O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
2..
Havia cinco dias que Ippolít se mudara para a casa de Ptítsin. E isso se dera
naturalmente; sem ter sido preciso romper com Míchkin. Muito pelo contrário,
pois se despediram como bons amigos.
Gavril Ardaliónovitch, que aquela noite se
mostrara tão antagônico, viera vê-lo, porém, trazido decerto por alguma ideia
repentina e que tratou de realizar; Rogójin também aparecera em visita especial.
O próprio príncipe acabou por se convencer que era melhor para o pobre rapaz”
sair de sua casa.
Mas, por ocasião da mudança, Ippolít manifestara bem claro
que se mudava por instâncias de Ptítsin “que, por bondade, lhe arranjara um
canto”, e parece que muito íntencionalmente não declarou uma só vez que ia ser
hóspede de Gánia, embora tivesse sido este quem em casa de Vária insistira para
que o recebessem. Gánia percebeu isso logo depois, e se mostrou magoadíssimo.
E não mentiu quando disse à irmã que o doente melhorara. Efetivamente Ippolít
parecia um pouco melhor do que antes, e a diferença era visível ao primeiro
relance.
Entrou na sala depois de todos os outros, mostrando na cara um sorriso sarcástico
e maligno. Nina Aleksándrovna também entrou muito assustada. Tinha mudado
muito nesses seis meses, estando bem mais magra. Desde que se mudara para a
casa da filha, depois do casamento desta, pusera de lado, pelo menos
aparentemente, qualquer interferência nos negócios dos filhos.
Kólia estava
aborrecido e preocupado porque não conseguia entender muita coisa da
“maluquice” do general. “Maluquice” era como ele dizia, não estando ciente dos
motivos da última barafunda doméstica. Inquietava-o saber que o pai brigava em
toda parte, o dia inteiro, inesperadamente tão mudado que sem dúvida nenhuma
não era mais o mesmo homem; e ainda por cúmulo dera em beber sem
interrupção antes destes três últimos dias. Viera a saber até que o pai brigara não
somente com Liébediev mas mesmo com o príncipe, rompendo de vez. Então
resolvera trazer-lhe meia garrafa de vodca, paga do seu bolso.
- Na minha opinião, mãe, é deixá-lo beber - foi dizendo a Nina Aleksándrovna,
ao subir a escada.
- Há uns dias que não toca em uma só gota. Eu até lhe levava na cadeia.
O general escancarou a porta, empurrando-a, e apareceu no umbral,
trêmulo de tanta indignação.
- Senhor - berrou ele, com voz de trovão, para o genro. - Se decidiu, de fato,
sacrificar, por um fedelho e ateu, um venerável velho, seu pai, isto é, o progenitor
da sua esposa, que serviu ao seu soberano, então fique sabendo que a contar desta
hora nunca mais porei os meus pés portas adentro desta casa. Escolha, senhor,
escolha imediatamente: ou eu, ou este... parafuso! Sim, um parafuso! Saiu-me
sem eu pensar, mas é um parafuso, pois vara a minha alma, sem o menor
respeito... Sim, um parafuso!
- Não quereria o senhor dizer um saca-rolhas?
atiçou Ippolít.
- Não, um saca-rolhas, não! Sou eu que estou diante do senhor, eu,
um general, e não uma garrafa! Eu tenho condecorações, está ouvindo? - méritos
honoríficos... e o senhor não tem nada, ora aí está! Tem de ser ele, ou eu!
Resolva, senhor, imediatamente. Imediatamente! - continuava a berrar,
furiosamente, para Ptítsin.
Nesse momento Kólia aproximou do general uma cadeira, sobre a qual ele se
deixou cair, exausto.
A constrangida resposta de Ptítsin foi esta:
- O senhor faria melhor em se ir deitar
a ver se dormia um pouco...
- Finja que o ameaça... - disse Gánia à irmã, em voz
baixa.
- Ir deitar? - berrou o general. - Não estou bêbado, senhor. E não admito
que me insulte, está ouvindo? Verifico - prosseguiu, levantando-se - que tudo aqui
é contra mim. Tudo e todos! Não aguento mais! Vou embora! Mas o senhor pode
ficar certo que...
Não lhe permitiram acabar. Obrigaram-no a sentar outra vez, pedindo-lhe que se
acalmasse. Gánia, furioso, se retirou para um canto. Nina Aleksándrovna tremia
e chorava.
Foi então que, de dentes arreganhados, muito cinicamente, Ippolít exclamou:
- Mas que foi que eu fiz a este senhor? De que se queixa ele?
- Não se faça de
inocente! - observou-lhe Nina Aleksándrovna, sem lhe dar tempo. - Isso até é vergonhoso para o senhor, em uma situação dessas, meter-se a
atormentar um velho. Isso é desumano!
- Para começar, minha senhora, a que situação se refere? A senhora,
pessoalmente, respeito muito... mas...
- Não passa de um parafuso... Pois não estão vendo? - vociferou o general - Reparem como ele vara o meu coração e a minha alma! Pois querem
saber, esse tratante pretendeu que eu acredite no ateísmo! Deixe-me dizer-lhe,
seu reles gaiato, que, antes do senhor ter nascido, já eu era cumulado de honras!
O senhor não passa de uma minhoca invejosa, cortada em dois pedaços, tossindo
e morrendo de despeito e ruindade! Para que Gavril foi meter o senhor aqui? São
todos contra mim! Até o meu próprio filho.
