quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: O grupo da Escola de Belas-Artes

O Amor nos Tempos de Cólera

Gabriel García Márquez


continuando...

      O grupo da Escola de Belas-Artes iniciou o concerto, em meio a um silêncio formal que obteve para os compassos iniciais de La Chasse de Mozart. A despeito das vozes cada vez mais altas e confusas, e do estorvo dos criados negros do taverneiro Sancho que mal cabiam entre as mesas com as travessas fumegantes, o doutor Urbino conseguiu manter um canal aberto à música até o final do programa. Seu poder de concentração diminuía de ano para ano, até o ponto em que precisava anotar num papel cada jogada de xadrez para saber por onde ia. Mas ainda lhe era possível ocupar-se de uma conversação séria sem perder o fio de um concerto, embora sem chegar aos extremos magistrais de um maestro alemão, grande amigo seu em seus tempos de Áustria, que lia a partitura de Don Giovanni enquanto escutava Tannhauser,
     O segundo número do programa, que foi A Morte e a Donzela, de Schubert, pareceu-lhe executado com um dramatismo fácil. Enquanto a escutava a duras penas, através do barulho novo dos talheres nos pratos, mantinha o olhar fixo num rapaz de rosto rosado que o cumprimentou com uma inclinação de cabeça. Já o vira em algum lugar, sem dúvida, mas não lembrava onde. Isto lhe acontecia com frequência, sobretudo em relação ao nome das pessoas, mesmo as mais conhecidas suas, ou com uma melodia de outros tempos, e que lhe provocava uma angústia tão espantosa que se fosse por ela atacado durante a noite preferia morrer a suportá-la até o amanhecer. Estava a ponto de chegar a esse estado quando um fogacho caritativo lhe clareou a memória: o rapaz tinha sido seu aluno o ano anterior. Surpreendeu-se de vê-lo ali, no reino dos eleitos, mas o doutor Olivella lhe fez ver que era o filho do Ministro da Higiene, que tinha vindo preparar uma tese de medicina legal. O doutor Juvenal Urbino lhe fez uma saudação alegre com a mão, e o jovem médico se pôs de pé e respondeu com uma reverência. Mas nem então nem nunca percebeu que era o estudante que havia estado com ele nessa manhã na casa de Jeremiah de Saint-Amour.
      Aliviado por uma vitória a mais sobre a velhice, abandonou-se ao lirismo diáfano e fluido do último número do programa, que não pôde identificar. Mais tarde, o jovem violoncelista do conjunto, que acabava de voltar da França, lhe disse que era o quarteto de cordas de Gabriel Fauré, de quem o doutor Urbino não tinha ouvido sequer mencionar o nome, apesar de estar sempre muito atento às novidades da Europa. Voltada para ele, como sempre, mas sobretudo quando o via absorto em público, Fermina Daza deixou de comer e colocou sua mão terrestre sobre a dele. Disse: "Não pense mais nisso." O doutor Urbino sorriu da outra margem do êxtase, e então tornou a pensar no que ela temia. Lembrou-se de Jeremiah de Saint-Amour, exposto a essa hora dentro do ataúde com seu falso uniforme de guerreiro e suas condecorações de quinquilharia, debaixo do olhar acusador das crianças dos retratos. Voltou se para o arcebispo para dar a notícia do suicídio, mas já a conhecia. Muito se havia falado a respeito depois da missa solene, e inclusive tendo recebido uma petição do coronel Jerônimo Argote, em nome dos refugiados do Caribe, para que fosse sepultado em terra consagrada. Disse: "A própria petição me pareceu uma falta de respeito." Depois, num tom mais humano, perguntou se se conhecia a causa do suicídio. O doutor Urbino lhe respondeu com uma palavra correta que imaginou haver inventado naquele instante: gerontofobia. O doutor Olivella, debruçado sobre os convidados mais próximos, despreocupou-se deles um momento para intervir no diálogo do seu mestre com o arcebispo. Disse: "É uma pena a gente se defrontar ainda com um suicídio que não seja por amor." O doutor Urbino não se surpreendeu de reconhecer os próprios pensamentos nos do discípulo predileto.

