em busca do tempo perdido
volume III
O Caminho de Guermantes
Primeira Parte
Primeira Parte
Essas teorias de Saint-Loup me fizeram feliz. Permitiram-me esperar que talvez eu não me enganasse em minha vida em Doncieres, com respeito a esses oficiais de quem ouvia falar bebendo o Sauternes que projetava encantadores reflexos sobre eles, com o mesmo caso de aumento que me fizera parecer imensos, enquanto estava em Balbec, o rei e a rainha da Oceania, e pequena sociedade dos quatro gourmets, o jovem jogador, o cunhado de Legrandin, agora diminuídos a meus olhos a ponto de me parecerem inexistentes. O que me agradava, hoje, talvez não se me tornasse indiferente amanhã, como até então sempre me sucedera; a criatura que eu era ainda naquele momento talvez não fosse votada a uma destruição próxima, visto que, à paixão ardente e fugitiva que eu dedicava, naquelas poucas noites, a tudo o que se referisse à vida militar, Saint-Loup, pelo que acabara de me dizer quanto à arte da guerra, acrescentava uma base intelectual, de natureza permanente, capaz de sujeitar-me com força bastante para que pudesse acreditar, sem tentar enganar a mim mesmo, que, uma vez longe dali, continuaria a me interessar pelos trabalhos de meus amigos de Doncieres e não tardaria em voltar para junto deles. A fim de estar mais certo, no entanto, de que essa arte bélica fosse mesmo uma arte no sentido espiritual da palavra:
- Você me interessa, perdão, tu me interessas muito. - disse à Saint-Loup -; mas conta-me,
há um ponto que me inquieta. Sinto que poderia me apaixonar pela arte militar, mas para isso
seria necessário que não a julgasse diversa das outras artes, a tal ponto que a regra aprendida
não fosse tudo. Tu me dizes que se copiam batalhas. Encontro nisso um efeito estético, como
dizias, de ver sob uma batalha moderna uma outra mais antiga. Nem sei te dizer como isto me
agrada. Mas então, o gênio do comandante não vale nada? Na verdade, ele não faz senão aplicar
regras? Ou então, para ciência igual, existem grandes generais, como há grandes cirurgiões que,
sendo idênticos os elementos fornecidos por dois estados doentios, do ponto de vista material,
sentem no entanto por um nada, talvez tirado de sua experiência, mas interpretado, que num caso
é preferível fazer isto, noutro caso melhor fazer aquilo, que nesse caso o melhor talvez seja operar
e naquele abster-se?
- Claro que sim! Verás Napoleão não atacar quando todas as regras mandam que ataque,
mas uma obscura adivinhação o aconselha a não fazê-lo. Por exemplo, vês em Austerlitz, ou
então em 1806, suas instruções a Lannes. Mas verás generais imitarem escolasticamente
determinada manobra de Napoleão e chegarem a resultado diametralmente oposto. Dez
exemplos disso em 1870. Porém, mesmo para a interpretação do que pode fazer o adversário, o
que ele faz é apenas um sintoma que pode significar muitas coisas diferentes. Cada uma delas
possui chances idênticas de ser a verdadeira se nos ativermos ao raciocínio e à ciência, assim
como, em certos casos complexos, toda a ciência médica do mundo não será bastante para
decidir se o tumor invisível é fibroso ou não, se a operação deve ou não ser feita. É o faro, a
adivinhação do tipo da Sra. de Thebes (tu me compreendes), que decide tanto no grande general
como no grande médico. Assim te disse, para dar um exemplo, o que podia significar um
reconhecimento no começo de uma batalha. Mas pode significar dez outras coisas; por exemplo,
fazer o inimigo crer que vai ser atacado num ponto enquanto se deseja atacá-lo em outro, erguer
uma cortina que o impeça de ver os preparativos da operação verdadeira, forçá-lo a trazer tropas,
a fixá-las, a imobilizá-las em outro local diverso de onde elas serão necessárias, inteirar-se das
forças de que ele dispõe, sondá-lo, forçá-lo a abrir o jogo. Até, às vezes, o fato de se empregarem
tropas enormes numa operação não é prova de que ela seja a verdadeira; pois muito bem pode
se executá-la a sério, embora se trate apenas de um despistamento, para que tal despistamento
tenha mais probabilidades de iludir. Se tivesse tempo de te contar, sob este ponto de vista, as
guerras de Napoleão, asseguro-te que estes simples movimentos clássicos que estudamos, e que
nos verás executando em serviço no campo, por simples distração de passeio, meu jovem
tratante; não, sei que estás doente, perdão! Muito bem, numa guerra, quando sentimos por trás
desses movimentos a vigilância, o raciocínio e as profundas investigações do alto comando,
emocionamo-nos diante deles como diante dos simples fogos de um farol, luz material, mas
emanação do espírito e que pesquisa o espaço para assinalar o perigo aos navios. Talvez esteja
errado em te falar exclusivamente da literatura de guerra. Na realidade, como a direção do vento e
da luz, e a constituição do solo, indicam para que lado uma árvore há de crescer, as condições em
que se faz uma campanha e as características da região na qual se manobra comandam de
algum modo, e limitam, os pianos entre os quais o general pode escolher. De forma que, ao longo
das montanhas, num sistema de vales, em determinadas planícies, é quase com o caráter de
necessidade e de beleza grandioso de avalanchas que podes prever a marcha dos exércitos.
