segunda-feira, 14 de abril de 2025

Marcel Proust - Sodoma e Gomorra (Cap I - Eu não podia decidir-me)

em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra



Capítulo Primeiro
Segunda Parte


continuando...

     Eu não podia decidir-me a deixar Swann. Ele atingira aquela grande fadiga em que o corpo de um enfermo não é mais que uma retorta onde se processam reações químicas. Seu rosto estava marcado por pequenos pontos azuis da Prússia, que davam a impressão de não pertencer ao mundo dos vivos, e desprendiam esse tipo de odor que, no colégio, depois das "experiências", torna tão desagradável a permanência numa sala de aula de "Ciências". Perguntei-lhe se não tivera uma longa conversa com o príncipe de Guermantes e se não queria me contar de que se tratara.

- Sim - disse ele -, mas atenda primeiro ao Sr. de Charlus e à Sra. de Surgis. Eu esperarei aqui. 

     Com efeito, o Sr. de Charlus propusera à Sra. de Surgis deixar, aquele aposento excessivamente abafado e irem sentar-se por um momento em outro, e, para tanto, não pedira aos dois filhos que acompanhasse a mãe, porém a mim. Desse modo, ele dava a impressão de não ligar aos dois jovens, após tê-los seduzido. Ademais, me fazia uma polidez fácil, pois a Sra. de Surgis-le-Duc era bem malvista. Infelizmente, apenas nos sentáramos num vão sem saída, ocorreu passar a Sra. de Saint-Euverte, alvo das zombarias do barão. Ela, talvez para dissimular, ou desdenhar abertamente os maus sentimentos que inspirava ao Sr. de Charlus, e sobretudo para mostrar que era íntima de uma dama que conversava tão familiarmente com ele, fez um cumprimento desdenhosamente amigável àquela beldade famosa, que lhe respondeu olhando com o rabo do olho para o Sr. de Charlus com um sorriso zombeteiro. Mas o vão era tão estreito que, quando a Sra. de Saint-Euverte quis, atrás de nós, continuar a pescar seus convidados para o dia seguinte, achou-se presa e não pôde se livrar facilmente, momento precioso que o Sr. de Charlus, desejoso de fazer brilhar sua verve insolente aos olhos da mãe dos dois jovens, tratou cuidadosamente de aproveitar. Uma pergunta idiota que lhe fiz sem malícia forneceu-lhe motivo para um triunfal completo de que a pobre da Sra. de Saint-Euverte, quase imobilizada atrás de nós, não podia perder uma só palavra.

- Imagine que este jovem impertinente - disse ele, designando-me à Sra. de Surgis acaba de me perguntar, sem a menor preocupação que se deve ter para ocultar esse gênero de necessidade, se eu ia à casa da Sra. de Saint-Euverte, ou seja, o mesmo, conforme creio, se eu tinha cólicas. Em todo caso, tentaria me aliviar num local mais confortável do que na casa de uma pessoa que, se tenho boa memória, celebrava o centenário quando estreei na sociedade, isto é, não na casa dela. E, no entanto, quem mais do que ela seria interessante de ouvir? Quantas recordações históricas, vistas e vividas, do tempo do Primeiro Império e da Restauração, e também quantas histórias íntimas que certamente nada tinham de Saint ("santo"), mas deveriam ser muito vertes ("verdes"), a julgar pelas ágeis coxas da venerável saltadeira! O que me impediria de interrogá-la acerca dessas épocas apaixonantes é a sensibilidade de meu aparelho olfativo. A proximidade desta senhora é bastante. De repente digo para mim mesmo: "Oh, meu Deus! Rebentaram minha latrina!" e é simplesmente a marquesa que acaba de abrir a boca para fazer um convite. E compreendam que, se tivesse a infelicidade de ir à casa dela, a latrina se multiplicaria em um formidável tonel de dejetos. Entretanto, ela carrega um nome místico que sempre me faz pensar, com júbilo, embora ela tenha há muito passado pela data de seu jubileu, naquele verso estúpido, dito "deliquescente": Ah, verde, como era verde a minha alma nesse dia... Mas preciso de uma verdura mais limpa. Dizem-me que a cavadora infatigável dá garden Parties. Quanto a mim, chamo a isso "convites para passear nos esgotos". Será que a senhora há de querer ir sujar-se lá? - perguntou ele à Surgis, que dessa vez sentiu-se constrangida. Pois, querendo fingir ao barão que lá não ia, e sabendo que daria dias de sua vida para não faltar a uma matinê Saint-Euverte, venceu a dificuldade pela média, isto é, incerteza. Tal incerteza assumiu uma forma tão imbecilmente diletante e mesquinhamente vulgar, que o Sr. de Charlus, não receando ofender a de Surgis, à qual todavia desejava agradar, pôs-se a rir para lhe mostrar "aquilo não colava".  
- Admiro sempre as pessoas que fazem planos - disse - muitas vezes desisto na última hora. Há um caso de vestido de verão, pode mudar as coisas. Agirei sob a inspiração do momento.

