domingo, 13 de abril de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (6c) - Depois que melhorei

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
6.

continuando...
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     Depois que melhorei, Kólia me garantiu que eu não dormira um só instante e que não cessara de falar sobre Súrikov.
     De vez em quando me vinha tal prostração, verdadeiro estado de colapso, que quando Kólia teve de ir embora, não podia dissimular sua aflição. Ao me levantar para fechar a porta, repentinamente me lembrei do quadro que vira em casa de Rogójin, sobre a porta de uma daquelas salas lúgubres. Mostrou-me ele próprio ao passarmos e creio que estive a contemplá-lo bem uns cinco minutos. Não tem tal quadro valor algum sob o ponto de vista artístico, mas produziu em mim certo mal- estar esquisito.
     A tela representa Cristo acabado de ser descido da cruz. Creio que, via de regra, os pintores que pintam Cristo na cruz ou depois de descido dela, timbram em manter uma extraordinária beleza no seu rosto. Esforçam-se por preservar essa beleza mesmo em suas mais tenebrosas agonias. No quadro de Rogójin não havia o menor vestígio dessa beleza. Tratava-se tão-só, em tudo e por tudo, do cadáver de um homem que padeceu infinita agonia antes de morrer crucificado; que foi lanceado, torturado, flagelado pelos guardas e pelo povo quando carregava a cruz no ombro e caía sob o seu peso e que depois de tudo isso padeceu a agonia da crucificação, sobrevivendo ainda no mínimo seis horas (conforme deduzo). Trata-se puramente do rosto de um homem acabado de ser descido da cruz, isto é, manifestando ainda vestígios de calor e de vida. Não há rigidez ainda, de forma que se nota expressão de sofrimento não terminado no rosto do homem já morto, como se ele ainda estivesse sentindo. (Isso conseguiu colher bem o artista que fez aquele quadro.) Não que a face tenha sido poupada. Evidencia bem o cadáver de um homem, um ex-homem, a natureza de um ser que acabou. Um homem qualquer deve ficar assim, não pode deixar de ficar assim após tamanho sofrimento.
     Sei que a Igreja Cristã estipula, desde os primeiros séculos do Cristianismo, que o sofrimento de Cristo não foi simbólico mas autêntico e que portanto o Seu corpo esteve sujeito de modo total e exato às leis da natureza desde que foi pregado na cruz.
     Na tela, o rosto está horrivelmente macerado por golpes, tumefato, coberto de equimoses medonhas, violáceas; deformado; os olhos dilatados, foscos, são uns olhos cujo branco emite um lividez de luz mortiça, meio vidrado. E o mais estranho é que ao se olhar para aquele cadáver de homem torturado uma pergunta bizarra e específica se levanta: se aquele cadáver (e o de Cristo deve ter ficado assim) fosse visto por seus discípulos, por aqueles que teriam de ser os seus principais apóstolos, pelas mulheres que o seguiram na via-sacra e que permaneceram ao pé do madeiro, por todos que acreditaram nele e o adoraram antes, como haveriam agora de acreditar que esse mártir ressuscitaria?
     A pergunta acode instintivamente: se a morte é tão terrível e se as leis da natureza tão poderosas, como poderiam elas ser derrotadas?! Como poderiam elas ser subjugadas, se nem mesmo ele, tal como está, as venceu, ele que em sua existência governava a natureza a seu talante, exclamando: ‘Talitha cumi!’, ‘Levanta-te, rapariga!’ - e a jovem se levantou; dizendo para Lázaro: ‘Lázaro, sai para fora!’ - e o morto saiu para fora? Contemplando uma tal tela, a gente concebe a natureza sob a forma de um monstro imenso, impiedoso, bronco, mudo, ou, mais exatamente, bem mais veridicamente falando, por mais que soe estranho, sob a forma de uma nefanda máquina de construção recentíssima que, muda e apática, esmagou e devorou um ser infinitamente precioso, um ser que vale mais do que toda a natureza com as suas leis, que vale toda a Terra que foi criada sem dúvida somente para o advento e descida a ela, à Terra, desse ser!
      Tal quadro exprime e inconscientemente sugere a qualquer um a concepção de uma tão negra, misteriosa, insolente, incrível e eterna força que não há quem possa fugir à sua sujeição. Se há quem esteja rodeando o morto (na tela não aparece ninguém), deve estar experimentando a mais terrível angústia, a mais tremenda consternação, pois aquele crepúsculo do Gólgota deve estar esmagando todas as suas esperanças, e a bem dizer todas as suas convicções. E deve sair dali tomado de pavor, levando dentro de si um pensamento poderoso, do qual jamais se livrará. E se o Mestre pudesse se ter visto assim, na véspera da crucificação, teria ele subido ao madeiro e morrido como o fez? Esta é uma outra interrogação que se levanta também no espírito de quem contempla aquele quadro.
     Tudo isso flutuou na minha mente, em intervalos, em um delírio difuso durante hora e meia antes de Kólia ir embora; e não raro tomando forma e aspecto de visão aguda. Pode uma coisa que não tem forma aparecer de fato? Mas a verdade é que me pareceu naqueles instantes ver sob uma conformação estranha e incrível aquela Força estupidamente misteriosa, aquele Poder cego e surdo. Lembro-me que não sei quem parecia me levar pela mão, soerguendo um castiçal, para me mostrar uma enorme aranha repugnante, asseverando-me a rir, diante da minha indignação, que ela era a mesmíssima força misteriosa, muda e onipotente.
