em busca do tempo perdido
volume IIIO Caminho de Guermantes
Primeira Parte
Primeira Parte
A amante, sem esperá-lo, encaminhava-se para o camarote e, voltando-se:
- Será que essas mãozinhas fazem a mesma coisa com as mulheres? - atirou ela ao
dançarino do fundo do teatro, com uma voz artificialmente melodiosa e inocente de "ingênua".
- Tu mesmo pareces uma mulher. Acho que seria possível fazer uma combinação entre ti e
uma de minhas amigas.
- Não é proibido fumar, que eu saiba; quando a gente está enfermo, deve ficar em casa.
disse o jornalista.
O dançarino sorriu misteriosamente à atriz.
- Oh, cala-te! Estás me deixando louca! - gritou ela.
- Vais ver que coisas faremos.
- Em todo caso, senhor, não é nada amável. - disse Saint-Loup ao jornalista, sempre em
tom suave e cortês, com o ar de constatação de alguém que acaba de julgar, retrospectivamente,
um incidente findo.
Nesse momento, vi Saint-Loup erguer o braço verticalmente acima da cabeça, como se
tivesse feito um sinal a alguém que eu não via, ou como um regente de orquestra, e de fato sem
maior transição que, num simples gesto de batuta, numa sinfonia ou num balé, ritmos violentos se
sucederam a um gracioso andante -, depois das palavras polidas que acabava de dizer, abateu a
mão sobre a face do jornalista numa bofetada sonora.
Agora que, às conversações cadenciadas dos diplomatas, às artes risonhas da paz,
sucedera o ímpeto furioso da guerra, golpes chamando golpes, não ficaria muito espantado em
ver os adversários banhando-se no próprio sangue. Mas o que não podia compreender (como as
pessoas que não consideram ser justo que ocorra uma guerra entre dois países quando ainda só
se pensou numa retificação de fronteiras, ou a morte de um doente quando apenas se cuidava de
um tumor no fígado) era como Saint-Loup pudera fazer seguir, às palavras que apreciavam um
matiz de amabilidade, um gesto que não provinha de modo algum delas, que elas não
anunciavam, o gesto daquele braço erguido não só com desprezo pelo direito das gentes, mas
pelo princípio de causalidade, numa geração espontânea de cólera, esse gesto criado ex nihilo.
Felizmente o jornalista que, cambaleando ante a violência do golpe, empalidecera e hesitara por
um momento, não reagiu. Quanto a seus amigos, um desviara logo a cabeça, observando com
atenção, para o lado dos bastidores, alguém que evidentemente não se achava ali; o segundo
fingiu que um cisco lhe entrara no olho e pôs-se a apertar as pálpebras com caretas de dor;
quanto ao terceiro, saíra correndo a gritar:
- Meu Deus, acho que vai subir o pano, vamos perder nossos lugares!
Gostaria de falar com Saint-Loup, mas ele estava de tal modo cheio de sua indignação
contra o dançarino, que esta vinha exatamente assomar-lhe à superfície das pupilas; como uma
armadura interior, esticava-lhe as faces, de forma que sua agitação interior se traduzia por uma
total imobilidade externa; ele não possuía nem mesmo o relaxamento, o "jogo" necessário para
acolher uma palavra minha e a ela responder. Os amigos do jornalista, vendo que tudo estava
terminado, voltaram para junto dele, ainda trêmulos. Mas, envergonhados por havê-lo
abandonado, esforçavam-se absolutamente para que ele julgasse que não tinham notado coisa
alguma. Assim, um dissertava sobre o cisco no olho, outro sobre o alarma falso que tivera ao
pensar que subiam o pano, o terceiro sobre a extraordinária semelhança de uma pessoa que
passara com seu irmão. E até lhe manifestaram um certo mau humor por não ter compartilhado de
suas emoções.
- Como, não reparou? Será que não enxerga bem?
- Quer dizer que vocês todos são uns medrosos resmungou o jornalista esbofeteado.