- Ora! Deixe de armar tragédias!
interveio Gánia. - Faria melhor não nos andar envergonhando a todos, aí pela
cidade.
- O quê? Eu te envergonho, seu desaforado? Eu só te dignifico, embora o
não mereças! Eu não posso te envergonhar.
Danou-se a vociferar e não houve
meios de contê-lo. Isso levou Gavril também a se desmandar:
- Não fale em
honra! - berrou, zangado.
- Que é que você está dizendo? - trovejou o general,
ficando lívido e dando um passo na direção do filho.
-Estou dizendo que o melhor é eu não abrir a boca... - rugiu Gânia, resolvendo
calar-se.
Ficaram assim, de pé, um diante do outro. O mais furioso era o filho.
- Gánia,
olhe o que está fazendo! - e Nina Aleksándrovna avançou para dominar o filho.
Vária interrompeu-os, indignada:
- Que espetáculo, hein?! Mamãe, fique quieta!- disse, segurando-a.
- Se não fosse mamãe, o senhor ia ver!... - explicou Gánia,
de modo trágico.
- Vamos, abra a boca! Fale! Não engula! Fale - rugia o general,
em absoluto delírio. - Ou falas, ou te amaldiçoo!
- Hei de me incomodar muito com a sua maldição! De quem é a culpa, se o
senhor virou possesso estes últimos oito dias? Oito dias! Está vendo como contei
direito? Veja lá, não me faça ir mais longe! Se me dano, conto tudo! Para que foi
o senhor daqui fazer discursos na casa dos Epantchín? Que adianta vir depois
dizer que é um velho de cabelos brancos, um pai de família? Belo pai, não há
dúvida!
- Gánia!? Cala a boca, maluco! - dizia alto Kólia. - Cala a boca, maluco!
Ippolít
resolveu insistir, voltando com aquela voz de motejo:
- Mas insultei como? Em
quê? Quero saber: por que é que sou parafuso? Não o ouviram me chamar de
parafuso? Eu estava bem sossegado e foi ele quem veio, ainda agora, me falar a
respeito de um tal Capitão Ieropiégov. Eu não desejo absolutamente a sua
companhia, general. Tenho me fartado de evitar o senhor. De mais a mais, que
diabo, convenhamos que não me interessa esse
Capitão Ieropiégov. O mais que fiz foi expressar a minha sincera opinião de que
esse Capitão Ieropiégov muito possivelmente nunca existiu. Ele então armou um
escarcéu.
- E certamente que nunca existiu mesmo! - reforçou Gánia.
A expressão
estupefata do general, rodando os olhos em volta, demonstrava o pasmo que as
palavras do filho, ditas com tão extraordinária franqueza, lhe causavam. No
primeiro instante, nem pôde achar palavras. E foi somente quando Ippolít
desandou a rir do aparte de Gánia, gritando:
“Escutou, aqui o seu filho também
éda opinião que nunca existiu tal pessoa chamada Capitão Ieropiégov”, que o
general, completamente desarvorado gaguejou:
- Kapitón Ieropiégov, e não
capitão!... Kapitón... Tenente-Coronel reformado Ieropiégov Kapitón.
- Kapitón? Também nunca existiu nenhum Kapitón! - berrou Gánia, no auge da
exasperação.
- Não houve por quê? - investiu o general, com o sangue a subir-lhe pelo rosto.
Ptítsin e Vária tentaram abrandá-lo:
- Vamos acabar com isso!
Kólia tornou a zangar:
- Cale a boca! Você aí, Gánia, cale a boca!
Mas essa intervenção só conseguiu
dar tempo ao velho, que se refez.
- Baseado em que diz você que ele nunca
existiu? Por que não existiu?
- Ai! Ai! Ai! Não existiu porque não existiu, aí está!
E não podia ter existido! E quer saber de uma coisa?
Largue-me, estou lhe dizendo! Não adianta me ameaçar.
- E é meu filho.., o meu
próprio filho... quem... ó Deus do Céu! Não existir uma pessoa como Ieropiégov!
Ieróchka Ieropiégov!
- Mau! Mau! Agora já é Ieróchka, antes era Kapitóchka!
atiçou Ippolít.
- Kapitóchka, senhor! E não Ieróchka. Kapitón, Kapitón
Aleksiéievitch, quero dizer, Kapitón... tenente-coronel a meio soldo, casado com
Maria... Maria... Petróvna Su... su... su... Um amigo e camarada... Sutugóva... dos
meus tempos de cadete. Por causa dele derramei sangue, protegi-o com meu
corpo... mas ele foi morto! Não ter existido uma pessoa como Kapitóchka
Ieropiégov! E que pessoa! Ah!... - rugiu o general, como um bárbaro, apesar de
saber que aquilo que estava a dizer aos berros não era o que tinha importância
naquele momento.
Em outra ocasião não haveria de ser isso que o danaria.
Talvez até qualquer outra coisa mais insultante, conforme a ocasião, não o
pusesse em
fúria, assim. Mas, desta vez, tal é o mistério do coração humano, acontecera que
uma simples desconsideração, como essa dúvida de ter ou não existido
Ieropiégov, exercera o efeito da última gota que derrama o cálice. O velho
ficou vermelho, levantou os braços ao céu e bradou:
- Basta! Maldição!
Maldição! Nikolái, traz minha maleta! Vou embora! Vou embora!
continua página 429...
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Segunda Parte
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (2a) - Havia cinco dias que Ippolít se mudara
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