sexta-feira, 30 de maio de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (2a) - Havia cinco dias que Ippolít se mudara

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte
2.

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      Havia cinco dias que Ippolít se mudara para a casa de Ptítsin. E isso se dera naturalmente; sem ter sido preciso romper com Míchkin. Muito pelo contrário, pois se despediram como bons amigos.
     Gavril Ardaliónovitch, que aquela noite se mostrara tão antagônico, viera vê-lo, porém, trazido decerto por alguma ideia repentina e que tratou de realizar; Rogójin também aparecera em visita especial. O próprio príncipe acabou por se convencer que era melhor para o pobre rapaz” sair de sua casa. 
     Mas, por ocasião da mudança, Ippolít manifestara bem claro que se mudava por instâncias de Ptítsin “que, por bondade, lhe arranjara um canto”, e parece que muito íntencionalmente não declarou uma só vez que ia ser hóspede de Gánia, embora tivesse sido este quem em casa de Vária insistira para que o recebessem. Gánia percebeu isso logo depois, e se mostrou magoadíssimo. E não mentiu quando disse à irmã que o doente melhorara. Efetivamente Ippolít parecia um pouco melhor do que antes, e a diferença era visível ao primeiro relance.
     Entrou na sala depois de todos os outros, mostrando na cara um sorriso sarcástico e maligno. Nina Aleksándrovna também entrou muito assustada. Tinha mudado muito nesses seis meses, estando bem mais magra. Desde que se mudara para a casa da filha, depois do casamento desta, pusera de lado, pelo menos aparentemente, qualquer interferência nos negócios dos filhos.
     Kólia estava aborrecido e preocupado porque não conseguia entender muita coisa da “maluquice” do general. “Maluquice” era como ele dizia, não estando ciente dos motivos da última barafunda doméstica. Inquietava-o saber que o pai brigava em toda parte, o dia inteiro, inesperadamente tão mudado que sem dúvida nenhuma não era mais o mesmo homem; e ainda por cúmulo dera em beber sem interrupção antes destes três últimos dias. Viera a saber até que o pai brigara não somente com Liébediev mas mesmo com o príncipe, rompendo de vez. Então resolvera trazer-lhe meia garrafa de vodca, paga do seu bolso.

- Na minha opinião, mãe, é deixá-lo beber - foi dizendo a Nina Aleksándrovna, ao subir a escada. 
- Há uns dias que não toca em uma só gota. Eu até lhe levava na cadeia.

      O general escancarou a porta, empurrando-a, e apareceu no umbral, trêmulo de tanta indignação.

- Senhor - berrou ele, com voz de trovão, para o genro. - Se decidiu, de fato, sacrificar, por um fedelho e ateu, um venerável velho, seu pai, isto é, o progenitor da sua esposa, que serviu ao seu soberano, então fique sabendo que a contar desta hora nunca mais porei os meus pés portas adentro desta casa. Escolha, senhor, escolha imediatamente: ou eu, ou este... parafuso! Sim, um parafuso! Saiu-me sem eu pensar, mas é um parafuso, pois vara a minha alma, sem o menor respeito... Sim, um parafuso!
- Não quereria o senhor dizer um saca-rolhas? atiçou Ippolít. 
- Não, um saca-rolhas, não! Sou eu que estou diante do senhor, eu, um general, e não uma garrafa! Eu tenho condecorações, está ouvindo? - méritos honoríficos... e o senhor não tem nada, ora aí está! Tem de ser ele, ou eu! Resolva, senhor, imediatamente. Imediatamente! - continuava a berrar, furiosamente, para Ptítsin. 

     Nesse momento Kólia aproximou do general uma cadeira, sobre a qual ele se deixou cair, exausto. A constrangida resposta de Ptítsin foi esta:

- O senhor faria melhor em se ir deitar a ver se dormia um pouco... 
- Finja que o ameaça... - disse Gánia à irmã, em voz baixa. 
- Ir deitar? - berrou o general. - Não estou bêbado, senhor. E não admito que me insulte, está ouvindo? Verifico - prosseguiu, levantando-se - que tudo aqui é contra mim. Tudo e todos! Não aguento mais! Vou embora! Mas o senhor pode ficar certo que... 

     Não lhe permitiram acabar. Obrigaram-no a sentar outra vez, pedindo-lhe que se acalmasse. Gánia, furioso, se retirou para um canto. Nina Aleksándrovna tremia e chorava. Foi então que, de dentes arreganhados, muito cinicamente, Ippolít exclamou:

- Mas que foi que eu fiz a este senhor? De que se queixa ele? 
- Não se faça de inocente! - observou-lhe Nina Aleksándrovna, sem lhe dar tempo. - Isso até é vergonhoso para o senhor, em uma situação dessas, meter-se a atormentar um velho. Isso é desumano! 
- Para começar, minha senhora, a que situação se refere? A senhora, pessoalmente, respeito muito... mas... 
- Não passa de um parafuso... Pois não estão vendo? - vociferou o general - Reparem como ele vara o meu coração e a minha alma! Pois querem saber, esse tratante pretendeu que eu acredite no ateísmo! Deixe-me dizer-lhe, seu reles gaiato, que, antes do senhor ter nascido, já eu era cumulado de honras! O senhor não passa de uma minhoca invejosa, cortada em dois pedaços, tossindo e morrendo de despeito e ruindade! Para que Gavril foi meter o senhor aqui? São todos contra mim! Até o meu próprio filho.
- Ora! Deixe de armar tragédias! interveio Gánia. - Faria melhor não nos andar envergonhando a todos, aí pela cidade.
- O quê? Eu te envergonho, seu desaforado? Eu só te dignifico, embora o não mereças! Eu não posso te envergonhar.