Inconsequentes com a ficção que haviam adotado e devido à qual deveriam mas nem
pensaram nisso fingir não compreender o que ele queria dizer, proferiram uma frase que é de
tradição em tais circunstâncias:
- Você está se exaltando. Calma! Parece até que tomou o freio nos dentes!
Pela manhã eu havia compreendido, diante das pereiras em flor, em que ilusão se baseava
o amor de Robert por "Rachel-quando-do-Senhor", mas igualmente percebia o que, pelo contrário,
tinham de real os sofrimentos que nasciam desse amor. Aos poucos, a dor que ele estava
sentindo há uma hora, sem parar, se retraiu, abrigou-se nele, e uma zona disponível e branda
apareceu em seus olhos. Deixamos o teatro, Saint-Loup e eu, e primeiro caminhamos um pouco.
Atrasei-me um tanto na esquina da avenida Gabriel, de onde muitas vezes via Gilberte chegar
outrora. Durante alguns segundos tentei recordar essas impressões distantes e ia reunir-me a
Saint-Loup a passo "ginástico", quando vi que um senhor muito mal vestido parecia falar-lhe de
bem perto. Concluí que era um amigo pessoal de Robert; no entanto, eles pareciam se aproximar
ainda mais um do outro; de súbito, como aparece no céu um fenômeno astral, vi corpos ovoides
assumirem, com vertiginosa rapidez, todas as posições que lhes permitiriam compor, diante de
Saint-Loup, uma constelação instável. Lançados como por uma funda, pareceram-me ser pelo
menos em número de sete. Todavia, não eram senão os dois punhos de Saint-Loup, multiplicados
por sua velocidade, mudando de lugar naquele conjunto aparentemente ideal e decorativo. Mas
essa peça de artifício não passava de uma sova que Saint-Loup aplicava e cujo caráter agressivo,
em vez de estético, me foi revelado primeiro pelo aspecto do senhor mediocremente vestido, o
qual pareceu perder ao mesmo tempo toda compostura, um maxilar e muito sangue. Ele deu
explicações mentirosas às pessoas que se aproximavam para interrogá-lo, virou a cabeça e,
vendo que Saint-Loup se afastava definitivamente para se juntar a mim, ficou olhando-o com ar de
rancor e abatimento, mas de modo algum furioso. Ao contrário, Saint-Loup o estava, embora não
tivesse sofrido nenhum golpe, e seus olhos ainda brilhavam de cólera quando me alcançou. O
incidente não se ligava em nada, conforme eu receara, às bofetadas do teatro. Era um passeante
apaixonado que, vendo o belo militar que era Saint-Loup, fizera-lhe certas propostas. Meu amigo
não se recobrava do assombro que lhe causara a audácia daquela "corja" que nem mesmo
esperava as sombras da noite para se arriscar, e falava das propostas que lhe tinham sido feitas
com a mesma indignação com que os jornais falam de um roubo a mão armada, ousado em pleno
dia, num bairro central de Paris. Entretanto, o senhor espancado era desculpável nisto que um
plano inclinado aproxima muito depressa demais o desejo do gozo para que a simples beleza já
surja como um consentimento. Ora, que Saint-Loup fosse belo, isso era indiscutível. Murros como
os que acabara de dar têm uma certa utilidade, para homens da espécie do que o abordara há
pouco, no sentido de fazê-los refletir seriamente, mas durante bem pouco tempo, para que
possam se corrigir e assim escapar aos castigos judiciais. Assim, embora Saint-Loup tivesse dado
a surra sem pensar muito, todas as do mesmo gênero, mesmo que venham em auxílio das leis,
não chegam a homogeneizar os costumes.
Esses incidentes, e sem dúvida aquele em que mais pensava, decerto deram a Robert o
desejo de ficar um pouco sozinho. Depois de um momento, pediu que nos separássemos e que
eu fosse, de minha parte, à casa da Sra. de Villeparisis; ali se encontraria comigo, mas preferia
que não entrássemos juntos, para parecer que acabava de chegar a Paris, em vez de dar a
entender que já tínhamos passado juntos uma parte da tarde.
