sexta-feira, 30 de maio de 2025

Massa e Poder - O Mar

Elias Canetti


O MAR


      O mar é múltiplo, está em movimento e possui sua densa coesão. Sua multiplicidade são suas ondas: elas a compõem. São incontáveis; quem se encontra no mar está rodeado de ondas por todos os lados. A uniformidade de seu movimento não implica a inexistência de diferenças de tamanho entre elas. As ondas jamais se encontram em repouso absoluto. O vento, vindo de fora, determina-lhes a direção: de acordo com a ordem que ele lhes dá, elas rebentam num ou noutro lugar. A densa coesão das ondas expressa algo que também os homens, quando reunidos numa massa, sentem muito bem: uma condescendência do indivíduo para com os demais que é como se ele fosse os outros, como se não possuísse mais fronteiras a delimitá-lo; uma dependência, pois, de que não há escapatória e, em decorrência disso, uma sensação de força, um ímpeto que todos os outros juntos lhe conferem. A natureza singular dessa coesão entre os homens é desconhecida. Tampouco o mar a explica, mas ele a expressa.
     Além das ondas, no entanto, há ainda um outro elemento múltiplo que é parte do mar: as gotas. Estas, porém, estão isoladas, são apenas gotas; quando não vinculadas entre si, sua pequenez e seu isolamento possuem algo de impotente. São quase nada e despertam um sentimento de compaixão no observador. Mergulhe-se a mão na água, erga-se a mão novamente e contemplem-se as gotas escorrendo isoladas e débeis por ela. A compaixão que se sente é como se elas fossem pessoas desesperadamente sós. As gotas só contam quando não se pode mais contá-las, quando se dissolvem novamente no todo.
      O mar tem uma voz que é bastante mutável e que se ouve sempre. Trata-se de uma voz que soa como milhares de vozes. A ela atribuem-se muitas características: paciência, dor, ira. Mas o que essa voz possui de mais impressionante é sua tenacidade. O mar nunca dorme. Pode ser ouvido continuamente, de dia, de noite, anos a o, décadas; sabe-se que séculos atrás já o ouviam. Em seu ímpeto como em seu protesto, ele lembra a única criatura que com ele compartilha essas qualidades nas mesmas proporções: a massa. O mar possui, contudo, a constância que falta a esta última. Ele não se esvai e desaparece de tempos em tempos: está sempre ali. Nele, o maior e sempre vão desejo da massa — o de permanecer — apresenta-se já realizado.
     O mar abrange tudo e nunca se pode preenchê-lo inteiramente. Todos os rios, torrentes, nuvens, todas as águas da terra poderiam derramar-se sobre o mar e, ainda assim, ele não aumentaria de fato; não teria mudado; ter-se-ia sempre a sensação de que se trata do mesmo mar. É, pois, tão grande, que pode servir de modelo à massa, cujo desejo é crescer sempre mais. Esta poderia tornar-se tão imensa quanto o mar, e é para consegui-lo que ela atrai mais e mais pessoas. Na palavra oceano, o mar encontrou algo como sua dignidade mais solene. O oceano é universal; é ele que chega a todas as partes, que banha todos os países; é nele que, segundo uma antiga concepção, a terra nada. Não fosse o mar impreenchível, a massa não teria um modelo para sua insaciabilidade. Ela poderia não adquirir tanta consciência de seu impulso mais profundo e obscuro: o de atrair mais e mais pessoas. Estendendo-se, porém, naturalmente diante de seus olhos, o oceano confere-lhe um direito mítico a seu inexpugnável ímpeto de universalidade.
     Embora seja mutável em seus afetos — pode acalmar e ameaçar, pode irromper em tempestades —, o mar está sempre ali. Sabe-se onde ele está; sua localização tem algo de aberto, de não oculto. Ele não surge de repente onde antes nada havia. Não possui o caráter misterioso e súbito do fogo; este — um animal impetuoso — assalta as pessoas provindo do nada, de modo que é de se esperar que surja em qualquer parte. Já o mar, somente se pode esperar encontrá-lo onde se sabe com certeza, que ele está.
      Nem por isso se pode dizer, entretanto, que ele não possua segredos. Seu segredo não reside em sua subtaneidade, mas no seu conteúdo. As massas que nele vivem e o preenchem são tão próprias do mar quanto sua evidente constância. Assim, sua magnificência é ainda intensificada pelo pensamento no seu conteúdo — em todas as plantas e animais que ele oculta em enormes quantidades.
     O mar não possui fronteiras internas e não se subdivide em povos e regiões. Ele tem uma única língua, idêntica em toda parte. Não há ser humano, por assim dizer, que se possa excluir dele. É, também, demasiado abrangente para equivaler exatamente a qualquer uma das massas que conhecemos. O mar é, porém, o modelo de uma humanidade saciada em si mesma, na qual desemboca toda a vida e que tudo contém.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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