- Agora, tu me recusas a liberdade do chefe, a adivinhação do adversário que deseja ler
em seus planos, e que há pouco admitias.
- Mas de jeito nenhum! Lembra-te daquele livro de filosofia que líamos juntos em Balbec, a
riqueza do mundo dos possíveis em relação ao mundo real. Muito bem! Ocorre o mesmo na arte
militar. Numa dada situação, haverá quatro planos que se impõem, e entre eles o general pôde
escolher, como uma doença pode seguir diversas evoluções às quais o médico deve se cingir. E
ainda aí a fraqueza e a grandeza humanas são novas fontes de incerteza. Pois entre esses quatro
planos, digamos que por motivos contingentes (como objetivos acessórios a atingir, ou o tempo,
que urge, ou o número pequeno, ou o mau abastecimento dos efetivos), o general prefira o
primeiro plano, que é menos perfeito, mas de execução menos dispendiosa, mas rápida e que tem
como terreno uma região mais rica para alimentar o seu exército. Tendo começado por esse
primeiro plano no qual o inimigo, a princípio inseguro, em breve lerá claramente, ele pode não
conseguir êxito, devido a obstáculos excessivos - é o que denomino o acaso que provém da
fraqueza humana -, e abandoná-lo para tentar o segundo, o terceiro ou o quarto planos. Mas
também pode acontecer que ele não tenha tentado o primeiro e dá-se aqui o que chamo de
grandeza humana senão por despiste, a fim de fixar o adversário de modo a surpreendê-lo no
ponto em que este não imaginava ser atacado. Foi assim que, em Ulm, Mack, que esperava o
inimigo a oeste, foi envolvido pelo norte, onde se considerava bem tranquilo. Aliás, o meu exemplo
não é muito bom. E Ulm é um tipo melhor de batalha de envolvimento que o futuro verá
reproduzir-se, porque não é unicamente um exemplo clássico em que os generais hão de se
inspirar, mas uma forma de algum modo necessária (necessária entre outras, o que dá margem à
escolha, à variedade), como um tipo de cristalização. Mas tudo isso não significa nada, pois esses
quadros, apesar de tudo, são fictícios. Retorno ao nosso livro de filosofia: isto é como os princípios
racionais ou as leis científicas, a realidade se conforma a essas coisas de maneira aproximada;
mas lembra-te do grande matemático Poincaré: ele não está certo de que as matemáticas sejam
rigorosamente exatas. Quanto aos próprios regulamentos, de que já te falei, eles são em suma de
uma importância secundária; aliás, são mudados de tempos em tempos. Assim, quanto a nós, da
cavalaria, vivemos de acordo com o Serviço de Campanha, de 1895, do qual se pode dizer que
está ultrapassado, pois se baseia na velha e desusada doutrina que considera que o combate de
cavalaria tem um efeito quase só moral devido ao terror que causa ao adversário. Ora, os mais
inteligentes de nossos mestres, que são o que há de melhor na cavalaria, e notadamente o
comandante de que te falei, consideram ao contrário que a decisão será obtida graças a uma
verdadeira peleja em que se esgrimam o sabre e a lança e onde será vencedor o mais tenaz, não
só moralmente e devido a uma impressão de terror, mas materialmente.
- Saint-Loup tem razão e é provável que o próximo Serviço de Campanha apresente o
traço dessa evolução. - disse o meu vizinho.
