Elias Canetti
O FOGO
Sobre o fogo, há que se dizer em primeiro lugar que ele é igual em toda parte: seja ele pequeno ou grande, surja aqui ou ali, dure muito ou pouco, em nossa imaginação ele será sempre semelhante, independentemente da ocasião. Para nós, a imagem do fogo é como uma marca — vigorosa, inextinguível e definida.
O fogo se propaga; é contagioso e insaciável. A violência com que
atinge florestas, estepes e cidades inteiras é uma de suas qualidades mais
impressionantes. Anteriormente ao seu desencadeamento, as árvores
estavam uma ao lado da outra, as casas enfileiradas, cada uma separada
da outra, existindo individualmente. O que, porém, encontrava-se
apartado, o fogo une num instante. Os objetos isolados e distintos
consomem-se todos nas mesmas chamas. Igualam-se em tamanha
medida que desaparecem inteiramente: casas, seres vivos, o fogo os
apanha a todos. E é contagioso: a ausência de resistência possível ao
contato com as chamas é algo sempre espantoso. Quanto mais vida algo
abriga, tanto menos será ele capaz de defender-se do fogo; capaz de
fazer-lhe frente é apenas o que há de mais inanimado:, os minerais. Sua
veloz desconsideração não conhece fronteiras. Ele quer conter tudo e
nunca se dá por satisfeito.
O fogo pode surgir em qualquer parte. Possui o caráter do súbito.
Não surpreende ninguém que aqui ou ali um incêndio principie; em
toda parte, está-se preparado para ele. Sua subtaneidade, contudo, é
sempre impressionante, e as pessoas põem-se a investigar-lhe as causas.
Que, com frequência, não se consiga encontrá-las é algo que contribui
para o sentimento reverente que se vincula à ideia do fogo. Este possui
uma onipresença secreta; a todo momento e em toda parte ela pode
fazer-se visível.
O fogo é múltiplo. Não se trata apenas do fato de que se tem sempre
consciência de que ele existe em muitos, inúmeros lugares. O fogo é
múltiplo em si: fala-se em chamas, em labaredas. Nos Vedas, o fogo é
chamado “o Agni único, o multiplamente in amado”.
O fogo é destrutivo; pode ser combatido e domado; ele se extingue.
Tem um opositor elementar, a água, que a ele se contrapõe sob a forma
de rios e chuvas torrenciais. Tal opositor sempre existiu; com todas as
suas múltiplas qualidades, ele lhe é igual. A inimizade de ambos é
proverbial: “fogo e água” é a expressão empregada para uma inimizade
da mais extrema e irreconciliável natureza. Nas antigas concepções
acerca do m do mundo, o vitorioso é sempre um ou outro. O dilúvio
põe m a toda vida com a água. A conflagração mundial destrói o
mundo com o fogo. Por vezes, figuram ambos numa única e mesma
mitologia, moderando-se mutuamente. O homem, porém, nesta sua
existência temporal, aprendeu a dominar o fogo. Ele não apenas logra
sempre contrapor-lhe a água, como conseguiu também preservar o fogo
isolado. Mantém-no preso em fornos e fogões. Alimenta-o da mesma
forma como se alimenta um animal; pode fazê-lo morrer de fome e
pode sufocá-lo. Com isso, encontra-se já sugerida a última qualidade
importante do fogo: ele é tratado como se tivesse vida. Tem uma vida
inquieta e se extingue. E se é sufocado aqui, segue vivendo noutras
partes.
Tomando-se em conjunto esses traços particulares do fogo, o que se
obtém é um quadro surpreendente: ele é igual por toda parte, propaga
se com rapidez, é contagioso e insaciável, pode surgir assaz
repentinamente em qualquer parte, é destrutivo, possui um inimigo,
extingue-se, tem o aspecto de um ser vivo e é tratado como tal. Todas
essas qualidades são, porém, as da massa: seria difícil resumir seus
atributos com maior exatidão. Basta que sejam examinados um a um: a
massa é igual por toda parte; nas mais diversas épocas e culturas, dentre
homens de qualquer origem, língua ou educação, ela é
fundamentalmente a mesma. Uma vez surgida, espraia-se com grande
violência. Poucos são capazes de resistir-lhe ao contágio; ela quer
sempre seguir crescendo; fronteira alguma lhe é imposta a partir de seu
interior. A massa pode surgir em qualquer parte onde homens
encontrem-se reunidos; sua espontaneidade e subtaneidade são
inquietantes. Ela é múltipla e, no entanto, coesa; compõe-na uma
quantidade inumerável de pessoas, nunca se sabe ao certo quantas. A
massa pode ser destrutiva. Ela é atenuada e domesticada. Busca um
inimigo para si. Extingue-se tão repentinamente quanto surgiu, e,
amiúde, de forma igualmente inexplicável. E, claro, possui sua própria
vida, inquieta e violenta. Tais semelhanças entre o fogo e a massa
conduziram a uma estreita amalgamação de ambos. Transformam-se
um no outro e podem representar um ao outro. Dentre os símbolos da
massa que sempre atuaram na história da humanidade, o fogo é um dos
mais importantes e mutáveis. Faz-se necessário, pois, examinar mais
detalhadamente algumas dessas relações entre o fogo e a massa.
