segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Introdução (a)

Introdução

120 MILHÕES DE CRIANÇAS NO CENTRO DA TORMENTA


     A divisão internacional do trabalho significa que alguns países se especializam em ganhar e outros em perder. Nossa comarca no mundo, que hoje chamamos América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se aventuraram pelos mares e lhe cravaram os dentes na garganta. Passaram-se os séculos e a América Latina aprimorou suas funções. Ela já não é o reino das maravilhas em que a realidade superava a fábula e a imaginação era humilhada pelos troféus da conquista, as jazidas de ouro e as montanhas de prata. Mas a região continua trabalhando como serviçal, continua existindo para satisfazer as necessidades alheias, como fonte e reserva de petróleo e ferro, de cobre e carne, frutas e café, matérias-primas e alimentos, destinados aos países ricos que, consumindo-os, ganham muito mais do que ganha a América Latina ao produzi-los. Os impostos que cobram os compradores são muito mais altos do que os valores que recebem os vendedores. Como declarou em julho de 1968 Covey T. Oliver, coordenador da Aliança para o Progresso, “falar hoje em dia de preços justos é um conceito medieval. Estamos em plena vigência do livre-comércio”.
     Quanto mais liberdade se concede aos negócios, mais cárceres precisam ser construídos para aqueles que padecem com os negócios. Nossos sistemas de inquisidores e verdugos não funcionam apenas para o mercado externo dominante, também proporcionam caudalosos mananciais de lucros que fluem dos empréstimos e dos investimentos estrangeiros nos mercados internos dominados. “Já se ouviu falar de concessões feitas pela América Latina para o capital estrangeiro, mas não de concessões feitas pelos Estados Unidos para o capital de outros países (...). É que nós não fazemos concessões”, advertia o presidente norte americano Woodrow Wilson, por volta de 1913. Ele estava convicto: “Um país”, dizia, “é possuído e dominado pelo capital que nele foi investido”. E tinha razão. Pelo caminho perdemos até o direito de nos chamarmos americanos, embora os haitianos e os cubanos já estivessem inscritos na História, como novos povos, um século antes que os peregrinos do Mayflower se estabelecessem nas costas de Plymouth. Agora, para o mundo, América é tão só os Estados Unidos, e nós quando muito habitamos uma sub América, uma América de segunda classe, de nebulosa identidade.
     É a América Latina, a região das veias abertas. Do descobrimento aos nossos dias, tudo sempre se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte americano, e como tal se acumulou e se acumula nos distantes centros do poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar foram sucessivamente determinados, do exterior, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo. Para cada um se atribuiu uma função, sempre em benefício do desenvolvimento da metrópole estrangeira do momento, e se tornou infinita a cadeia de sucessivas dependências, que têm muito mais do que dois elos e que, por certo, também compreende, dentro da América Latina, a opressão de países pequenos pelos maiores seus vizinhos, e fronteiras adentro de cada país, a exploração de suas fontes internas de víveres e mão de obra pelas grandes cidades e portos (há quatro séculos já haviam nascido dezesseis das 20 cidades latino-americanas atualmente mais populosas).
     Para os que concebem a História como uma contenda, o atraso e a miséria da América Latina não são outra coisa senão o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam. Mas aqueles que ganharam só puderam ganhar porque perdemos: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra, como já foi dito, a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus beleguins nativos. Na alquimia colonial e neocolonial o ouro se transfigura em sucata, os alimentos em veneno. Potosí, Zacatecas e Ouro Preto caíram de ponta-cabeça da grimpa de esplendores dos metais preciosos no fundo buraco dos socavões vazios, e a ruína foi o destino do pampa chileno do salitre e da floresta amazônica da borracha; o nordeste açucareiro do Brasil, as matas argentinas de quebrachos ou certos povoados petrolíferos do lago de Maracaibo têm dolorosas razões para acreditar na mortalidade das fortunas que a natureza dá e o imperialismo toma. A chuva que irriga os centros do poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes – dominantes para dentro, dominadas de fora – é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga.