- Não me desagrada a tua aprovação, pois tuas opiniões parecem causar mais impressão
do que as minhas sobre o meu amigo. - disse rindo Saint-Loup, seja que essa simpatia nascente
entre mim e o seu companheiro o agastasse um pouco, seja que ele achasse amável consagra-la
constatando-a oficialmente. - E, depois, talvez eu tenha diminuído a importância dos
regulamentos. É certo que são mudados. Mas, enquanto isso, eles comandam a situação militar,
os planos de campanha e a concentração. Se refletem uma falsa concepção estratégica, podem
ser o princípio inicial da derrota. Tudo isto é um pouco técnico demais para ti. - disse ele. - No
fundo, não te esqueças de que o que precipita ao máximo a evolução da arte da guerra são as
próprias guerras. No decurso de uma campanha, se é um tanto prolongada, vê-se um dos
beligerantes aproveitar-se das lições que lhe dão os êxitos e os enganos do adversário,
aperfeiçoar os métodos deste, que, por sua vez, disputa com ele. Mas isto pertence ao passado.
Com os terríveis progressos da artilharia, as guerras futuras, se ainda houver guerras, serão tão
curtas que, antes que se possa sonhar em tirar partido das informações, a paz já estará concluída.
que, antes que se possa sonhar em tirar partido das informações, a paz já estará concluída. - Não sejas tão suscetível. - disse eu a Saint-Loup, respondendo ao que ele dissera antes
destas últimas palavras. - Eu te escutei com bastante avidez!
- Se não te irritas de novo e me dás licença. - tornou o amigo de Saint-Loup -,
acrescentarei ao que acabas de dizer que, se as batalhas se imitam e se superpõem, não é
apenas devido ao espírito do chefe. Pode suceder que um erro do chefe (por exemplo, sua
avaliação insuficiente do mérito do adversário) o conduza a pedir sacrifícios exagerados às tropas,
sacrifícios que certas unidades hão de cumprir com uma abnegação tão sublime que seu papel,
assim, será análogo ao daquela outra unidade em uma determinada batalha diversa, e ambas
serão citadas na história como exemplos intercambiáveis: para nos atermos a 1870, a guarda
prussiana em Saint-Privat, os turcos em Froeschwiller e em Wissemburgo.
- Ah! Intercambiáveis, muito justo! Excelente! Tu és inteligente. - disse Saint-Loup.
Não me deixavam indiferente estes últimos exemplos, como ocorria sempre que alguém
me mostrava o geral sob o particular. Entretanto, o que me interessava era o gênio do chefe.
Gostaria de perceber em que consistia, e como, em determinada circunstância em que o chefe
sem gênio não poderia resistir ao adversário, se comportaria o chefe genial para reparar a batalha
comprometida, o que, segundo Saint-Loup, era bem possível e fora realizado várias vezes por
Napoleão. E, para compreender em que consistia o valor militar, eu pedia comparações entre os
generais cujos nomes conhecia, indagava o que possuía a mais a natureza de um chefe,
perguntava a respeito dos dotes de um estrategista, arriscando-me a aborrecer meus novos
amigos, que ao menos não o aparentavam e me respondiam com infatigável bondade.
Sentia-me separado, não só da grande noite gelada que se estendia ao longe e na qual
ouvíamos de vez em quando o silvo de um trem que apenas tornava mais vivo o prazer de estar
ali, ou as batidas de uma hora que felizmente ainda estava afastada daquela em que esses
rapazes deveriam pegar os sabres e ir embora, mas também de todas as preocupações
exteriores, quase até da lembrança da Sra. de Guermantes, pela bondade de Saint-Loup à qual a
de seus amigos, que se lhe acrescentava, dava como que maior espessura, e também pelo calor
daquela saleta de jantar, pelo sabor dos pratos requintados que nos serviam. Davam tanto maior
prazer à minha imaginação quanto à minha gulodice; às vezes, a pequena porção de natureza de
onde tinham sido extraídos rugosa pia benta da ostra na qual ficam algumas gotas de água
salgada, ou sarmento nodoso, pâmpanos amarelados de um cacho de uvas, essa porção ainda os
cercava, incomestível, poética e distante como uma paisagem, e fazendo seguir-se, no decurso do
jantar, as evocações de uma sesta sob uma videira e de um passeio no mar; de outras vezes,
somente pelo cozinheiro é que era posta em relevo essa particularidade original das avitualhas,
que ele apresentava em seu quadro natural como uma obra de arte; e um peixe cozido em molho
de escabeche era trazido num longo prato de barro, onde, como se destacasse em relevo sobre
camadas de ervas azuis, infrangível mas contorcido ainda por ter sido jogado vivo em água
fervente, rodeado de um círculo de mariscos, animalzinhos satélites, caranguejos, camarões e
mexilhões, era como se aparecesse numa cerâmica de Bernard Palissy.