 — E o que é pior — disse: — foi com cianureto de ouro.

      Ao dizê-lo sentiu que a compaixão tinha voltado a prevalecer sobre o amargor da carta, e não o agradeceu à mulher e sim a um milagre da música. Falou então ao arcebispo sobre o santo leigo que havia conhecido em suas longas tardes de xadrez, falou da consagração da sua arte à felicidade das crianças, de sua rara erudição a respeito de todas as coisas do mundo, de seus hábitos espartanos, e ele próprio se espantou diante da limpeza de alma com que conseguira separá-lo de pronto e por completo do seu passado. Falou logo ao prefeito da conveniência de comprar o arquivo de chapas fotográficas para conservar as imagens de uma geração que talvez não voltasse a ser feliz fora de seus retratos, e em cujas mãos estava o futuro da cidade. O arcebispo se escandalizara com o fato de que um católico culto e militante se houvesse atrevido a pensar na santidade de um suicida, mas ficou de acordo com a iniciativa de arquivar os negativos. O prefeito quis saber a quem havia de comprá-los. O doutor Urbino queimou a língua com a brasa do segredo, mas conseguiu suportá-lo sem delatar a herdeira clandestina dos arquivos. Disse: "Eu me encarrego disso." E se sentiu redimido por sua própria lealdade à mulher que repudiara cinco horas antes. Fermina Daza o notou e fez com que ele prometesse em voz baixa que assistiria ao enterro. Claro que sim, disse ele, aliviado, não faltava mais nada.
      Os discursos foram breves e fáceis. A banda dos instrumentos de sopro iniciou uma ária popular, não prevista no programa, e os convidados flanaram pelos terraços cobertos, enquanto os homens da Pousada do Sancho acabavam de drenar o quintal, para o caso de alguém se animar à dança. Os únicos que permaneciam na sala eram os convidados da mesa de honra, comemorando o fato de haver o doutor Urbino tomado de um trago, no brinde final, um meio cálice de conhaque. Ninguém lembrava que jamais o houvesse feito antes, a não ser que se tratasse de um vinho de grande classe para acompanhar um prato muito especial, mas o coração assim lhe havia pedido aquela tarde, e sua fraqueza foi bem recompensada: outra vez, depois de tantos e tantos anos, sentia vontade de cantar. E o teria feito, sem dúvida, a instâncias do jovem violoncelista que se ofereceu para acompanhá-lo, não fosse o fato de um automóvel dos novos ter atravessado o lodaçal do quintal, salpicando os músicos e alvoroçando os patos nos cercados com sua cometa de pato, e parado diante do pórtico da casa. O doutor Marco Aurélio Urbino Daza e sua mulher desceram do carro morrendo de rir, carregando bandejas cobertas com panos de renda. Outras bandejas iguais estavam nos assentos suplementares, e até no chão ao lado do chofer. Era o doce atrasado. Quando cessaram os aplausos e os assobios de uma troça cordial, o doutor Urbino Daza explicou a sério que as clarissas lhe haviam pedido o favor de trazer a sobremesa antes que caísse a tempestade, mas ele se havia afastado da estrada real porque alguém lhe dissera que estava pegando fogo a casa de seus pais. O doutor Juvenal Urbino chegou a se assustar antes que o filho terminasse o relato. Mas sua esposa lhe lembrou a tempo que ele próprio tinha mandado chamar os bombeiros para que apanhassem o louro. Aminta de Olivella, radiante, resolveu servir a sobremesa nos terraços, mesmo depois do café. Mas o doutor Juvenal Urbino e a esposa foram embora sem prová-lo, já que mal havia tempo para que ele fizesse sua sesta sagrada antes do enterro.
      Houve a sesta, mas breve e mal feita, porque de volta a casa viu que os bombeiros tinham causado estragos quase tão graves como os de um incêndio. Procurando assustar o louro tinham depenado uma árvore com as mangueiras de pressão, e um jorro mal dirigido se meteu pelas janelas do quarto de dormir principal e causou danos irreparáveis aos móveis e aos retratos dos avós ignotos pendurados nas paredes. Os vizinhos tinham acudido ao ouvir a sineta do caminhão de bombeiros, acreditando que era mesmo um incêndio, e se não ocorreram transtornos piores foi porque os colégios estavam fechados domingo. Quando descobriram que não alcançariam o louro nem com as escadas emendadas, os bombeiros tinham começado a derrubar os galhos a facão, e só o aparecimento oportuno do doutor Urbino Daza impediu que mutilassem até o tronco. Tinham prometido voltar depois das cinco horas caso fossem autorizados a podar a árvore, e de passagem tinham coberto de barro o terraço interior e a sala, e destroçado um tapete turco que era o preferido de Fermina Daza. Desastres inúteis, além do mais, pois a impressão geral era de que o louro tinha aproveitado a confusão para escapar pelos quintais vizinhos. De fato o doutor Urbino o buscou entre as ramagens mas não obteve resposta em nenhum idioma, nem com pios e canções, e por fim deu-o por perdido, indo dormir quase às três. Antes desfrutou o prazer instantâneo da fragrância de jardim secreto de sua urina purificada pelos suaves aspargos.
