terça-feira, 1 de outubro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Apesar daquele emaranhado

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez


continuando...

      Apesar daquele emaranhado de indícios, Florentino Ariza se apressou em descartar a possibilidade de que a mais velha das três fosse a autora do ataque, e depois absolveu também a mais moça, que era a mais bela e atrevida. Chegou a isso sem razões válidas, só porque a vigilância ansiosa que exercia sobre as três o induzira a transformar em certeza seu arraigado desejo de que a amante instantânea fosse a mãe do menino engaiolado. Tanto o seduziu essa suposição que começou a pensar nela com mais intensidade do que em Fermina Daza, sem fazer caso da evidência de que aquela mãe recente só vivia para a criança. Não tinha mais de vinte e cinco anos, e era esbelta e dourada, com umas pálpebras portuguesas que a tornavam mais distante, e a qualquer homem teriam bastado as meras migalhas da ternura com que cumulava o filho. Do café da manhã à hora de ir deitar se ocupava dele no salão, enquanto as outras jogavam xadrez chinês, e quando conseguia fazê-lo dormir pendurava do teto a gaiola de vime no lado mais fresco do convés. Mas nem quando estava dormindo se descuidava dele, pois balançava então a gaiola cantando entre dentes canções de noiva, enquanto seus pensamentos voavam por cima das privações da viagem. Florentino Ariza se aferrou à ilusão de quem mais cedo ou mais tarde se denunciaria, por um único gesto que fosse. Vigiava até a mudança de sua respiração no ritmo do relicário que trazia pendente sobre a blusa de batista, olhando-a sem dissimulação por cima do livro que fingia ler, e cometeu a impertinência calculada de trocar de lugar no refeitório para se sentar diante dela. Mas não obteve o mínimo indício de que ela fosse na realidade a depositária da outra metade do seu segredo.
      A única coisa que guardou dela, porque sua companheira mais moça a chamou, foi o nome sem sobrenome: Rosalba.
      No oitavo dia o navio navegou a duras penas por um turbulento estreito murado entre alcantis de mármore, e depois do almoço atracou em Porto Nare. Ali ficavam os passageiros que seguiriam viagem para o interior da província de Antioquia, uma das mais afetadas pela nova guerra civil. O porto era formado por meia dúzia de choças de palmas e um botequim de madeira com teto de zinco, e estava protegido por várias patrulhas de soldados descalços e mal armados, porque havia notícias de um plano dos insurretos para saquear os navios. Por trás das casas subia até o céu um promontório de montanhas agrestes com uma cornija de ferradura talhada à beira do precipício. Ninguém a bordo dormiu tranquilo, mas não houve assalto durante a noite e o porto amanheceu transformado em feira dominical, com índios que vendiam amuletos de marfim vegetal e beberagens de amor, no meio das recuas de mulas preparadas para a ascensão de seis dias até as selvas de orquídeas da cordilheira central.
     Florentino Ariza se havia entretido vendo a descarga do navio a lombo de negro, vira baixar os engradados de porcelana, os pianos de cauda para as solteiras de Envigado, e só reparou tarde demais que entre os passageiros que ficavam estava o grupo de Rosalba. Viu-as quando já iam montadas à amazona, com botas de mulher e sombrinhas de cores equatoriais, e então deu o passo que não se atrevera a dar nos dias anteriores: fez a Rosalba um gesto de adeus com a mão, e as três lhe responderam do mesmo modo, com uma familiaridade que lhe doeu nas entranhas por sua audácia tardia. Viu-as dar a volta por trás do botequim, seguidas pelas mulas carregadas com os baús, as caixas de chapéu e a gaiola da criança, e pouco depois viu-as subindo feito uma fila de formigas carregadeiras à beira do abismo, e desapareceram da sua vida. Então se sentiu só no mundo, e a lembrança de Fermina Daza, que ficara na tocaia durante os últimos dias, lhe desferiu a patada mortal.
      Sabia que ela se casava no sábado seguinte, em bodas de estrondo, e o ser que mais a amava e havia de amá-la por todo o sempre não teria sequer o direito de morrer por ela. Os ciúmes, até agora afogados em pranto, tornaram-se donos de sua alma. Rogava a Deus que a centelha da justiça divina fulminasse Fermina Daza quando se dispusesse a jurar amor e obediência a um homem que só a queria para esposa como um enfeite social, e se extasiava na visão da noiva, ou sua ou de ninguém, estendida de costas sobre as lousas da catedral, a flor de laranjeira nevada pelo orvalho da morte, e a cascata de espuma do véu sobre os mármores fúnebres de quatorze bispos sepultados diante do altar-mor. No entanto, uma vez consumada a vingança, arrependia-se da própria malvadez, e então via Fermina Daza levantando-se com seu alento de sempre, alheia mas viva, pois não conseguia imaginar o mundo sem ela. Não dormiu mais, e se às vezes se sentava para beliscar alguma coisa era para criar a ilusão de que Fermina Daza estivesse à mesa, ou ao contrário, para lhe recusar a homenagem de estar jejuando por causa dela. Às vezes se consolava com a certeza de que na embriaguez da festa de bodas, e até nas noites febris da lua-de-mel, Fermina Daza havia de padecer um instante, um ao menos, mas um de todas as maneiras, em que se ergueria em sua consciência o fantasma do noivo burlado, humilhado, cuspido, o que a faria perder a felicidade.
