sábado, 31 de maio de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Sexto - O Petit Picpus / IX - Um século sob um hábito

 Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Sexto — O Petit Picpus

IX - Um século sob um hábito
     
      Já que tão detidamente viemos a ocupar-nos do que noutro tempo era o convento do Petit-Picpus, ousando abrir uma janela por onde devassássemos o interior daquele discreto asilo, permita-nos ainda o leitor uma pequena digressão estranha à essência deste livro, mas característica e útil, por isso que dá lugar a sabermos que o convento também tem suas figuras originais.
      Havia no pequeno Convento, uma centenária que para ali tinha vindo da abadia de Fontevrault. Antes da revolução pertencera mesmo à boa sociedade. Falava muito do senhor de Miromesnil, guarda dos selos no reinado de Luís XVI e de uma presidenta Duplat, a quem de muito perto conhecera. O seu gosto, a sua vaidade, era vir à baila com estes dois nomes, a propósito de tudo em que se falasse. Além disto, contava maravilhas da abadia de Fontevrault, pintando-a como uma cidade, e dizendo que no mosteiro havia ruas.
     A sua linguagem era um geringonça picarda, que fazia rir as recolhidas. Todos os anos renovava solenemente os seus votos, e na ocasião em que prestava juramento, dizia para o sacerdote: «Monsenhor S. Francisco arrendou-o a Monsenhor S. Julião, Monsenhor S. Julião arrendou-o a Monsenhor S. Eusébio, Monsenhor S. Eusébio arrendou-o a Monsenhor S. Procópio, etc., etc.; do mesmo modo eu lhe arrendo, meu padre».
     E as recolhidas riam não à socapa, mas por baixo do véu, graciosos risinhos abafados que faziam encrespar o sobrolho às madres vocais.
     De uma vez, estando a centenária a contar histórias, disse para as que a ouviam: «No meu tempo os bernardas não ficavam a dever nada aos mosqueteiros». Era um século que falava, mas era o século XVIII. Descrevia o costume dos quatro vinhos usados em Champagne e Borgonha antes da revolução. Quando por alguma cidade de Borgonha ou de Champagne passava qualquer grande personagem, como um marechal de França, um príncipe, um duque, um par, vinha esperá-lo a câmara e após um estirado discurso apresentava-lhe quatro vasos de prata contendo quatro vinhos diferentes. Na primeira taça lia-se esta inscrição: vinho de macaco; na segunda, vinho de leão; na terceira, vinho de carneiro; na quarta, vinho de porco». Estas quatro legendas exprimiam os quatro graus da embriaguez: o da embriaguez que alegra, o da embriaguez que irrita, o da embriaguez que entontece, o da embriaguez que embrutece.
      Tinha ela num armário, fechado à chave, um objeto misterioso que muito esmava, e que não era proibido pela regra de Fontevrault. Não queria que ninguém o visse. Fechava-se na cela, o que a sua regra lhe permitia, e escondia-se todas as vezes que o queria contemplar. Se sentia vir gente pelo corredor tornava a fechar o armário o mais precipitadamente que podia fazê-lo com as suas trêmulas mãos. Mal lhe falavam nisto calava-se, ela que tão amiga de falar era. As mais curiosas viram malogrados os seus esforços em presença do seu silêncio e as mais tenazes em presença da sua obstinação. Era este também um objeto de comentários para todas as ociosas do convento ou para aquelas que andavam aborrecidas. Que seria aquela tão preciosa e secreta coisa que era o tesouro da centenária? Algum livro de santidade, decerto?
     Algum rosário único? Alguma relíquia eficaz? Perdiam-se em conjecturas. Apenas a pobre velha morreu, correram ao armário mais depressa talvez do que convinha e abriram-no. Acharam o misterioso objeto embrulhado numa toalha, como uma patena benzida. Era um prato de Faenza representando uns amores a fugir, perseguidos por uns praticantes de boticário armados de enormes seringas. Abundavam as figuras em caretas e posturas cômicas. A um dos lindos amorinhos já um dos praticantes tinha espetado a atroz seringa. Ele debatia-se, agitava as asinhas, tentando ainda voar, mas o bufão ria com um riso satânico. Agora a moralidade do quadro: o amor vencido pela cólica. Este prato, aliás um tanto curioso e que teve talvez a honra de sugerir uma ideia a Molière, existia ainda em Setembro de 1848; estava à venda num adelo do boulevard Beaumarchais.
     Não queria esta boa velha receber nenhuma visita de fora, porque, dizia ela, era muito triste o locutório.

continua na página 385...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Sexto - IX - Um século sob um hábito
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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