Dentre os traços perigosos e constantemente ressaltados da massa, o
que chama mais a atenção é a tendência a provocar incêndios. Tal
tendência encontra no incêndio de florestas uma importante raiz sua. A floresta, ela própria um antiquíssimo símbolo da massa, é
frequentemente incendiada pelos homens, a m de se criar espaço para
povoações. Há boas razões para se supor que os homens aprenderam a
lidar com o fogo a partir dos incêndios nas florestas. Entre a floresta e o
fogo há um vínculo pré-histórico evidente. As lavouras ocupam o lugar
das florestas incineradas, e, se as lavouras hão de expandir-se, é sempre a floresta que tem de ser desbravada.
Os animais fogem da floresta em chamas. O medo em massa é a reação
natural, a reação eterna — poder-se-ia dizer — dos animais a um
grande incêndio, reação esta que, um dia, foi também a do homem. Este
último, porém, apoderou-se do fogo: ele tem o incêndio em suas mãos e
não precisa temê-lo. No lugar do velho medo alojou-se seu novo poder,
e ambos formaram uma aliança espantosa.
A massa que outrora fugia do fogo sente-se agora fortemente atraída
por ele. É conhecido o efeito mágico dos incêndios sobre homens de
toda espécie. Eles não se contentam com os fornos e fogões que cada
grupo tem em sua moradia; querem uma fogueira visível de longe, à
volta da qual possam reunir-se. Uma notável inversão do velho medo
em massa ordena aos homens que, sendo ele grande o suficiente, corram
ao local do incêndio, onde sentem um pouco do calor radiante que
outrora os unia. Em tempos de paz, são geralmente obrigados a
prescindir longamente dessa experiência. Constitui um dos instintos
mais poderosos da massa, tão logo tenha ela se formado, criar o seu
próprio fogo e apoderar-se da força de atração que ele possui em favor
de seu próprio crescimento.
Todo homem carrega hoje em seu bolso um pequeno resquício dessa
antiga e importante relação: a caixa de fósforos. Ela representa uma floresta homogeneizada de troncos isolados, cada um deles provido de
uma cabeça inflamável. Poder-se-ia acender vários deles ou todos de
uma vez e, assim, produzir artificialmente um incêndio na floresta. As
pessoas podem sentir-se tentadas a fazê-lo, mas normalmente não o
fazem porque o formato minúsculo de um tal acontecimento privá-lo
ia de todo o seu antigo fulgor.
A atração exercida pelo fogo pode, no entanto, ir bem mais longe. Os
homens não apenas correm em sua direção e o rodeiam; antigos
costumes fazem também com que eles se equiparem ao fogo. Um dos
mais belos exemplos disso é a famosa dança do fogo dos índios navajos.
Os navajos do Novo México preparam uma enorme fogueira em torno da qual dançam a noite toda. Entre o pôr e o nascer do sol, onze atos definidos são representados. Tão logo desaparece o disco solar, seus promotores adentram a clareira dançando freneticamente. Apresentam-se quase nus e com o corpo pintado; os cabelos longos, eles os deixam movimentar-se livremente. Carregam bastões de dança com penachos na ponta e, em saltos frenéticos, aproximam-se das elevadas chamas. Esses índios dançam de uma forma desajeitadamente contida, meio de cócoras, meio rastejando. Na realidade, a fogueira é tão quente que os dançarinos têm de serpentear pelo chão afim de aproximar-se suficientemente do fogo. O que querem é pôr fogo nas penas que adornam os bastões de dança. Um disco, representando o sol, é alçado ao alto, e em torno dele tem prosseguimento a dança frenética. Cada vez que o disco é baixado e reerguido uma nova dança principia. Perto do pôr do sol, as cerimônias sagradas aproximam-se já de seu fim. Homens pintados de branco adiantam-se e acendem pedaços de cascas na brasa já a se extinguir; depois, numa caçada selvagem, põem-se novamente a saltar em torno do fogo, lançando fagulhas, fumaça e chamas pelo próprio corpo. Saltam verdadeiramente em meio às brasas, confiando na argila branca que lhes há de proteger o corpo de queimaduras mais graves.