      Na véspera da chegada ao porto de Caracolí, que era o ponto final da viagem, o capitão ofereceu a festa tradicional de despedida, com uma orquestra de sopro formada pelos membros da tripulação, e fogos de artifício coloridos espocando da cabine de comando. O ministro da Grã-Bretanha sobrevivera à odisseia com um estoicismo exemplar, caçando com a câmara fotográfica os animais que não lhe permitiam matar a fuzil, e não houve noite em que não viesse jantar vestido a rigor. Mas na festa final apareceu com o traje escocês do clã MacTavish, e tocou a gaita à vontade e ensinou quem se interessou a dançar suas danças nacionais, e antes de raiar o dia tiveram, que levá-lo quase arrastado para o camarote. Florentino Ariza, prostrado de dor, tinha ido para o canto mais afastado da coberta, onde não chegavam nem notícias da pândega, e enrolou-se no capote de Lotário Thugut tratando de resistir ao calafrio dos ossos. Despertara às cinco da manhã, como desperta o condenado à morte na madrugada da execução, e em todo o sábado nada fizera além de imaginar minuto a minuto cada uma das fases das núpcias de Fermina Daza. Mais tarde, quando regressou a casa, descobriu que havia embrulhado as datas e que tudo tinha sido diferente de como imaginara, e teve até o bom senso de rir da própria fantasia.
     Seja como for, viveu um sábado de paixão que culminou com uma nova crise de febre, quando lhe pareceu que era o momento em que os recém-casados fugiam em segredo por uma porta falsa para se entregarem às delícias da primeira noite. Alguém que o viu tiritando de febre avisou o capitão, e este abandonou a festa com o médico de bordo temendo que fosse um caso de cólera, e o médico o despachou por precaução para o camarote de quarentena com uma boa carga de brometos. No dia seguinte, porém, quando avistaram as escarpas de Caracolí, a febre desaparecera e tinha o ânimo exaltado, porque no marasmo dos sedativos resolvera de uma vez por todas e sem mais aquela que mandava ao caralho o radiante futuro do telégrafo e regressava no mesmo navio à sua velha Rua das Janelas.
      Não foi difícil fazer com que o levassem de regresso em troca do camarote que havia cedido ao representante da rainha Vitória. O capitão também procurou dissuadi-lo com o argumento de que o telégrafo era a ciência do futuro. Tanto era assim, lhe disse, que já se inventava um sistema para instalá-lo nos navios. Mas ele resistiu a todo argumento, o capitão acabou por levá-lo de volta, não pela dívida do camarote, e sim porque conhecia seus vínculos reais com a Companhia Fluvial do Caribe.
      A viagem de descida se fez em menos de seis dias, e Florentino Ariza se sentiu de novo em casa logo que entraram de madrugada na laguna de Mercedes, e viu a esteira de luzes das canoas pesqueiras ondulando na marola do navio. Era noite ainda quando atracaram na enseada do Menino Perdido, que era o último porto dos vapores fluviais, a nove léguas da baía, antes de dragarem e botarem em condições a antiga passagem dos espanhóis. Os passageiros tinham que esperar até as seis da manhã para abordar a flotilha de chalupas de aluguel que os levariam até seu destino final. Mas Florentino Ariza estava tão aflito que saiu muito antes na chalupa do correio, cujos empregados o reconheciam como um dos seus. Antes de abandonar o navio cedeu à tentação de um ato simbólico: atirou n'água o petate, e o acompanhou com a vista em meio às tochas dos pescadores invisíveis, até que saiu da laguna e desapareceu no oceano. Tinha certeza de que não precisaria mais dele pelo resto dos seus dias. Nunca mais, porque nunca mais havia de abandonar a cidade de Fermina Daza.
     A baía era um remanso ao amanhecer. Por cima da névoa flutuante, Florentino Ariza viu a cúpula da catedral dourada pelas primeiras luzes, viu os pombais nos eirados, e guiando-se por eles localizou o balcão do palácio do Marquês de Casalduero, onde supunha que a mulher da sua desventura dormitava apoiada ainda no ombro do esposo saciado. Essa visão o dilacerou, mas não fez nada para reprimi-la, pelo contrário: desfrutou sua dor. O sol começava a esquentar quando a chalupa do correio abriu caminho pelo labirinto de veleiros ancorados, onde os cheiros incontáveis do mercado público, remexidos com a podridão do fundo, se confundiam numa só pestilência. A goleta de Riohacha acabava de chegar, e os grupos de estivadores com água pela cintura recebiam os passageiros na amurada e os carregavam até a margem. Florentino Ariza foi o primeiro a tocar terra saltando da chalupa do correio, e a partir de então não sentiu mais o fedor da baía mas apenas o cheiro pessoal de Fermina Daza no recinto da cidade. Tudo cheirava a ela.
