O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Terceira Parte
6.continuando...
.
Depois que melhorei, Kólia me garantiu que eu não dormira um só instante e que
não cessara de falar sobre Súrikov.
De vez em quando me vinha tal prostração,
verdadeiro estado de colapso, que quando Kólia teve de ir embora, não podia
dissimular sua aflição. Ao me levantar para fechar a porta, repentinamente me
lembrei do quadro que vira em casa de Rogójin, sobre a porta de uma daquelas
salas lúgubres. Mostrou-me ele próprio ao passarmos e creio que estive a
contemplá-lo bem uns cinco minutos. Não tem tal quadro valor algum sob o
ponto de vista artístico, mas produziu em mim certo mal- estar esquisito.
A tela representa Cristo acabado de ser descido da cruz. Creio que, via de regra,
os pintores que pintam Cristo na cruz ou depois de descido dela, timbram em
manter uma extraordinária beleza no seu rosto. Esforçam-se por preservar essa
beleza mesmo em suas mais tenebrosas agonias. No quadro de Rogójin não
havia o menor vestígio dessa beleza. Tratava-se tão-só, em tudo e por tudo, do
cadáver de um homem que padeceu infinita agonia antes de morrer crucificado;
que foi lanceado, torturado, flagelado pelos guardas e pelo povo quando
carregava a cruz no ombro e caía sob o seu peso e que depois de tudo isso
padeceu a agonia da crucificação, sobrevivendo ainda no mínimo seis horas
(conforme deduzo). Trata-se puramente do rosto de um homem acabado de ser
descido da cruz, isto é, manifestando ainda vestígios de calor e de vida. Não há
rigidez ainda, de forma que se nota expressão de sofrimento não terminado no
rosto do homem já morto, como se ele ainda estivesse sentindo. (Isso conseguiu
colher bem o artista que fez aquele quadro.) Não que a face tenha sido poupada.
Evidencia bem o cadáver de um homem, um ex-homem, a natureza de um ser
que acabou. Um homem qualquer deve ficar assim, não pode deixar de ficar
assim após tamanho sofrimento.
Sei que a Igreja Cristã estipula, desde os
primeiros séculos do Cristianismo, que o sofrimento de Cristo não foi simbólico
mas autêntico e que portanto o Seu corpo esteve sujeito de modo total e exato às
leis da natureza desde que foi pregado na cruz.
Na tela, o rosto está horrivelmente
macerado por golpes, tumefato, coberto de equimoses medonhas, violáceas;
deformado; os olhos dilatados, foscos, são uns olhos cujo branco emite um lividez de luz mortiça, meio vidrado. E o mais estranho é que ao se olhar para aquele
cadáver de homem torturado uma pergunta bizarra e específica se levanta: se
aquele cadáver (e o de Cristo deve ter ficado assim) fosse visto por seus
discípulos, por aqueles que teriam de ser
os seus principais apóstolos, pelas mulheres que o seguiram na via-sacra e que
permaneceram ao pé do madeiro, por todos que acreditaram nele e o adoraram
antes, como haveriam agora de acreditar que esse mártir ressuscitaria?
A
pergunta acode instintivamente: se a morte é tão terrível e se as leis da natureza
tão poderosas, como poderiam elas ser derrotadas?! Como poderiam elas ser
subjugadas, se nem mesmo ele, tal como está, as venceu, ele que em sua
existência governava a natureza a seu talante, exclamando: ‘Talitha cumi!’,
‘Levanta-te, rapariga!’ - e a jovem se levantou; dizendo para Lázaro: ‘Lázaro, sai
para fora!’ - e o morto saiu para fora? Contemplando uma tal tela, a gente
concebe a natureza sob a forma de um monstro imenso, impiedoso, bronco,
mudo, ou, mais exatamente, bem mais veridicamente falando, por mais que soe
estranho, sob a forma de uma nefanda máquina de construção recentíssima que,
muda e apática, esmagou e devorou um ser infinitamente precioso, um ser que
vale mais do que toda a natureza com as suas leis, que vale toda a Terra que foi
criada sem dúvida somente para o advento e descida a ela, à Terra, desse ser!
Tal quadro exprime e inconscientemente sugere a qualquer um a concepção de
uma tão negra, misteriosa, insolente, incrível e eterna força que não há quem
possa fugir à sua sujeição. Se há quem esteja rodeando o morto (na tela não
aparece ninguém), deve estar experimentando a mais terrível angústia, a mais
tremenda consternação, pois aquele crepúsculo do Gólgota deve estar
esmagando todas as suas esperanças, e a bem dizer todas as suas convicções. E
deve sair dali tomado de pavor, levando dentro de si um pensamento poderoso,
do qual jamais se livrará. E se o Mestre pudesse se ter visto assim, na véspera da
crucificação, teria ele subido ao madeiro e morrido como o fez? Esta é uma
outra interrogação que se levanta também no espírito de quem contempla aquele
quadro.
Tudo isso flutuou na minha mente, em intervalos, em um delírio difuso durante
hora e meia antes de Kólia ir embora; e não raro tomando forma e aspecto de
visão aguda. Pode uma coisa que não tem forma aparecer de fato? Mas a
verdade é que me pareceu naqueles instantes ver sob uma conformação estranha
e incrível aquela Força estupidamente misteriosa, aquele Poder cego e surdo.
Lembro-me que não sei quem parecia me levar pela mão, soerguendo um
castiçal, para me mostrar uma enorme aranha repugnante, asseverando-me a
rir, diante da minha indignação, que ela era a mesmíssima força misteriosa,
muda e onipotente.