Como havia suposto, antes de travar conhecimento com a Sra. de Villeparisis em Balbec,
existia uma grande diferença entre o ambiente em que ela vivia e o da Sra. de Guermantes. A Sra.
de Villeparisis era uma dessas mulheres que, nascidas numa casa gloriosa, e entrando pelo
casamento em outra que não o era menos, todavia não desfrutam de uma grande posição social,
e, fora algumas duquesas suas sobrinhas ou cunhadas, e mesmo uma ou duas cabeças
coroadas, velhas relações de família, não têm em seu salão senão um público de terceira ordem,
burguesia, nobreza de província ou deteriorada, cuja presença há muito afastou as pessoas
elegantes e esnobes que não são obrigadas a comparecer por dever de parentesco ou de
intimidade bem antiga. Por certo, ao cabo de alguns instantes não tive nenhuma dificuldade em
compreender por que a Sra. de Villeparisis se achava, em Balbec, tão bem informada, e melhor
que nós próprios, dos menores detalhes da viagem que meu pai fazia então pela Espanha com o
Sr. de Norpois. Mas, apesar disso, não era possível deter-se à ideia de que a ligação, já de vinte
anos, da Sra. de Villeparisis com o embaixador pudesse ser a causa da desclassificação da
marquesa numa sociedade em que as mulheres brilhantes exibiam amantes menos respeitáveis
que este, o qual, aliás, já não era para a marquesa, provavelmente há muito tempo, outra coisa
que não um velho amigo. Tivera a Sra. de Villeparisis outras aventuras antigamente? Sendo então
de um temperamento mais apaixonado que agora, numa velhice apaziguada e piedosa, que no
entanto devia um pouco do seu colorido àqueles anos ardentes e consumidos, não quisera, na
província onde vivera por muito tempo, evitar certos escândalos, desconhecidos das novas
gerações, as quais apenas constatavam os seus efeitos pela composição misturada e defeituosa
de um salão destinado, a não ser isso, a tornar-se um dos mais isentos de toda liga medíocre?
Essa "má língua" que o sobrinho lhe atribuía acaso lhe valera inimigos naqueles tempos? Levara
a a aproveitar-se de certos êxitos junto aos homens para exercer vinganças contra mulheres?
Tudo isso era possível; e não era a maneira requintada, sensível matizando tão delicadamente
não só as expressões como as entonações -, com que a Sra. de Villeparisis falava do pudor e da
bondade que poderia invadir semelhante hipótese; pois os que não só falam bem de certas
virtudes, mas até lhes sentem o encanto e as compreendem às maravilhas, e saberão pintar, em
suas memórias, uma digna imagem dela, provêm muitas vezes mas eles próprios não fazem parte
da geração muda, frustrada e sem arte, que as praticou. Esta se reflete, porém não continua
neles. Em vez do caráter que possuía a geração anterior, encontra-se nela uma sensibilidade e
uma inteligência que não servem à ação. E, houvesse ou não, na vida da Sra. de Villeparisis,
desses escândalos que o brilho de seu nome teria apagado, foi essa inteligência, uma inteligência
quase de escritor de segunda ordem mais que de mulher da sociedade, certamente a causa de
sua decadência mundana.