     No meu quarto, diante do ícone, está sempre acesa uma pequena lâmpada. Dá uma luz muito fraca, mas ainda assim alumia tudo e até se pode ler, perto dela. Creio que já devia ser mais de meia-noite. Eu não dormia, absolutamente, estirado na cama, com os olhos arregalados. De repente, a porta do meu quarto se abriu e Rogójin entrou. Entrou, fechou a porta, olhou-me sem dizer nada e se dirigiu vagarosamente para a cadeira que estava bem embaixo da lâmpada. Fiquei muito surpreendido e o encarei, perplexo. Rogójin fincou os cotovelos sobre a mesinha e fixou os olhos em mim, sempre calado. Assim se passaram dois ou três minutos, e me lembro que aquele seu silêncio me ofendia e irritava imensamente. Por que não falava? A sua vinda àquelas horas da noite era descabida, evidentemente. mas não era isso que me chocava. E sim uma coisa muito outra. Mesmo não lhe tendo eu, de manhã, esclarecido bem os meus pensamentos, ele os havia entendido, parecendo-me pois explicável que, tendo aparecido àquelas horas ermas, o fizesse para retomar tal conversa. Ao vê-lo entrar eu só podia supor que essa fosse a razão do seu aparecimento. Despedíramo-nos, de manhã, quase abruptamente, e me lembro que me lançara duas ou três vezes um olhar sarcástico. E agora eu estava vendo em seu rosto aquele mesmo olhar sarcástico, e isso me ofendia insuportavelmente. Que se tratava de Rogójin mesmo e não de uma aparição, de uma alucinação, eu não tinha a mais leve dúvida, desde o começo. E nem isso me passou pela cabeça. E lá continuava ele, sentado, fitando-me com a mesma expressão sarcástica. Virei-me, furioso, na cama, com o cotovelo apoiado no travesseiro, decidido a não dizer uma só palavra, também eu, nem que ele teimasse em seu mutismo até à consumação dos séculos. Ele que falasse primeiro se quisesse. Assim se passaram bem uns vinte minutos, até que me invadiu uma desconfiança: e se não fosse Rogójin, mas apenas uma aparição? Jamais vira eu uma aparição, antes ou durante a minha moléstia, mas achava, desde criança, e ultimamente também, que se alguma vez me aparecesse tal coisa eu morreria togo no próprio local, muito embora não acreditasse em fantasmas. Quando, porém, a ideia me assaltou de que em vez de Rogójin fosse uma aparição, recordo que absolutamente não fiquei amedrontado. Fiquei mais foi com ódio. Outra coisa estranha, ainda, não ter eu tido pressa em resolver verificar se era Rogójin ou fantasma, como deveria ter feito. Parece que um novo pensamento, ligado a Rogójin, tomara o meu raciocínio: interessava-me determinado contraste, isto é, que de manhã Rogójin estava em robe de chambre e de chinelas, quando o visitei, ao passo que então, nessa noite, se apresentava de casaca, colete branco e gravata de soirée. Um raciocínio se apresentou como opção definitiva: ‘se penso tratar-se de aparição, e não estou com medo, por que não ir até acolá verificar de uma vez? Faltar-me ia coragem? Estaria eu com receio?’ Mal acabara de me perguntar isto, um calafrio me percorreu a espinha e os meus joelhos deram em tremer como varas. Bem nesse instante, como adivinhando o meu pânico, Rogójin tirou a mão do queixo, esticou o rosto e começou a entreabrir os beiços como se fosse dar uma gargalhada, sempre me fixando persistentemente. Tomou-me uma tal fúria que quase me arremessei sobre ele. Mas como eu teimava em não querer falar primeiro, e nem me mexer, continuei mudo e deitado. Ainda por cima, seria mesmo Rogójin? Sei lá quanto tempo tal cena durou! Tampouco posso garantir se perdi a consciência nesse ínterim. Finalmente ele se levantou, lançou sobre mim um olhar deliberadamente enigmático, igual ao com que entrara, desmanchou o riso sarcástico, dirigiu-se na ponta dos pés para a porta, abriu-a e saiu.
     Não me levantei da cama. Permaneci de lado, a pensar, não sei quanto tempo, com os olhos arregalados. Só Deus sabe que pensamentos tumultuavam em mim. Não saberei dizer mesmo como perdi a consciência e consegui dormir. Só acordei quando na manhã seguinte, já às dez horas, bateram na minha porta. Eu dera ordem para que Matrióna batesse sempre que eu não abrisse a minha porta até às dez horas pedindo que me trouxessem o chá. Quando a fui abrir, me ocorreu logo este pensamento: ‘como poderia ele ter entrado se esta porta está fechada por dentro?’ Indaguei sobre a porta da rua e as do vestíbulo e do corredor, acabando por me convencer firmemente que Rogójin, em carne e osso, não podia ter entrado em casa e muito menos no meu quarto, já que as portas tinham sido fechadas.
     Ora muito bem, foi este singular incidente, cujas minúcias acabo de relatar, a causa dos raciocínios que me levaram até esta derradeira decisão. O que me levou a ela não foi nenhuma convicção lógica e sim um sentimento de repulsão. Eu não podia continuar a tolerar uma vida que ia tomando formas tão estranhas e humilhantes. Aquela aparição degradou-me. Outras coisas continuariam a me degradar. Não sou criatura que se submeta a uma força sinistra que toma a conformação até de uma aranha! Foi somente já ao anoitecer, quando me certifiquei de que havia alcançado o momento final em uma determinação categórica, que senti certo alívio. Tratava-se, porém, apenas do primeiro estágio; para realizar o segundo, necessário era ir para Pávlovsk. Mas tudo isso já expliquei suficientemente.”

O Idiota: Terceira Parte (6c) - Depois que melhorei
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