     De minha parte, estava indignado com o abominável discurso do Sr. de Charlus. Desejaria acumular de bens a doadora de garden-parties. Infelizmente na sociedade, como no mundo político, as vítimas são tão covardes que não se pode querer mal aos carrascos por muito tempo. A Sra. Saint-Euverte, que lograra retirar-se do vão cuja entrada impedíamos, roçou involuntariamente pelo barão de passagem e, por um reflexo de esnobismo que aniquilava nela toda a cólera, talvez até na esperança de tal tipo de abordagem que não devia ser a primeira tentativa: 

- Oh, perdão - senhor de Charlus! exclamou -, espero não o ter machucado como se se ajoelhasse diante de seu mestre. 

     Este só se dignou a responder com um largo sorriso irônico e concedeu apenas um "boa noite" que, como se só se desse conta da presença da marquesa quando ela o saudara primeiro, era um insulto a mais. Enfim, com um servilismo supremo, do qual sofria por ela, a Sra. de Saint Euverte se aproximou de mim e, tomando-me à parte, disse-me ao ouvido:

- Mas, que foi que eu fiz ao Sr. de Charlus? Dizem que não me acha bastante chique para ele - ajuntou, rindo à bandeiras despregadas. 

     Permaneci sério. Por um lado, achava estúpido que ela parecesse acreditar, ou quisesse fazer crer, que ninguém de fato era tão chique feito ela. Por outro lado, as pessoas que riem com tanta força do que falaram, e que não é engraçado, tomando a seu cargo a hilaridade, dispensara- nos desse modo de participar dela. 

- Outros asseguram que ele está ofendido porque não o tenho convidado. Mas ele não me encoraja muito. Dá impressão de estar amuado comigo (a expressão pareceu-me fraca). Procure sabê-lo e venha dizer se vai amanhã. E, se ele sentir remorsos e quiser acompanhá-lo, traga-o. Para todo pecado, misericórdia. Isso até me daria bastante prazer, por causa da Sto. de Surgis, a quem o fato aborreceria. Dou-lhe carta branca. O senhor tem faro mais fino para essas coisas, e eu não quero dar a impressão de mendigar convidados. Em todo caso, conto absolutamente com o senhor. 

     Imaginei que Swann devia cansar-se de me aguardar. Além disso, não queria voltar muito tarde para casa, devido a Albertine, e, despedindo-me da Sra. de Surgis e do Sr. de Charlus, fui ao encontro do meu doente na sala de jogos. Perguntei-lhe se o que dissera ao príncipe, na conversa que tiveram no jardim, fora exatamente o que o Sr. de Bréauté (não lhe disse o nome) nos contara e se relacionava com uma pecinha de Bergotte. Ele desatou a rir:

- Não há nisso uma só palavra de verdade, uma única sequer; foi tudo inteiramente inventado e teria sido completamente idiota. Na verdade, é inaudita essa geração espontânea do erro. Não pergunto quem lhe disse isto, mas seria de fato curioso, num quadro tão delimitado quanto este, remontar de pessoa em pessoa para saber como tal coisa se formou. De resto, como pode interessar às outras pessoas o que o príncipe me falou? As pessoas são bastante curiosas. Por mim, nunca fui curioso, a não ser quando estive apaixonado e quando fui ciumento. E pelo muito que me adiantou! O senhor é ciumento? - 

     Disse a Swann que jamais sentira ciúmes, que nem mesmo sabia de que se tratava.