Decerto eram qualidades muito pouco exaltantes, como a ponderação e a moderação, que
a Sra. de Villeparisis principalmente pregava; mas, para falar da moderação de modo
perfeitamente adequado, a moderação não basta e são necessários certos méritos de escritor que
suponham uma exaltação pouco medida; eu notara em Balbec que o gênio de alguns grandes
artistas permanecia incompreendido pela Sra. de Villeparisis, e que ela apenas sabia troçar deles
com finura, e dar à sua incompreensão uma forma espirituosa e graciosa. Mas esse espírito e
essa graça, no grau a que haviam chegado nela, tornavam-se eles mesmos em outro plano, e
ainda que empregados para depreciar as mais altas obras verdadeiras qualidades artísticas. Ora,
tais qualidades exercem em toda situação mundana uma ação mórbida eletiva, como dizem os
médicos, e tão desagregadora que as mais solidamente assentadas mal podem lhes resistir
alguns anos. O que os artistas chamam inteligência parece pretensão pura à sociedade elegante,
a qual, incapaz de se pôr no único ponto de vista de onde eles julgam tudo, jamais compreendem
a atração particular à qual cedem ao escolher uma expressão ou ao estabelecer uma
aproximação e experimenta junto deles um cansaço e uma irritação, de onde bem depressa nasce
a antipatia. Entretanto, em sua conversação, e o mesmo ocorre com as Memórias que foram
editadas posteriormente, a Sra. de Villeparisis só mostrava uma espécie de graça totalmente
mundana. Tendo abordado grandes coisas sem aprofundá-las, às vezes sem distingui-las,
detivera apenas, dos anos que tinha vivido, e que aliás pintava com muito encanto e exatidão, o
que tinham oferecido de mais frívolo. Mas uma obra, mesmo que se debruce exclusivamente
sobre assuntos que não são intelectuais, ainda assim é uma obra da inteligência, e, para dar num
livro, ou numa conversa que dele pouco difira, a impressão acabada da frivolidade, é preciso uma
dose de seriedade de que seria incapaz uma pessoa inteiramente frívola. Em certas memórias
escritas por uma mulher e consideradas obras-primas, determinada frase, citada como um modelo
de graça leve, sempre me fez supor que, para chegar a essa leveza, a autora deveria ter possuído
outrora uma ciência um tanto pesada, uma cultura rebarbativa, e que, quando jovem,
provavelmente parecia às amigas uma literata pedante. E, entre certas qualidades literárias e o
fracasso mundano, é tão necessária a conexão que, lendo hoje as Memórias da Sra. de
Villeparisis, certo epíteto adequado, certas metáforas que se repetem bastarão ao leitor para que
reconstitua, com seu auxílio, a saudação profunda, mas glacial, que deveria dirigir à velha
marquesa, na escadaria de uma embaixada, uma esnobe como a Sra. Leroi, que talvez lhe
deixasse um cartão ao ir à casa dos Guermantes, mas jamais punha os pés no seu salão, com
receio de ali se desclassificar no meio de todas aquelas esposas de médicos ou de tabeliães.
Literata pedante, talvez a Sra. de Villeparisis o tivesse sido na primeira juventude e, ébria então de
seu saber, talvez não soubera conter, contra pessoas da sociedade menos inteligentes e
instruídas que ela, os ditos mordazes que o atingido não esquece.
Depois, o talento não é um apêndice postiço que se ajunta artificialmente a essas
qualidades diversas que fazem ter êxito na sociedade, a fim de formar, com o todo, o que os
mundanos denominam uma "mulher completa". Ele é o produto vivo de uma certa índole moral
onde geralmente fazem falta muitas qualidades e onde predomina uma sensibilidade, com outras
manifestações que não percebemos num livro e que podem se fazer sentir bem vivamente no
curso da existência, como, por exemplo, certas curiosidades, certas fantasias, o desejo de ir aqui
ou ali por seu próprio prazer e não no intento de aumentar, manter ou simplesmente fazer
funcionar as relações mundanas. Eu vira em Balbec a Sra. de Villeparisis encerrada entre seus
iguais e sem dar uma olhada às pessoas sentadas no saguão do hotel. Mas tivera o
pressentimento de que tal abstenção não era por indiferença, e parece que nem sempre se
instalara nela. Acontecia-lhe relacionar-se com este ou aquele indivíduo que não possuía nenhum
título para ser recebido em sua casa, às vezes porque o julgara bonito, ou apenas porque lhe
haviam dito que era divertido, ou porque lhe parecera diferente das pessoas que conhecia, as
quais, àquela época em que não as apreciava ainda por julgar que jamais a abandonariam,
pertenciam todas ao faubourg Saint-Germain. Tal boêmio, tal pequeno-burguês a quem havia
distinguido, era ela obrigada a fazer convites, cujo valor ele não podia apreciar, com uma
insistência que a desqualificava aos poucos aos olhos dos esnobes habituados a estimar um
salão antes conforme as pessoas que a dona da casa exclui do que pelas pessoas que recebe.
