baitasar
chego para mais um outro primeiro dia, já foram trinta e nove primeiros dias, esse será o quadragésimo – no primeiro dos primeiros, o meu começo, cheguei depois do início, poucos dias depois, de modo que o meu primeiro dia não foi junto do primeiro dia do demais, não conta como outro nosso primeiro dia, foi apenas um primeiro dia para mim, cheguei para preencher uma vacuidade no quadro de professores e as combinações já estavam feitas
a cada outro novo primeiro dia, fui percebendo que nenhum preparamento controla esse roteiro com exatidão, precisamos estar preparados para os inevitáveis imprevistos, não é confortável, tantos fantasmas, muitas escolas, incontáveis lembranças – quase todas divertidas, até mesmo porque ficaram distanciadas e afastadas pelo tempo transitório, assim nos parecem mais distraídas e distantes, menos detalhadas, mais distorcidas e idealizadas, minudências e significados perdidos na caducidade e esquecimentos
desse modo, conversamos com a magia das descobertas, ao mesmo tempo que continuamos convivendo com a melancolia invisível do tempo que passou
desse modo, conversamos com a magia das descobertas, ao mesmo tempo que continuamos convivendo com a melancolia invisível do tempo que passou
olho para o sax, descansando no suporte de chão, refugiado das minhas tentativas amadoras, não é o momento para cuidados e exercícios musicais, estudar música e aprender a tocar saxofone me levou de volta a infância, revitalizando lembranças de quando começava a aprender a ler, educando reflexos e vislumbres na memória motora dos dedos, essa conexão me mostra como o aprendizado pode ser uma viagem enriquecedora, despertando emoções, descobrindo habilidades, inspirando a seguir em busca de novos conhecimentos, desadormecendo minhas memórias e emoções profundas, estimulando minhas habilidades cognitivas de maneira lúdica e prazerosa
saio
assobiando cantado entro em meu primeiro e legendário carro
estou dirigindo sem pressa, basta atravessar o pequeno rio Gravataí que separa as duas cidades, nada demais ou heroico, quase chegando, mas atrasado
cheguei
paro o fusca branco e barulhento, motor 1300, sigo tentando me desfazer dele, não é fácil, fusca não tem chip, o navegador é uma bússola velha que indica o norte e deixa o restante comigo, não tem alarme nem antifurto, também não tem seguro
desço, fecho a porta, e corro
passo escorrendo pelo portão, preciso chegar na sala onde professores e professoras se encontram rapidamente para conversas e xícaras de café – estou na expectativa que o rateio da vaquinha do café diminua este ano, parece que exportar café vai ficar mais caro
continuo escalado como professor de educação física do primeiro, segundo e terceiro ano, criançada de seis, sete, oito e nove anos, diversão garantida
no pátio, o burburinho alegre e agitado do primeiro dia, passo por pais e mães, alguns reconheço, já foram meus alunos e alunas de outros primeiros dias – agora, trazem seu filho ou filha para a escola, é o tempo nos avisando da sua passagem infindável, somos viandantes efêmeros com um bilhete nas mãos só de ida, a boa notícia é que podemos escolher se faremos esta viagem à-toa ou um passeio amoroso, solidário e com justeza, apesar dos desvios, é preciso aprender desbeiçar
entro em um corredor, uma passagem com as paredes nuas esperando cartazes, pinturas desenhos e avisos, está para se iniciar mais um ano letivo
esqueci meus horários de atendimento da manhã, ficaram no fusca branco sem alarme, sem antifurto e sem seguro, não tenho tempo de voltar e pegar, o serviço de supervisão pedagógica irá me salvar
continuo com meus passos apressados pela passagem com paredes neutras, ainda sem gosto ou apetite, por enquanto conformadas em serem apenas muralhas sem parapeito, tapumes emparelhados – quase chegando na sala dos encontros e reencontros
estou dirigindo sem pressa, basta atravessar o pequeno rio Gravataí que separa as duas cidades, nada demais ou heroico, quase chegando, mas atrasado
cheguei
paro o fusca branco e barulhento, motor 1300, sigo tentando me desfazer dele, não é fácil, fusca não tem chip, o navegador é uma bússola velha que indica o norte e deixa o restante comigo, não tem alarme nem antifurto, também não tem seguro
desço, fecho a porta, e corro
passo escorrendo pelo portão, preciso chegar na sala onde professores e professoras se encontram rapidamente para conversas e xícaras de café – estou na expectativa que o rateio da vaquinha do café diminua este ano, parece que exportar café vai ficar mais caro
continuo escalado como professor de educação física do primeiro, segundo e terceiro ano, criançada de seis, sete, oito e nove anos, diversão garantida
no pátio, o burburinho alegre e agitado do primeiro dia, passo por pais e mães, alguns reconheço, já foram meus alunos e alunas de outros primeiros dias – agora, trazem seu filho ou filha para a escola, é o tempo nos avisando da sua passagem infindável, somos viandantes efêmeros com um bilhete nas mãos só de ida, a boa notícia é que podemos escolher se faremos esta viagem à-toa ou um passeio amoroso, solidário e com justeza, apesar dos desvios, é preciso aprender desbeiçar
entro em um corredor, uma passagem com as paredes nuas esperando cartazes, pinturas desenhos e avisos, está para se iniciar mais um ano letivo
esqueci meus horários de atendimento da manhã, ficaram no fusca branco sem alarme, sem antifurto e sem seguro, não tenho tempo de voltar e pegar, o serviço de supervisão pedagógica irá me salvar
continuo com meus passos apressados pela passagem com paredes neutras, ainda sem gosto ou apetite, por enquanto conformadas em serem apenas muralhas sem parapeito, tapumes emparelhados – quase chegando na sala dos encontros e reencontros
escuto meu nome
Marko!