     Danou-se a vociferar e não houve meios de contê-lo. Isso levou Gavril também a se desmandar:

- Não fale em honra! - berrou, zangado. 
- Que é que você está dizendo? - trovejou o general, ficando lívido e dando um passo na direção do filho.  
-Estou dizendo que o melhor é eu não abrir a boca... - rugiu Gânia, resolvendo calar-se.

     Ficaram assim, de pé, um diante do outro. O mais furioso era o filho. 

- Gánia, olhe o que está fazendo! - e Nina Aleksándrovna avançou para dominar o filho. Vária interrompeu-os, indignada: 

- Que espetáculo, hein?! Mamãe, fique quieta!- disse, segurando-a. 
- Se não fosse mamãe, o senhor ia ver!... - explicou Gánia, de modo trágico. 
- Vamos, abra a boca! Fale! Não engula! Fale - rugia o general, em absoluto delírio. - Ou falas, ou te amaldiçoo! 
- Hei de me incomodar muito com a sua maldição! De quem é a culpa, se o senhor virou possesso estes últimos oito dias? Oito dias! Está vendo como contei direito? Veja lá, não me faça ir mais longe! Se me dano, conto tudo! Para que foi o senhor daqui fazer discursos na casa dos Epantchín? Que adianta vir depois dizer que é um velho de cabelos brancos, um pai de família? Belo pai, não há dúvida! 
- Gánia!? Cala a boca, maluco! - dizia alto Kólia. - Cala a boca, maluco! 

     Ippolít resolveu insistir, voltando com aquela voz de motejo: 

- Mas insultei como? Em quê? Quero saber: por que é que sou parafuso? Não o ouviram me chamar de parafuso? Eu estava bem sossegado e foi ele quem veio, ainda agora, me falar a respeito de um tal Capitão Ieropiégov. Eu não desejo absolutamente a sua companhia, general. Tenho me fartado de evitar o senhor. De mais a mais, que diabo, convenhamos que não me interessa esse Capitão Ieropiégov. O mais que fiz foi expressar a minha sincera opinião de que esse Capitão Ieropiégov muito possivelmente nunca existiu. Ele então armou um escarcéu.
- E certamente que nunca existiu mesmo! - reforçou Gánia. 

     A expressão estupefata do general, rodando os olhos em volta, demonstrava o pasmo que as palavras do filho, ditas com tão extraordinária franqueza, lhe causavam. No primeiro instante, nem pôde achar palavras. E foi somente quando Ippolít desandou a rir do aparte de Gánia, gritando:

“Escutou, aqui o seu filho também éda opinião que nunca existiu tal pessoa chamada Capitão Ieropiégov”, que o general, completamente desarvorado gaguejou:

- Kapitón Ieropiégov, e não capitão!... Kapitón... Tenente-Coronel reformado Ieropiégov Kapitón. 
- Kapitón? Também nunca existiu nenhum Kapitón! - berrou Gánia, no auge da exasperação. 
- Não houve por quê? - investiu o general, com o sangue a subir-lhe pelo rosto.

     Ptítsin e Vária tentaram abrandá-lo:

- Vamos acabar com isso! 

     Kólia tornou a zangar: 

- Cale a boca! Você aí, Gánia, cale a boca! 

     Mas essa intervenção só conseguiu dar tempo ao velho, que se refez.

- Baseado em que diz você que ele nunca existiu? Por que não existiu?
- Ai! Ai! Ai! Não existiu porque não existiu, aí está! E não podia ter existido! E quer saber de uma coisa? Largue-me, estou lhe dizendo! Não adianta me ameaçar. 
- E é meu filho.., o meu próprio filho... quem... ó Deus do Céu! Não existir uma pessoa como Ieropiégov! Ieróchka Ieropiégov!
- Mau! Mau! Agora já é Ieróchka, antes era Kapitóchka! atiçou Ippolít. 
- Kapitóchka, senhor! E não Ieróchka. Kapitón, Kapitón Aleksiéievitch, quero dizer, Kapitón... tenente-coronel a meio soldo, casado com Maria... Maria... Petróvna Su... su... su... Um amigo e camarada... Sutugóva... dos meus tempos de cadete. Por causa dele derramei sangue, protegi-o com meu corpo... mas ele foi morto! Não ter existido uma pessoa como Kapitóchka Ieropiégov! E que pessoa! Ah!... - rugiu o general, como um bárbaro, apesar de saber que aquilo que estava a dizer aos berros não era o que tinha importância naquele momento. 

     Em outra ocasião não haveria de ser isso que o danaria. Talvez até qualquer outra coisa mais insultante, conforme a ocasião, não o pusesse em fúria, assim. Mas, desta vez, tal é o mistério do coração humano, acontecera que uma simples desconsideração, como essa dúvida de ter ou não existido Ieropiégov, exercera o efeito da última gota que derrama o cálice. O velho ficou vermelho, levantou os braços ao céu e bradou: 

- Basta! Maldição! Maldição! Nikolái, traz minha maleta! Vou embora! Vou embora!

Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (2a) - Havia cinco dias que Ippolít se mudara
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