Certamente, se num dado momento da juventude a Sra. de Villeparisis, aborrecida com a
satisfação de pertencer à fina flor da aristocracia, de alguma forma se divertira em escandalizar as
pessoas entre as quais vivia, em desfazer deliberadamente a sua posição social, todavia
começara a dar importância a essa posição depois que a perdera. Quisera mostrar às duquesas
que valia mais que elas, dizendo e fazendo tudo o que elas não ousavam fazer nem dizer. Mas
agora que estas, a não ser as de sua mais próxima intimidade, não mais compareciam à sua
casa, ela sentia-se diminuída e desejava reinar ainda, mas de outra maneira que pelo espírito.
Gostaria de atrair todas aquelas que tivera tanto empenho em afastar. Quantas vidas de
mulheres, vidas aliás mal conhecidas (pois cada uma, de acordo com a idade, conheceu um
mundo diferente, e a discrição dos velhos impede os jovens de formar uma idéia do passado e de
abarcar todo o ciclo), foram assim divididas em períodos contrastantes, o último todo empenhado
em reconquistar aquilo que no segundo fora tão alegremente lançado ao vento. Lançado ao vento
de que modo? Os jovens tanto menos o imaginam por terem ante os olhos uma velha e
respeitável marquesa de Villeparisis, e não fazem ideia de que a grave memorialista de hoje, tão
digna sob sua peruca branca, pudesse ter sido outrora uma alegre consumidora que, nesse
tempo, talvez fizesse as delícias e devorasse a fortuna de homens há muito deitados na sepultura.
Que se tenha empenhado em desfazer, desse modo, com uma indústria natural e perseverante,
uma posição social que recebera do berço insigne, não quer dizer aliás, de maneira nenhuma,
que, mesmo nessa época recuada, a Sra. de Villeparisis não atribuísse grande valor à sua
posição. Da mesma forma, o isolamento e a inação em que vive um neurastênico podem ser
urdidos por ele da manhã à noite, sem por isso lhe parecerem suportáveis; e, ao passo que se
apressa em acrescentar outra malha à rede que o mantém prisioneiro, é possível que sonhe
unicamente com bailes, caçadas e viagens. Trabalhamos a todo instante para dar sua forma à
nossa vida, mas copiando, malgrado nosso, como um desenho, os traços da pessoa que somos e
não daquela que nos agradaria ser. Os cumprimentos desdenhosos da Sra. Leroi podiam exprimir,
de algum modo, a verdadeira natureza da Sra. de Villeparisis, mas não correspondiam
absolutamente aos seus desejos.
Sem dúvida, no mesmo momento em que a Sra. Leroi, segundo uma expressão cara à
Sra. Swann, "cortava" a marquesa, esta podia buscar consolo lembrando-se que um dia a rainha
Maria Amélia lhe dissera: "Gosto de você como a uma filha." Mas essas amabilidades régias,
secretas e ignoradas, só existiam, para a marquesa, cobertas de pó feito o diploma de um antigo
primeiro prêmio do Conservatório. Os únicos reais lucros mundanos são os que geram vida, os
que podem desaparecer sem que seu beneficiário tenha de procurar retê-los ou divulgá-los,
porque no mesmo dia cem outros lhes sucederam. Lembrando-se dessas palavras da rainha, a
Sra. de Villeparisis, no entanto, as teria de boa vontade trocado pelo perpétuo poder de ser
convidada que a Sra. Leroi possuía, como, num restaurante, um grande artista desconhecido, e
cujo gênio não está escrito nem nos traços da fisionomia tímida, nem no corte antiquado do
casaco puído, bem que desejaria ser o jovem corretor do último degrau da sociedade, mas que
almoça numa mesa vizinha com duas atrizes, e para quem, numa corrida obsequiosa e
interminável, se apressam patrão, mordomo, garçons, moços de recados e até ajudantes de
cozinheiro, que saem em desfile para cumprimentá-lo como nas féeries, enquanto avança o
despenseiro, tão empoeirado como suas garrafas, ofuscado e de pernas tortas feito se, vindo da
adega, tivesse torcido o pé antes de subir à claridade.