- Estou com ciúmes, estou furioso. - disse-me Saint-Loup, meio rindo, meio a sério,
fazendo alusão às intermináveis conversas à parte que eu tinha com seu amigo. - Será que você o
acha mais inteligente que eu? Gosta mais dele que de mim? Os homens que querem uma mulher
desaforadamente, que vivem numa sociedade de mulherengos se permitem gracejos que outros
não se atreveriam, pois veriam nelas não menos que a inocência.
Já que a conversação tornava-se generalizada evitavam todos falar em Dreyfus com receio
de constranger Saint-Loup. No entanto, uma semana depois, dois de seus camaradas falaram
como era curioso que, vivendo num meio tão militar eram tão dreyfusista e quase antimilitarista.
- O caso é disse eu sem querer entrar em detalhes – que a influência do meio não tem a
influência que se acredita.
Claro que eu esperava parar nesse ponto. Apesar disso as reflexões que formulara a
Saint-Loup alguns dias antes textualmente, com essas palavras, pelo menos dissera-as quase
para desculpar-me acrescentando:
- Era justamente o que para mim e por outro dia... - não contara com o reverso da gentil
admiração de Robert por mim assim como por algumas outras pessoas. Essa admiração era
completa; tanto que ao fim de quarenta e oito horas, ele se referia à mim esquecido que tais ideias
não eram suas. Assim, no que concernia minha modesta tese, Saint-Loup, absolutamente como
se ela sempre houvesse habitado o seu cérebro, e como se eu não fizesse mais que boas-vindas
em suas terras, achou-se no dever de me desejar calorosamente um meio de aprovar-me:
- Claro que sim! O meio não tem tanta importância.
E, com a mesma força de temesse ser interrompido ou incompreendido por mim, disse:
- A verdadeira influência é a do meio intelectual! Cada qual é o homem de sua própria
ideia.
Deteve-se por um momento com um sorriso de quem digeriu bem, deixou cair o monóculo
e pousando o olhar em mim como uma barreira:
- Todos os homens de uma mesma ideia são semelhantes. - disse-me em tom de desafio.
Sem dúvida não se lembrava que eu lhe dissera, poucos dias antes, aquilo que na dúvida
dizia ele também. Nem sempre eu chegava a fundo com Saint-Loup com a mesma disposição de
ânimo. Em compensação lembrava tão bem todas as noites se uma recordação, um desgosto que
a gente sinta são capazes de nos abandonarmos às vezes, a ponto de não os percebermos mais,
também há várias noites em que por muito tempo não nos largam. Havia tarde em que ao
atravessar a cidade achava que encontraria a Sra. de Guermantes, e sentia tantas dores no peito
como se fora seccionado, que mal podia respirar. Dir-se-ia que uma parte de mim fora substituído
por um sofrimento equivalente a nostalgia e ao amor. E, por mais bem-feitos que fossem os
pontos de sutura, a gente vive muito mal quando a saudade de alguém substitui nossas vísceras,
parece que aquela ocupa mais lugar do que estas, sentimo-la permanentemente, e depois, que
ambiguidade sermos obrigados a pensar uma parte do nosso corpo! Unicamente, parece que
ficamos valendo mais. À menor brisa, suspiramos de opressão, mas também de langor. Eu
contemplava o céu. Se estava claro, dizia comigo: "Talvez ela esteja no campo, contemple as
mesmas estrelas, e quem sabe se, ao chegar ao restaurante, Robert não vai me dizer: ''Boas
notícias. Minha tia acaba de me escrever, ela gostaria de te ver, e virá até aqui." Não era só no
firmamento que eu colocava o pensamento da Sra. de Guermantes. Um ventinho suave que
passasse parecia trazer-me uma mensagem dela, como outrora de Gilberte nos trigais de
Méséglise: a gente não muda, o que fazemos é inserir nos sentimentos relativos a uma criatura
certo número de elementos adormecidos que eles desertam, mas que não lhe são estranhos. E,
além disso, tais sentimentos particulares, algo em nós sempre se esforça por levá-los a uma
verdade maior, ou seja, fazê-los juntarem-se a um sentimento mais geral, comum a toda a
humanidade, coisas com que os indivíduos e os desgostos que nos causam não são mais que
uma oportunidade de nos pôr em contato. O que proporcionava um pouco de prazer à minha pena