     A diferença se acentua. Até meados do século passado o nível de vida dos países ricos do mundo excedia em 50 por cento o nível dos países pobres. O desenvolvimento desenvolve a desigualdade: em seu discurso na OEA em abril de 1969, Richard Nixon anunciou que ao fim do século XX a renda per capita nos Estados Unidos seria quinze vezes maior do que na América Latina. A força do conjunto do sistema imperialista reside na necessária desigualdade das partes que o formam, e essa desigualdade assume magnitudes cada vez mais dramáticas. Os países opressores se tornam cada vez mais ricos em termos absolutos, pelo dinamismo da disparidade crescente. O capitalismo central pode dar-se ao luxo de criar seus próprios mitos e acreditar neles, mas mitos não se comem, bem sabem os países pobres que constituem o vasto capitalismo periférico. A renda média de um cidadão norte-americano é sete vezes maior do que a de um latino-americano, e aumenta num ritmo dez vezes mais intenso. E as médias enganam, a julgar pelos insondáveis abismos que se abrem ao sul do rio Bravo, entre os muitos pobres e os poucos ricos da região. No topo, 6 milhões de latino-americanos, segundo as Nações Unidas, obtiveram uma renda igual à de 140 milhões de pessoas situadas na base da pirâmide social. Há 60 milhões de camponeses cuja fortuna não ultrapassa 25 centavos de dólar ao dia; no outro extremo, os proxenetas da desgraça dão-se ao luxo de acumular cinco bilhões de dólares em suas contas particulares na Suíça e nos Estados Unidos, e dissipam na ostentação, no luxo estéril – ofensa e desafio – e em investimentos improdutivos, que constituem nada menos do que a metade do investimento total, os capitais que a América Latina poderia destinar à reposição, à ampliação e à criação de fontes de produção e de trabalho. Desde sempre incorporadas à constelação do poder imperialista, nossas classes dominantes não têm o menor interesse em averiguar se o patriotismo resultaria mais rentável do que a traição ou se a mendicância é realmente a única forma possível da política internacional. Hipoteca-se a soberania porque “não há outro caminho”; os álibis oligarquia deliberadamente confundem a impotência de uma classe social com o suposto destino vazio de cada nação.
      Josué de Castro declara: “Eu, que recebi um prêmio internacional da paz, penso que, infelizmente, não há solução além da violência para a América Latina”. E 120 milhões de crianças se agitam no centro dessa tormenta. A população da América Latina cresce como nenhuma outra, em meio século triplicou com sobras. A cada minuto morre uma criança de doença ou de fome, mas no ano 2000 haverá 650 milhões de latino-americanos, e a metade terá menos de 15 anos de idade: uma bomba-relógio. Em fins de 1970, entre os 280 milhões de latino-americanos há 50 milhões de desempregados ou subempregados e cerca de 100 milhões de analfabetos. A metade dos latino americanos vive amontoada em casebres insalubres. Os três maiores mercados da América Latina – Argentina, Brasil e México –, somados, não chegam a igualar a capacidade de consumo da França ou da Alemanha Ocidental, embora as populações reunidas de nossos três grandes excedam largamente a de qualquer país europeu. A América Latina produz hoje, na relação com a população, menos alimentos do que no período anterior à última guerra mundial, e suas exportações per capita, a preços constantes, diminuíram três vezes desde a véspera da crise de 1929.
     O sistema é muito racional do ponto de vista de seus donos estrangeiros e de nossa burguesia comissionista, que vendeu a alma ao Diabo por um preço que deixaria Fausto envergonhado. Mas o sistema é tão irracional para todos os outros que, quanto mais se desenvolve, mais aguça seus desequilíbrios e tensões, suas candentes contradições. Até a industrialização, dependente e tardia, que comodamente coexiste com o latifúndio e as estruturas da desigualdade, contribui para semear o desemprego, em vez de ajudar a resolvê-lo; alastra-se a pobreza e se concentra a riqueza nesta região de imensas legiões de braços cruzados que se multiplicam sem parar. Novas fábricas se estabelecem nos polos privilegiados do desenvolvimento – São Paulo, Buenos Aires, Cidade do México – e cada vez menos mão de obra eles necessitam.

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