No entanto, é preciso dizer que, no salão da Sra. de Villeparisis, a ausência da Sra. Leroi,
se deixava desolada a dona da casa, passava despercebida aos olhos de um grande número de
convidados. Ignoravam totalmente a situação particular da Sra. Leroi, conhecida apenas do
mundo elegante, e não duvidavam que as recepções da Sra. de Villeparisis fossem, como hoje
estão convencidos disso os leitores de suas Memórias, as mais brilhantes de Paris.
Nessa primeira visita que, deixando Saint-Loup, fui fazer à Sra. de Villeparisis, segundo o
conselho que o Sr. de Norpois havia dado a meu pai, encontrei-a em seu salão revestido de seda
amarela, sobre a qual se desta cavam os canapés e as admiráveis poltronas de tapeçaria de
Beauvais em uma cor rósea, quase violácea, de framboesas maduras. Ao lado dos retratos dos
Guermantes, dos Villeparisis, viam-se ofertados pelo próprio modelo os da rainha Maria Amélia,
da rainha dos belgas, do príncipe de Joinville e da imperatriz da Áustria. A Sra. de Villeparisis,
com uma touca de rendas pretas do tempo antigo (que ela conservava com o mesmo instinto
precavido de cor local ou histórica de um hoteleiro bretão que, por mais parisiense que tenha se
tornado a sua freguesia, julga mais hábil que suas criadas conservem as toucas e as mangas
largas), estava sentada a uma pequena escrivaninha, onde, à sua frente, ao lado de seus pincéis,
de sua palheta e de uma principiada aquarela de flores, havia, em copos, em pires, em taças,
rosas espumosas, zínias, cabelos-de-vênus, que, devido à afluência das visitas naquele momento,
ela deixara de pintar e que davam a impressão de atrair fregueses para o balcão de uma florista,
em alguma estampa do século XVIII. Naquele salão, ligeiramente aquecido de propósito porque a
marquesa se resfriara ao voltar do castelo, havia, dentre as pessoas presentes quando cheguei,
um arquivista com quem a Sra. de Villeparisis havia classificado, pela manhã, as cartas
autografadas de personalidades históricas a ela endereçadas e que estavam destinadas a figurar
em fac símiles como peças justificativas nas Memórias que ela estava redigindo, e um historiador
solene e intimidado que, tendo sabido que ela possuía por herança um retrato da duquesa de
Montmorency, viera lhe pedir licença para reproduzi-lo em uma prancha de sua obra sobre a
Fronda, visitantes a que se veio juntar meu antigo colega Bloch, agora jovem autor dramático,
com quem a marquesa contava para conseguir-lhe de graça os artistas que tocariam em suas
próximas reuniões matinais. É verdade que o caleidoscópio social estava prestes a mudar e que o
caso Dreyfus ia precipitar os judeus para o último degrau da escala social. Mas, por um lado, por
mais que rugisse o ciclone dreyfusista, não é no começo de uma tempestade que as ondas
atingem sua maior violência. E, além disso, a Sra. de Villeparisis, deixando uma parte inteira de
sua família esbravejar contra os judeus, permanecera até então inteiramente alheia ao Caso
Dreyfus e não se preocupava com ele. Por fim, um rapaz como Bloch, que ninguém conhecia,
podia passar despercebido, enquanto os grandes judeus representativos de seu partido já
estavam ameaçados. Bloch ostentava agora o queixo pontuado por uma barba de "bode", usava
óculos, uma longa sobrecasaca e uma luva, feito um papiro, na mão. Os romenos, os egípcios e
os turcos podem detestar os judeus. Mas, num salão francês, as diferenças entre esses povos
não são perceptíveis, e um israelita, fazendo sua entrada como se saísse do fundo do deserto, o
corpo inclinado como uma hiena, a nuca baixada obliquamente e se espalhando em grandes
