Victor Hugo - Os Miseráveis
Segunda Parte - Cosette
Livro Sexto — O Petit Picpus
IX - Um século sob um hábito
Já que tão detidamente viemos a ocupar-nos do que noutro tempo era o convento do
Petit-Picpus, ousando abrir uma janela por onde devassássemos o interior daquele
discreto asilo, permita-nos ainda o leitor uma pequena digressão estranha à essência
deste livro, mas característica e útil, por isso que dá lugar a sabermos que o convento
também tem suas figuras originais.
Havia no pequeno Convento, uma centenária que para ali tinha vindo da abadia de
Fontevrault. Antes da revolução pertencera mesmo à boa sociedade. Falava muito do
senhor de Miromesnil, guarda dos selos no reinado de Luís XVI e de uma presidenta
Duplat, a quem de muito perto conhecera. O seu gosto, a sua vaidade, era vir à baila com
estes dois nomes, a propósito de tudo em que se falasse. Além disto, contava maravilhas
da abadia de Fontevrault, pintando-a como uma cidade, e dizendo que no mosteiro
havia ruas.
A sua linguagem era um geringonça picarda, que fazia rir as recolhidas. Todos os anos
renovava solenemente os seus votos, e na ocasião em que prestava juramento, dizia
para o sacerdote: «Monsenhor S. Francisco arrendou-o a Monsenhor S. Julião,
Monsenhor S. Julião arrendou-o a Monsenhor S. Eusébio, Monsenhor S. Eusébio
arrendou-o a Monsenhor S. Procópio, etc., etc.; do mesmo modo eu lhe arrendo, meu
padre».
E as recolhidas riam não à socapa, mas por baixo do véu, graciosos risinhos abafados
que faziam encrespar o sobrolho às madres vocais.
De uma vez, estando a centenária a contar histórias, disse para as que a ouviam: «No
meu tempo os bernardas não ficavam a dever nada aos mosqueteiros». Era um século
que falava, mas era o século XVIII. Descrevia o costume dos quatro vinhos usados em
Champagne e Borgonha antes da revolução. Quando por alguma cidade de Borgonha ou
de Champagne passava qualquer grande personagem, como um marechal de França, um
príncipe, um duque, um par, vinha esperá-lo a câmara e após um estirado discurso
apresentava-lhe quatro vasos de prata contendo quatro vinhos diferentes. Na primeira
taça lia-se esta inscrição: vinho de macaco; na segunda, vinho de leão; na terceira, vinho
de carneiro; na quarta, vinho de porco». Estas quatro legendas exprimiam os quatro
graus da embriaguez: o da embriaguez que alegra, o da embriaguez que irrita, o da
embriaguez que entontece, o da embriaguez que embrutece.
Tinha ela num armário, fechado à chave, um objeto misterioso que muito esmava, e
que não era proibido pela regra de Fontevrault. Não queria que ninguém o visse.
Fechava-se na cela, o que a sua regra lhe permitia, e escondia-se todas as vezes que o
queria contemplar. Se sentia vir gente pelo corredor tornava a fechar o armário o mais
precipitadamente que podia fazê-lo com as suas trêmulas mãos. Mal lhe falavam nisto
calava-se, ela que tão amiga de falar era. As mais curiosas viram malogrados os seus
esforços em presença do seu silêncio e as mais tenazes em presença da sua obstinação.
Era este também um objeto de comentários para todas as ociosas do convento ou para
aquelas que andavam aborrecidas. Que seria aquela tão preciosa e secreta coisa que era
o tesouro da centenária? Algum livro de santidade, decerto?
Algum rosário único? Alguma relíquia eficaz? Perdiam-se em conjecturas. Apenas a
pobre velha morreu, correram ao armário mais depressa talvez do que convinha e
abriram-no. Acharam o misterioso objeto embrulhado numa toalha, como uma patena
benzida. Era um prato de Faenza representando uns amores a fugir, perseguidos por uns
praticantes de boticário armados de enormes seringas. Abundavam as figuras em caretas
e posturas cômicas. A um dos lindos amorinhos já um dos praticantes tinha espetado a
atroz seringa. Ele debatia-se, agitava as asinhas, tentando ainda voar, mas o bufão ria
com um riso satânico. Agora a moralidade do quadro: o amor vencido pela cólica. Este
prato, aliás um tanto curioso e que teve talvez a honra de sugerir uma ideia a Molière,
existia ainda em Setembro de 1848; estava à venda num adelo do boulevard
Beaumarchais.
Não queria esta boa velha receber nenhuma visita de fora, porque, dizia ela, era
muito triste o locutório.
continua na página 385...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Sexto - IX - Um século sob um hábito
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
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