Dançam, pois, o próprio fogo; transformam-se nele. Seus
movimentos são os das chamas. Aquilo que têm nas mãos e acendem
deve causar a impressão de que eles próprios estão queimando. Por fim,
dispersam as últimas fagulhas da brasa até o sol nascer e receber deles o
fogo que dele os dançarinos haviam recebido ao findar-se o dia anterior.
Aqui, portanto, o fogo é ainda uma massa viva. Assim como, em suas
danças, outros índios transformam-se em búfalos, os navajos
representam o fogo ao dançar. O fogo vivo no qual eles se transformam
tornar-se-á para os pósteros um mero símbolo da massa.
Para cada símbolo da massa que se conhece é possível identificar a
massa concreta da qual ele se nutre. Nesse campo, não se depende tão só
de suposições. A tendência do homem para tornar-se fogo, para reativar
esse antigo símbolo, é igualmente forte em culturas posteriores e mais
complexas. Cidades sitiadas, já sem nenhuma esperança de que o
bloqueio a elas seja levantado, frequentemente ateiam fogo em si
mesmas. Reis e suas cortes, acossados inapelavelmente, incineram-se.
Exemplos disso encontram-se tanto nas antigas culturas do
Mediterrâneo quanto entre os índios e chineses. A Idade Média, que
acreditava no fogo do inferno, contenta-se com hereges isolados, que
ardem em lugar do público reunido a sua volta: ela manda seus
representantes para o inferno, por assim dizer, e cuida para que eles
ardam de fato. Uma análise do significado que o fogo assumiu em
diversas religiões seria do maior interesse. Contudo, ela só teria algum
valor se minuciosa, razão pela qual há que se guardá-la para mais tarde.
Correto, porém, afigura-se investigar de imediato o significado dos
atos incendiários impulsivos para o indivíduo que os comete, para aquele
que se encontra realmente isolado, não pertencendo à esfera de uma
convicção religiosa ou política qualquer.
Kräpelin descreve o caso de uma mulher solitária e já de mais idade
que, ao longo de sua vida, provocou cerca de vinte incêndios, os
primeiros quando ainda criança. Por seis vezes ela é acusada de ter
provocado incêndios, passando mais de 24 anos de sua vida na prisão.
“Se ao menos isto ou aquilo fosse reduzido a cinzas”, ela pensa consigo.
Trata-se de uma ideia fixa. Particularmente quando ela carrega fósforos
nos bolsos, algo a compele ao ato, como um poder invisível. Importa
lhe assistir ao incêndio, mas ela confessa também de bom grado o que
fez, e, aliás, de modo assaz minucioso. Desde cedo, ela deve ter
vivenciado o fogo como um meio de atrair as pessoas. Sua primeira
visão da massa foi, provavelmente, a aglomeração em torno de um
incêndio. O fogo pôde, então, facilmente passar a representar para ela a
própria massa. À inculpação e à autoinculpação compele-a o
sentimento de que todos a estão observando. Isso é o que ela quer;
transforma-se, assim, ela própria no fogo que todos estão olhando. Sua
relação com o ato incendiário tem, portanto, um caráter duplo. Por um
lado, ela deseja ser parte da massa que olha fixamente para o fogo. Este
está presente simultaneamente em todos os olhos, reunindo-os sob uma
poderosa compulsão. Em razão de sua miserável história pregressa, que
desde cedo a isolou, ela não dispõe de oportunidade alguma de se
integrar a uma massa, menos ainda ao longo dos intermináveis períodos
em que esteve presa. Então, uma vez terminado esse primeiro processo
— o do incêndio —, e ameaçando a massa escapar-lhe de novo, ela a
mantém viva subitamente metamorfoseando-se ela própria no fogo. Isso
se dá de uma maneira bastante simples: ela confessa ter causado o
incêndio. Quanto mais minucioso o seu relato, quanto mais ela tiver a
dizer a respeito, tanto mais longamente será olhada, e tanto mais
longamente será ela própria o fogo.
Casos dessa espécie não são tão raros quanto se pensa. Ainda que nem
sempre sejam tão extremos, eles fornecem, do ponto de vista do
indivíduo isolado, a comprovação irrefutável da conexão entre a massa e
o fogo.
continua página 122...
____________________
____________________
Leia também:
Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
Massa e Poder - O Fogo
____________________
ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
_______________________
Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
Nenhum comentário:
Postar um comentário