salões, satisfaz inteiramente um certo gosto de orientalismo. Para isto, unicamente, é preciso que
o judeu não pertença à "sociedade", sem o que ele toma facilmente o aspecto de um lorde, e suas
maneiras ficam de tal forma afrancesadas que, nele, o nariz rebelde, que aumenta, como as
capuchinhas, nas direções mais imprevistas, antes faz pensar no nariz de Mascarilho que no de
Salomão. Porém Bloch, não tendo sido "maleabilizado" pela ginástica do faubourg, nem
enobrecido por um cruzamento com a Inglaterra ou a Espanha, permanecia, para um amador de
exotismo, tão estranho e saboroso de se olhar, apesar da sua roupa européia, como um judeu de
Decamps. Admirável força da raça que, do fundo dos séculos, impele até a moderna Paris, nos
corredores de nossos teatros, por trás dos guichês de nossas repartições, num enterro, na rua,
uma falange intacta, que, estilizando o penteado moderno, absorvendo, fazendo esquecer e
disciplinando a sobrecasaca, em suma continua sendo idêntica à dos escribas assírios que,
pintados em trajes de cerimônia na frisa de um monumento de Susa, defendem as portas do
palácio de Dario. (Uma hora mais tarde, Bloch ia imaginar que era por má vontade anti-semita que
o Sr. de Charlus se informava se ele tinha prenome judeu, quando era simplesmente por
curiosidade estética e amor à cor local.) Mas, além disso, falar da permanência de raças dá
inexatamente a ideia de que somos herdeiros dos judeus, dos gregos, dos persas, de todos esses
povos aos quais será melhor deixar sua variedade. Pelas pinturas antigas, conhecemos o rosto
dos antigos gregos, vimos assírios no frontão de um palácio de Susa. Ora, quando encontramos
na sociedade alguns orientais que pertencem a este ou àquele grupo racial, parece que estamos
em presença de criaturas que a força do espiritismo teria feito aparecer. Conhecíamos apenas
uma imagem superficial; eis que ela assumiu uma profundidade, estende-se pelas três dimensões,
move-se. A jovem dama grega, filha de um rico banqueiro, e agora na moda, parece uma dessas
figurantes que, num balé a um tempo histórico e estético, simbolizam a arte helênica em carne e
osso; e no teatro ainda, a cenografia banaliza tais imagens; ao contrário, o espetáculo a que nos
faz assistir a entrada de uma turca ou de um judeu no salão, animando as figuras, torna-as mais
estranhas, como se de fato se tratasse de seres evocados por esforço mediúnico. É a alma (ou
antes, o pouco a que ela se reduz, pelo menos até aqui, nesse tipo de materialização), é a alma,
entrevista antes por nós apenas nos museus, a alma dos gregos antigos, dos antigos judeus,
arrancada a uma vida ao mesmo tempo insignificante e transcendental, que parece executar à
nossa frente essa mímica desconcertante. Na jovem dama grega que se esquiva, o que em vão
desejaríamos abraçar é uma figura outrora admirada nos flancos de um vaso. Parecia-me que, se
tivesse tirado clichês de Bloch, à luz do salão. da Sra. de Villeparisis, eles teriam dado aquela
mesma imagem que nos mostram as fotografias espíritas, tão perturbadora por não parecer
emanar da humanidade, tão decepcionante porque mesmo assim se assemelha demais à
humanidade. De um modo geral, mesmo a nulidade das frases ditas pelas pessoas em meio às
quais vivemos nos dá a impressão do sobrenatural no nosso pobre mundo de todos os dias, onde
até um homem de gênio, de quem esperamos, reunidos como ao redor de uma mesa giratória, o
segredo do infinito, pronuncia apenas estas palavras as mesmas que acabavam de sair dos lábios
de Bloch:
- Tenham cuidado com a minha cartola.