paro e me volto, Marko, a mesma voz me chamando, a professora Rachel, diretora da escola, venha até aqui, por favor.
ela foi eleita pelo voto da comunidade escolar – alunas e alunos, mães e pais, funcionárias e funcionários, professoras e professores – e está iniciando seu segundo ano num mandato de três anos, caso queira a possibilidade de uma reeleição, em outra disputa eleitoral, junto à mesma comunidade escolar, deverá se submeter aos debates sobre a escola que queremos e a escola que temos com outras possíveis desafiantes, não existe pensamento hegemônico na democracia, salvo exceção na escola militar onde o pensamento hierárquico domina as diferenças, alguém manda e todos obedecem
o processo democrático na escola existe para formar eleitores e eleitoras, provoca debates, estimula lideranças, encoraja reflexões sobre o cotidiano escolar, busca soluções para qualificar a Escola Pública, reivindicando junto às autoridades públicas condições físicas e pedagógicas para uma escola crítica com competência, habilidade, talento e amorosidade, uma escola que aprende e ensina
a Rachel já afirmou que não querer essa reeleição, Aceitei esses três anos como parte de um aprendizado pessoal importante, contribuindo nas discussões e no cotidiano, mas pretendo voltar à sala de aula, lugar em que me sinto confortável e desafiada ao mesmo tempo – essa decisão não parece ser negociável
Bom dia, Rachel, respondo desconfiado, sem saber por que está me chamando, talvez sendo comunicado que estou atrasado, rapidamente imagino o que meu advogado de defesa diria, estou prestes a culpar o trânsito insuportável e demorado na ponte, as águas poluídas do rio, os buracos nas vias, até mesmo o bom e vitorioso futebol que parece não estar muito a favor das minhas cores prediletas, perdemos novamente, isso sempre provoca algum desconforto passageiro, é verdade
ela respinga um muxoxo ininteligível, continuo sem saber a razão desse seu chamado suspeitoso, entra em sua sala e me convida para entrar, Entre, Marko... por favor.
Com licença, entro cismado com essa surpresa hermética
fecha a porta – ainda não estou preocupado, apenas arisco
atrás da porta um quadrinho, desses que encontramos nas Casas Maria, com duas pequenas frases, “Fazer o que você gosta é liberdade. Gostar do que você faz é felicidade.” – estou sorrindo, ela me pergunta sobre o que me fez sorrir, aponto o quadrinho acanhado, revelo-me do púlpito com a voz da satisfação mal escondida, Quarenta e um anos fazendo o que gosto tornou-se um hábito de resistência, lembranças, recomendações, saudades e cabelos brancos – algumas dores, outros tantos suspiros, mas de modo geral estou animado –, fico satisfeito com esse resumo dos meus quarenta e um anos, não responde, senta-se sem afobação, não é uma pessoa barulhenta, olha-me sem desvios, a voz discreta e suave, Isso faz toda diferença para você, e também, muito provavelmente, para seus alunos e alunas, paro de sorrir, não quero aparentar arrogância, muito menos, docilidade, Assim espero, respondo com amorosidade
Sente-se, querido.
obedeço em silêncio, ainda tentando adivinhar as causas e os efeitos deste chamado secreto, e, pela primeira vez, nesta manhã, fico em alvoroço, revisei uma conjectura que inquieta o imaginário dos meus pensamentos, não consigo evitar de considerar que meu pedido de aposentadoria foi devidamente avaliado e aceito – preciso me controlar, Calma, Marko... calma, não consigo evitar –, começo a sentir o gosto do discurso da despedida, tantos anos lutando – não se enganem, é uma luta permanente e infinda – pela escola pública com qualidade e amorosa, atenta aos saberes com o sentido humano da alegria, convidando e acolhendo com competência enquanto o tempo passa desafiador, gostoso, fecundo, divertido e amoroso, esse tempo pode ser atrasado de trinta para trinta e cinco, ou quarenta anos, mas sempre chega aos vivos e parece que chegou para mim, minhas mãos estão úmidas, o coração saindo do peito, não fui um dos meninos pelados pulando da barranca no rio, sou o filho do menino pelado e da menina que se doou para os filhos, sou o menino do primário, admissão ao ginásio, depois científico para chegar ao vestibular e aprovar, não foi pouca coisa
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