- Pois bem, felicito-o. Quando se tem um pouquinho de ciúme, isso não chega a ser desagradável sob dois pontos de vista. De um lado, porque permite às pessoas que não são curiosas interessarem-se pela vida das outras pessoas, ou pelo menos de uma outra. E depois, porque faz muito bem sentir a doçura de possuir, de subir no carro com uma mulher, de não deixá-la ir sozinha. Isto, porém, ocorre apenas nos primeiros tempos do mal ou quando a cura está quase completa. No intervalo, é o mais atroz dos suplícios. Aliás, mesmo as duas doçuras de que lhe falo, devo lhe dizer que pouco as conheci: a primeira, por culpa da minha natureza, que não é capaz de reflexões muito prolongadas; a segunda, por causa das circunstâncias, por culpa da minha mulher, quero dizer, das mulheres de quem estive enciumado. Mas não importa. Mesmo quando a gente não liga mais às coisas, não é absolutamente indiferente que nos tenham importado, porque era sempre por motivos que aos outros escapavam. Percebemos que está em nós apenas a lembrança desses sentimentos; em nós é que é preciso entrar para contemplá-la. Não caçoe muito desse jargão idealista, mas o que quero dizer é que tenho amado muito a vida e amado muito as artes. Pois bem, agora que estou um tanto cansado para viver com os outros, esses antigos sentimentos tão pessoais, tão meus, parecem-me, o que é a mania de todos os colecionadores, muito preciosos. Abro o coração para mim mesmo como uma espécie de vitrina, contemplo um a um tantos amores que os outros não terão conhecido. E dessa coleção, à qual estou agora ainda mais ligado do que às outras, digo-me, um tanto como Mazarino quanto a seus livros, mas, enfim, sem qualquer angústia, que será bem aborrecido deixar tudo isto. Mas vamos à conversa com o príncipe, não a contaria senão a uma só pessoa e essa pessoa vai ser o senhor. - Eu não podia ouvi-lo sem ser impelido pela conversa que o Sr. de Charlus, que voltara à sala de jogos, proferia indefinidamente bem perto de nós. 

- E o senhor também lê? O que faz? - perguntou ele ao conde Arnulphe, que nem sequer conhecia o livro de Balzac. Mas sua miopia, como ele visse tudo muito diminuído, dava o aspecto de quem enxerga de muito longe, de modo que, rara poesias deus grego escultural, em suas pupilas se inscreviam como que distintas estrelas misteriosas. 
- E se fôssemos dar alguns passos pelo jardim, senhor - disse a Swann, enquanto o conde Arnulphe, com voz vacilante que parecia indiferente que seu desenvolvimento, ao menos mental, não era completo, respondeu ao Sr. de Charlus com uma precisão ingênua e complacente: 
- Oh, no meu caso é antes o golfe, o tênis, o balão, a corrida a pé, e sobretudo o jóquei.  

     Da mesma forma Minerva, tendo-se subdividido, deixara de ser, numa determinada cidade, a deusa da Sabedoria e encarnara uma parte de si mesma em uma divindade puramente esportiva, hípica, "Athenas Hippia". Também ia a Saint-Moritz para esquiar, pois Palas Tritogenéia frequentava altos cimos e capturava os cavaleiros.  

- Ah! - respondeu o Sr. de Charlus; com o sorriso transcendente do intelectual que nem se dá ao trabalho de dissimular sua zombaria, mas que, além disso, sente-se tão superior aos outros e despreza de tal modo a inteligência dos que são menos tolos, mal os diferencia dos que o são mais, uma vez que lhe possam ser agradáveis de outra maneira. Falando a Arnulphe, o Sr. de Charlus achava que lhe conferia por isso mesmo uma superioridade que todos deveriam invejar e reconhecer. 
- Não - respondeu-me Swann; -estou cansado demais para caminhar; é preferível que nos sentemos em algum canto, já não aguento ficar de pé. - 

     Era verdade; e, no entanto, começar a conversar já lhe deu uma certa vivacidade. É que na fadiga mais real existe, sobretudo entre às pessoas nervosas, uma parcela que depende da atenção e que só se conserva através da memória. Ficamos subitamente cansados logo que começamos conversar, e para nos refazermos da fadiga basta esquecê-la. De certo Swann não era exatamente um desses fatigados exaustos que, chegam abatidos, desfeitos, não se agüentando mais nas pernas, reanimam-se numa conversa como uma flor na água e podem, durante horas, esgotar nas próprias palavras forças que infelizmente não transmitem aos que os escutam e que parecem cada vez mais abatidos à medida que o conversador se sente mais recuperado. Mas Swann pertencia àquela forte raça judia, de energia vital e resistência à morte parecem participar os próprios indivíduo atacados cada qual de doenças particulares, como ela própria o é a perseguição, eles se debatem indefinidamente em agonias terríveis que podem prolongar-se além de todo limite verossímil, quando já não se vê mais que uma barba de profeta encimada por um nariz imenso que se dilata para haurir os últimos fôlegos, antes da hora das orações rituais e quando principia o desfile pontual dos parentes afastados que avançam com movimentos mecânicos, como num friso assírio.
     Fomos nos sentar, mas antes de se afastar do grupo que o Sr. de Charlus formava com os dois jovens e a mãe destes, Swann não pôde evitar lançar, sobre o corpete da Sra. de Surgis, longos olhares de conhecedor, dilatados e concupiscentes. Colocou o monóculo para observar melhor e, sempre falando comigo, de vez em quando deixava cair um olhar na direção daquela dama.