- Meu Deus, os ministros, meu caro senhor, - estava dizendo a Sra. de Villeparisis,
dirigindo-se mais particularmente ao meu antigo camarada e retomando o fio de uma conversação
que a minha chegada havia interrompido -, ninguém queria vê-los. Por pequenina que eu fosse,
lembro-me ainda do rei pedindo a meu avô que convidasse o Sr. Decazes para uma festa em que
meu pai devia dançar com a duquesa de Berry. - Dar-me-ia prazer, Florimond dizia o rei. Meu avô,
que era um tanto surdo, tendo entendido Sr. de Castries, achou muito natural o pedido. Quando
compreendeu que se tratava do Sr. Decazes, teve um instante de revolta, mas inclinou-se e
escreveu na mesma noite ao Sr. Decazes, pedindo que lhe fizesse o favor e a honra de
comparecer ao seu baile que se daria na semana seguinte. Pois era-se cortês naqueles tempos,
senhor, e uma dona de casa não saberia se limitar a enviar seu cartão sem acrescentar por
escrito: "uma taça de chá" ou "chá dançante" ou "chá musical". Mas, se se conhecia a polidez,
igualmente não se ignorava a impertinência. O Sr. Decazes aceitou, mas, na véspera do baile,
todos souberam que meu avô, sentindo-se adoentado, havia cancelado a festa. Obedecera ao rei,
mas não tivera o Sr. Decazes no seu baile... Sim, senhor, lembro-me muito bem do Sr. Molé; era
um homem de espírito, e o provou quando recebeu o Sr. de Vigny na Academia, mas era em
extremo solene, e o vejo ainda descendo para jantar em sua casa com a cartola na mão.
- Ah, é bem evocativo de um tempo tão perniciosamente filisteu, pois, sem dúvida, tratava
se de um hábito universal estar de chapéu na mão em casa. - disse Bloch, desejoso de aproveitar
aquela ocasião tão rara para instruir-se, junto a uma testemunha ocular, acerca das
particularidades da vida aristocrática de antigamente, enquanto o arquivista, espécie de secretário
intermitente da marquesa, lançava a esta olhares enternecidos e parecia nos dizer:
"Eis como ela é, ela sabe tudo, conheceu todo mundo, podem interrogá-la sobre o que
quiserem, ela é extraordinária."
- De modo algum. - respondeu a Sra. de Villeparisis, trazendo para mais perto de si o copo
onde estavam mergulhados os cabelos-de-vênus que dali a pouco voltaria a pintar -, era apenas
um hábito do Sr. Molé. Nunca vi meu pai de chapéu em casa, exceto, é claro, quando o rei
aparecia, pois, como o rei em toda parte está em casa, o dono da casa é apenas um visitante em
seu próprio salão.
- Aristóteles nos diz, no capítulo II... - ousou o Sr. Pierre, o historiador da Fronda, mas de
modo tão tímido que ninguém lhe prestou atenção. Atingido desde algumas semanas por insônias
nervosas que resistiam a todos os tratamentos, ele já não se deitava e, quebrado pela fadiga, só
saía quando seus trabalhos exigiam que se deslocasse. Incapaz muitas vezes de recomeçar as
expedições tão simples para os outros, mas que lhe custavam tanto como se, para realizá-las,
tivesse que descer da lua, surpreendia-se com frequência ao ver que a vida de cada um não
estava organizada de modo permanente a dar o máximo de rendimento aos bruscos impulsos da
sua. Às vezes, encontrava fechada uma biblioteca que só tinha ido ver postando-se artificialmente
de pé e numa casaca, como um personagem de Wells. Felizmente, encontrara a Sra. de
Villeparisis em casa e ia ver o retrato.
continua na página 84...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - A amante, sem esperá-lo, encaminhava-se)
Volume 7
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