboriosamente, peça por peça o que possuía ao nascer
(reviravoltas que não são raras).
continua na página 49...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I - Eu não podia decidir-me)
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
Volume 7
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