 - Eis, palavra por palavra, a minha conversa com o príncipe - disse-me logo que nos sentamos; e, se está lembrado do que lhe disse há pouco, verá por que o escolhi para confidente. E depois, também, por uma outra razão que um dia o senhor saberá. "- Meu caro Swann disse-me o príncipe de Guermantes -, o senhor há de me desculpar se tenho dado a impressão de evitá-lo desde algum tempo. (Eu absolutamente não percebera nada, pois andava doente e fugia de todo o mundo.) Em primeiro lugar, tinha ouvido dizer, e bem previa, que o senhor tinha opiniões inteiramente opostas às minhas acerca do caso desgraçado que divide o nosso país. Ora, ser-me ia muito penoso que as professasse diante de mim. Meu nervosismo era tão grande que a princesa, tendo ouvido há dois anos, o seu cunhado, o grão-duque de Hesse, dizer que Dreyfus era inocente, não se contentara em rebater a afirmativa com vivacidade, mas também não a repetira para mim, com receio de me contrariar. Quase na mesma ocasião, o príncipe real da Suécia viera a Paris e, tendo provavelmente ouvido dizer que a imperatriz Eugênia era dreyfusista, confundira-a com a princesa (estranha confusão, há de convir, entre uma mulher da estirpe da minha esposa e uma espanhola, muito menos bem-nascida do que se diz, e casada com um simples Bonaparte) e lhe havia dito: 'Princesa, estou duplamente feliz em vê-la, pois sei que professa as mesmas ideias que eu sobre o Caso Dreyfus, o que não me espanta, visto que Vossa Alteza é bávara.' O que acarretara ao príncipe esta resposta: 'Monsenhor, não passo de uma princesa francesa, e penso como todos os meus compatriotas.' Ora, meu caro Swann, há cerca de um ano e meio, uma conversa que tive com o general de Beauserfeuil fez-me suspeitar de que, não propriamente um erro, porém graves irregularidades haviam sido cometidas no desenrolar do processo."
     Fomos interrompidos (Swann fazia questão de que não lhe ouvissem a narrativa) pela voz do Sr. de Charlus que (aliás, sem se incomodar conosco) passava reconduzindo a Sra. de Surgis e se deteve para retê-la ainda mais, fosse por causa dos filhos dela, ou por esse desejo próprio dos Guermantes de não ver acabar o minuto atual, desejo que os agulhava numa espécie de ansiosa inércia. Swann revelou-me a problema um pouco depois, algo que para mim tirou ao nome de Surgis-le-Duca poesia que eu lhe atribuíra. A marquesa de Surgis-le-Duc tinha uma ação mundana muito maior, alianças muito mais belas que seu primo, conde de Surgis, que, pobre, vivia em suas terras. Mas a palavra findava o título, "le Duc", de modo algum tinha a origem que eu lhe emprestava e que me fizera aproximá-lo, na minha imaginação, de Bourg-l'A Bois-le-Roi, etc.. Simplesmente um conde de Surgis desposara, durante a Restauração, a filha de um industrial riquíssimo, Sr. Leduc, ou Le Duc, próprio filho de um fabricante de produtos químicos, o homem mais rico do seu tempo, e que era para da França. O rei Carlos X havia criado para si e o filho nascido desse casamento o marquesado de Surgis-le-Duc, pois o marquesado de Surgis já existia na família. O acréscimo do nome burguês impedira esse ramo de se aliar, por causa da enorme fortuna, às primeiras famílias do reino. E a marquesa atual de Surgis-le-Duc, de grande nascimento, poderia ter uma situação de primeira ordem. Um demônio de perversidade a impelira, desdenhando sua situação já feita, a abandonar o lar conjugal, a viver da maneira mais escandalosa. Depois, o mundo desdenhava por ela há vinte anos, quando estava a seus pés, lhe faltara cruelmente, quando fazia dez anos que ninguém mais a saudava, a não ser as amigas fiéis, e ela empreendera reconquistar laboriosamente, peça por peça o que possuía ao nascer (reviravoltas que não são raras).  

continua na página 49...
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Volume 2
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