     Despertou-o a tristeza. Não a que havia sentido de manhã frente ao cadáver do amigo, e sim a névoa impenetrável que lhe saturava a alma depois da sesta, e que ele interpretava como uma notificação divina de que estava vivendo suas últimas tardes. Até os cinqüenta anos não tinha tido consciência do tamanho, peso e estado de suas vísceras. Pouco a pouco, enquanto jazia com os olhos fechados depois da sesta diária, tinha começado a senti-las lá dentro, uma a uma, sentindo até a forma do seu coração insone, seu fígado misterioso, seu pâncreas hermético, e tinha ido descobrindo que até as pessoas mais velhas já eram mais moças do que ele, e que havia terminado por ser o único sobrevivente dos legendários retratos de grupo da sua geração. Quando atentou para seus primeiros esquecimentos, apelou para um recurso que tinha ouvido de um dos seus professores na Escola de Medicina: "Quem não tem memória faz uma de papel." Mas foi uma ilusão efêmera, pois havia chegado ao extremo de esquecer o que queriam dizer as notas mnemônicas que enfiava nos bolsos, percorria a casa procurando os óculos que tinha no nariz, tornava a dar volta à chave depois de trancar a porta, e perdia o fio da leitura por esquecer as premissas dos argumentos ou filiação dos personagens. Mas o que mais o inquietava era a desconfiança que tinha da própria razão: pouco a pouco, num naufrágio inelutável, sentia que ia perdendo o sentido da justiça.
      Por pura experiência, sem fundamento científico, o doutor Juvenal Urbino sabia que a maioria das doenças mortais tinha um cheiro próprio, e nenhum tão específico quanto o da velhice. Ele o sentia nos cadáveres abertos em canal na mesa de dissecção, reconhecia-o mesmo nos pacientes que melhor disfarçavam a idade, e no suor da sua própria roupa e na respiração inerme de sua mulher adormecida. Não fosse ele o que era em essência, um cristão à moda antiga, talvez tivesse ficado de acordo com Jeremiah de Saint-Amour em que a velhice era um estado indecente que devia ser detido a tempo. O único consolo, mesmo para quem, como ele, tinha sido um homem bom de cama, era a extinção lenta e piedosa no apetite venéreo: a paz sexual. Aos oitenta e um anos tinha bastante lucidez para perceber que estava preso a este mundo por uns fiapos tênues que podiam se romper sem dor com uma simples mudança de posição durante o sono, e se fazia o possível para preservá-los era pelo terror de não encontrar Deus na escuridão da morte.
      Fermina Daza tinha tratado de restabelecer o quarto destruído pelos bombeiros, e um pouco antes das quatro mandou levar ao marido o copo diário de limonada com gelo picado, e lhe lembrou de que devia vestir-se para ir ao enterro. O doutor Urbino tinha esta tarde dois livros ao alcance da mão: O Homem, esse Desconhecido, de Alexis Carrell, e A História de San Michele, de Axel Munthe. Este último ainda não tinha as páginas abertas, e ele pediu a Digna Pardo, a cozinheira, que lhe trouxesse a faca de papel de marfim que tinha esquecido no quarto. Mas quando chegou a faca, já estava lendo O Homem, esse Desconhecido na página marcada com o envelope de uma carta; faltavam muito poucas para terminá-lo. Leu devagar, abrindo caminho pelos meandros de uma ponta de dor de cabeça que atribuiu ao meio cálice de conhaque do brinde final. Nas pausas da leitura tomava um gole de limonada, ou se detinha roendo um pedaço de gelo. Tinha as meias calçadas, a camisa sem o colarinho postiço e os suspensórios elásticos de riscas verdes pendentes aos lados da cintura, e só lhe aborrecia a idéia de ter de mudar de roupa para o enterro. Em breve parou de ler, pôs um livro em cima do outro, e começou a se embalar devagar na cadeira de balanço de vime contemplando no torpor da tarde as bananeiras da Guiné no pântano do quintal, a mangueira depenada, as formigas de asa de depois da chuva, o esplendor efêmero daquela tarde a menos, já partindo para nunca mais. Tinha esquecido que possuíra uma vez um louro de Paramaribo ao qual amava como a um ser humano, quando o ouviu de repente: "Lourinho real." Ouviu-o muito perto, quase ao seu lado, e logo depois o avistou no galho mais baixo da mangueira.