é que eu a sabia uma parcela mínima do amor universal. Sem dúvida, por julgar reconhecer
tristezas que experimentara a respeito de Gilberte, ou então quando à noite, em Combray, mamãe
não ficava no meu quarto, e também a lembrança de certas páginas de Bergotte, no sofrimento
que sentia e ao qual a Sra. de Guermantes, mais sua frieza e sua ausência, não estavam
claramente ligadas como a causa o é ao efeito no espírito de um sábio, eu não concluía que a
Sra. de Guermantes fosse tal causa. Pois não há dores físicas difusas, estendendo-se por
irradiação nas regiões exteriores à parte doente, mas que as abandonam para se dissipar por
inteiro se um facultativo toca o ponto preciso de onde elas provêm? E, no entanto, antes disso,
sua extensão dava-nos um tal caráter de vaguidão e de fatalidade que, impotentes em explicá-la,
e até em localizá-la, julgávamos impossível fosse curada. Encaminhando-me para o restaurante,
dizia comigo: "Já faz quatorze dias que não vejo a Sra. de Guermantes." Quatorze dias, o que só
parecia uma coisa imensa para mim, que, quando se tratava da Sra. de Guermantes, contava os
minutos. Para mim, não eram apenas as estrelas e a brisa, mas até as divisões aritméticas do
tempo que adquiriam algo de poético e doloroso. Todo dia era agora como a crista móvel de uma
incerta colina: de um lado, eu sentia que podia cair no esquecimento; do outro, era levado pela
necessidade de rever a duquesa. E estava mais próximo ora de um, ora de outro, não tendo
equilíbrio estável. Um dia eu me disse: "Talvez haja uma carta esta noite" e, ao chegar para jantar,
tive a coragem de indagar de Saint-Loup:
- Por acaso, não recebeste notícias de Paris?
- Sim. - respondeu-me com ar sombrio -, e elas não são boas.
Respirei, compreendendo que não era somente ele quem tinha desgostos e que as
notícias eram de sua amante; mas logo vi que uma das consequências seria a de impedir Robert,
durante muito tempo, de me levar à casa de sua tia.
Percebi que rebentara uma briga entre ele e a amante, seja por correspondência, seja que
ela tivesse vindo visitá-lo de manhã, entre dois trens. E as brigas, ainda as menos graves, que
tinham tido até então pareciam sempre insolúveis. Pois ela tinha mau gênio, sapateava, chorava,
por motivos tão incompreensíveis como as crianças que se trancam num quarto escuro, não vêm
jantar, recusando-se a dar qualquer explicação e apenas redobram de soluços quando, perdendo
a paciência, lhes damos palmadas. Saint-Loup sofreu horrivelmente com essa briga, mas é uma
forma de dizer por demais simples e que torna falsa a ideia que se deve fazer dessa dor. Quando
Robert se achou sozinho de novo, sem mais ter de pensar na amante, que partira cheia de
respeito por ele ao vê-lo tão enérgico, as angústias que sentira nas primeiras horas se acabaram
diante do irreparável, e o fim de uma angústia é algo tão suave que a briga, uma vez certa,
assumiu para ele um pouco do mesmo tipo de encanto que lhe daria uma reconciliação. Aquilo de
que principiou a sofrer um pouco mais tarde foram uma dor e um acidente secundário cujos fluxos
vinham incessantemente de si mesmo, à ideia de que ela talvez quisesse reaproximar-se, que não
era impossível que esperasse uma palavra dele, que, enquanto isso, por vingança, talvez fizesse
nalguma noite, em algum lugar, alguma coisa, e que bastaria que ele telegrafasse que ia chegar
para que tal coisa não ocorresse, que talvez outros se aproveitariam do tempo que perdia, e que,
dentro de alguns dias, seria tarde demais para tê-la de volta, pois já teria sido tomada por alguém.
De todas essas possibilidades ele não sabia coisa alguma, sua amante mantinha um silêncio que
acabou por lhe transtornar as ideias, a ponto de fazê-lo indagar-se se ela não estaria escondida
em Doncieres ou se não teria partido para a Índia.
continua na página 53...
________________
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Essas teorias de Saint-Loup)
Volume 4
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
Nenhum comentário:
Postar um comentário