      Não voltou à agência do telégrafo. Sua preocupação única eram os folhetins de amor e os volumes da Biblioteca Popular que a mãe continuava a comprar para ele, e que ele lia e tornava a ler enterrado numa rede até decorá-los. Sequer perguntou onde estava o violino. Reatou os contatos com seus amigos mais próximos, e às vezes jogavam bilhar ou conversavam nos cafés ao ar livre debaixo dos arcos da Praça da Catedral, mas não voltou aos bailes dos sábados: não podia concebê-los sem ela.
     Na mesma manhã em que voltou da viagem inacabada soube que Fermina Daza estava passando a lua-de-mel na Europa, e seu coração atordoado aceitou como fato que ela passaria a morar lá, se não para sempre ao menos por muitos anos. Esta certeza lhe trouxe as primeiras esperanças de esquecimento. Pensava em Rosalba, cuja lembrança se fazia mais ardente à medida que se apaziguavam as outras. Foi por essa época que deixou crescer o bigode de guias engomadas que não rasparia pelo resto da vida e que mudou seu modo de ser, e a ideia da substituição do amor o enfiou por caminhos imprevistos. O cheiro de Fermina Daza se foi tornando pouco a pouco menos frequente e intenso, e por fim ficou apenas nas gardênias brancas.
      Andava à deriva, sem saber por onde continuar a vida, certa noite de guerra em que a célebre viúva de Nazaret se refugiou aterrada em sua casa, porque a dela tinha sido destruída por um canhonaço, durante o sítio do general rebelde Ricardo Gaitán Obeso. Foi Trânsito Ariza que pegou a ocasião no vôo e mandou a viúva para o quarto do filho, a pretexto de que no seu não havia lugar, mas na verdade com a esperança de que outro amor o curasse daquele que não o deixava viver. Florentino Ariza não tinha tornado a fazer amor desde que foi desvirginado por Rosalba no camarote do navio, e lhe pareceu natural, numa noite de emergência, que a viúva dormisse na cama e ele na rede. Mas ela já tinha tomado a decisão por ele. Sentada na beira da cama em que Florentino Ariza estava deitado sem saber o que fazer, começou a falar com ele sobre a dor inconsolável da morte do marido três anos antes, e enquanto isso ia despindo e jogando pelos ares os crepes da viuvez, até que não guardou mais em si nem o anel de núpcias. Tirou a blusa de tafetá com bordados de vidrilho e a jogou através do quarto na poltrona do canto, atirou o corpinho por cima do ombro para o outro lado da cama, arrancou com um só puxão a saia talar de babados, as tiras de cetim das ligas e as fúnebres meias de seda, e espalhou tudo pelo chão, até atapetar o quarto com os últimos farrapos do seu luto. Fez tudo com tanto alvoroço, e com umas pausas tão bem medidas, que cada gesto seu parecia celebrado pelos canhonaços das tropas de assalto, que abalavam a cidade até os alicerces. Florentino Ariza procurou ajudá-la com o fecho do porta seios, mas ela se antecipou com uma manobra destra, pois em cinco anos de devoção matrimonial aprendera a se bastar a si mesma em todos os trâmites do amor, inclusive seus preâmbulos, sem ajuda de ninguém. Por fim tirou os calções de renda, fazendo-os resvalar pernas abaixo com um movimento rápido de nadadora, e ficou em carne viva.
      Tinha vinte e oito anos e parira três vezes, mas sua nudez conservava intacta a vertigem de solteira. Florentino Ariza jamais compreenderia como umas roupas de penitente tinham podido dissimular os ímpetos daquela potranca xucra que o desnudou sufocada pela própria febre, como não podia fazer com o esposo para que não a considerasse uma corrompida, e que tratou de saciar num só assalto a abstinência férrea do luto, com o estouvamento e a inocência de cinco anos de fidelidade conjugal. Antes dessa noite, e a partir da hora solene em que a mãe a pariu, jamais estivera sequer na mesma cama com um homem que não fosse o esposo morto.
     Não se permitiu o mau gosto de um remorso. Pelo contrário. Mantida em vigília pelas bolas de fogo que passavam zunindo por cima dos telhados, continuou evocando até o amanhecer as excelências do marido, só lhe censurando a deslealdade de haver morrido sem ela, e redimida pela certeza de que ele jamais fora tão seu quanto agora, dentro de um caixão cravado com doze cravos de três polegadas, e a dois metros debaixo da terra.

 — Sou feliz — disse — porque só agora sei com certeza onde está quando não está em casa.

continua na página 114...
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O Amor nos Tempos de Cólera: Apesar daquele emaranhado
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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