 — Sem-vergonha — gritou.

     O louro respondeu com uma voz idêntica.

— Mais sem-vergonha será você, doutor.

     Continuou falando com ele sem perdê-lo de vista, enquanto se calçava com muito cuidado para não espantá-lo, e meteu os braços nos suspensórios, e desceu ao quintal ainda enlameado sondando o chão com a bengala para não tropeçar nos três degraus. O louro não se mexeu. Estava tão baixo que ele esticou o bastão para que o louro pousasse no castão de prata, como costumava fazer, mas o louro se esquivou. Saltou para um galho contíguo, um pouco mais alto mas de acesso mais fácil, onde se apoiava a escada da casa desde antes da vinda dos bombeiros. O doutor Urbino calculou a altura, e achou que galgando dois dos degraus podia apanhá-lo. Subiu o primeiro, cantando uma canção de cúmplice para distrair a atenção do bicho arisco que repetia as palavras sem a música, mas afastando-se no galho com passos laterais. Subiu o segundo degrau sem dificuldade, agarrado à escada com ambas as mãos, e o louro começou a repetir a canção completa sem mudar de lugar. Subiu o terceiro degrau e o quarto depois, pois havia calculado mal a altura do galho, e então se aferrou à escada com a mão esquerda e tentou pegar o louro com a direita. Digna Pardo, a velha criada que tinha vindo avisar a ele que já estava ficando tarde para o enterro, viu o homem de costas trepado na escada e não acreditaria que fosse quem era se não visse as riscas verdes dos suspensórios de elástico.

 — Santíssimo Sacramento! — gritou. — Vai se matar!

      O doutor Urbino agarrou o louro pelo pescoço com um suspiro de triunfo: ça y est. Mas o largou de pronto, porque a escada resvalou sob seus pés e ele ficou um instante suspenso no ar, e então conseguiu perceber que se matava sem comunhão, sem tempo para se arrepender de nada nem se despedir de ninguém, às quatro e sete minutos da tarde de domingo de Pentecostes.

continua na página 036...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: O grupo da Escola de Belas-Artes
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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