No meu quarto, diante do ícone, está sempre acesa uma
pequena lâmpada. Dá uma luz muito fraca, mas ainda assim alumia tudo e até se
pode ler, perto dela. Creio que já devia ser mais de meia-noite. Eu não
dormia, absolutamente, estirado na cama, com os olhos arregalados. De
repente, a porta do meu quarto se abriu e Rogójin entrou. Entrou, fechou a porta,
olhou-me sem dizer nada e se dirigiu vagarosamente para a cadeira que estava
bem embaixo da lâmpada. Fiquei muito surpreendido e o encarei, perplexo.
Rogójin fincou os cotovelos sobre a mesinha e fixou os olhos em mim, sempre
calado. Assim se passaram dois ou três minutos, e me lembro que aquele seu
silêncio me ofendia e irritava imensamente. Por que não falava? A sua vinda
àquelas horas da noite era descabida, evidentemente. mas não era isso que me
chocava. E sim uma coisa muito outra. Mesmo não lhe tendo eu, de manhã,
esclarecido bem os meus pensamentos, ele os havia entendido, parecendo-me
pois explicável que, tendo aparecido àquelas horas ermas, o fizesse para retomar
tal conversa. Ao vê-lo entrar eu só podia supor que essa fosse a razão do seu
aparecimento. Despedíramo-nos, de manhã, quase abruptamente, e me lembro
que me lançara duas ou três vezes um olhar sarcástico. E agora eu estava vendo
em seu rosto aquele mesmo olhar sarcástico, e isso me ofendia
insuportavelmente. Que se tratava de Rogójin mesmo e não de uma aparição, de
uma alucinação, eu não tinha a mais leve dúvida, desde o começo. E nem isso
me passou pela cabeça. E lá continuava ele, sentado, fitando-me com a mesma
expressão sarcástica. Virei-me, furioso, na cama, com o cotovelo apoiado no
travesseiro, decidido a não dizer uma só palavra, também eu, nem que ele
teimasse em seu mutismo até à consumação dos séculos. Ele que falasse
primeiro se quisesse. Assim se passaram bem uns vinte minutos, até que me
invadiu uma desconfiança: e se não fosse Rogójin, mas apenas uma aparição?
Jamais vira eu uma aparição, antes ou durante a minha moléstia, mas achava,
desde criança, e ultimamente também, que se alguma vez me aparecesse tal
coisa eu morreria togo no próprio local, muito embora não acreditasse em
fantasmas. Quando, porém, a ideia me assaltou de que em vez de Rogójin fosse
uma aparição, recordo que absolutamente não fiquei amedrontado. Fiquei mais
foi com ódio. Outra coisa estranha, ainda, não ter eu tido pressa em resolver
verificar se era Rogójin ou fantasma, como deveria ter feito. Parece que um
novo pensamento, ligado a Rogójin, tomara o meu raciocínio: interessava-me
determinado contraste, isto é, que de manhã Rogójin estava em robe de chambre
e de chinelas, quando o visitei, ao passo que então, nessa noite, se apresentava de
casaca, colete branco e gravata de soirée. Um raciocínio se apresentou como
opção definitiva: ‘se penso tratar-se de aparição, e não estou com medo, por que
não ir até acolá verificar de uma vez? Faltar-me
ia coragem? Estaria eu com receio?’ Mal acabara de me perguntar isto, um
calafrio me percorreu a espinha e os meus joelhos deram em tremer como
varas. Bem nesse instante, como adivinhando o meu pânico, Rogójin tirou a mão
do queixo, esticou o rosto e começou a entreabrir os beiços como se fosse dar
uma gargalhada, sempre me fixando persistentemente. Tomou-me uma tal fúria
que quase me arremessei sobre ele. Mas como eu teimava em não querer falar
primeiro, e nem me mexer, continuei mudo e deitado. Ainda por cima, seria
mesmo Rogójin? Sei lá quanto tempo tal cena durou! Tampouco posso garantir se
perdi a consciência nesse ínterim. Finalmente ele se levantou, lançou sobre mim
um olhar deliberadamente enigmático, igual ao com que entrara, desmanchou o
riso sarcástico, dirigiu-se na ponta dos pés para a porta, abriu-a e saiu.
Não me
levantei da cama. Permaneci de lado, a pensar, não sei quanto tempo, com os
olhos arregalados. Só Deus sabe que pensamentos tumultuavam em mim. Não
saberei dizer mesmo como perdi a consciência e consegui dormir. Só acordei
quando na manhã seguinte, já às dez horas, bateram na minha porta. Eu dera
ordem para que Matrióna batesse sempre que eu não abrisse a minha porta até às
dez horas pedindo que me trouxessem o chá. Quando a fui abrir, me ocorreu
logo este pensamento: ‘como poderia ele ter entrado se esta porta está fechada
por dentro?’ Indaguei sobre a porta da rua e as do vestíbulo e do corredor,
acabando por me convencer firmemente que Rogójin, em carne e osso, não
podia ter entrado em casa e muito menos no meu quarto, já que as portas tinham
sido fechadas.
Ora muito bem, foi este singular incidente, cujas minúcias acabo de relatar, a
causa dos raciocínios que me levaram até esta derradeira decisão. O que me
levou a ela não foi nenhuma convicção lógica e sim um sentimento de repulsão.
Eu não podia continuar a tolerar uma vida que ia tomando formas tão estranhas e
humilhantes. Aquela aparição degradou-me. Outras coisas continuariam a me
degradar. Não sou criatura que se submeta a uma força sinistra que toma a
conformação até de uma aranha! Foi somente já ao anoitecer, quando me
certifiquei de que havia alcançado o momento final em uma determinação
categórica, que senti certo alívio. Tratava-se, porém, apenas do primeiro estágio;
para realizar o segundo, necessário era ir para Pávlovsk. Mas tudo isso já
expliquei suficientemente.”
continua página 371...
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