120 MILHÕES DE CRIANÇAS NO CENTRO DA TORMENTA
continuando...
O sistema não previu este pequeno incômodo: o que sobra é gente. E gente se reproduz. Faz-se o amor com entusiasmo e sem precauções. Cada vez resta mais gente à beira do caminho, sem trabalho no campo, onde o latifúndio reina com suas gigantescas terras improdutivas, e sem trabalho na cidade, onde reinam as máquinas: o sistema vomita homens. As missões norte-americanas esterilizam as mulheres e semeiam pílulas, diafragmas, DIUS, preservativos e calendários marcados, mas colhem crianças. Teimosamente, as crianças latino-americanas continuam nascendo, reivindicando seu direito natural de ter um lugar ao sol nessas terras esplêndidas, que poderiam dar a todos o que a quase todos negam.
No princípio de novembro de 1968, Richard Nixon
constatou em voz alta que a Aliança para o Progresso
completara sete anos de vida e, no entanto, agravara-se a
desnutrição e a escassez de alimentos na América Latina.
Poucos meses antes, em abril, George W. Ball escrevia na
Life: “Ao menos nas próximas décadas a insatisfação das
nações mais pobres não significará uma ameaça de
destruição do mundo. Por vergonhoso que seja, durante
gerações o mundo tem sido dois terços pobre e um terço
rico. Por injusto que seja, é limitado o poder dos países
pobres”. Ball tinha encabeçado a delegação dos Estados
Unidos
à
Primeira
Conferência
de
Comércio
e
Desenvolvimento, em Genebra, e votara contra nove dos
doze princípios gerais aprovados pela conferência, com o
objetivo
de atenuar as desvantagens dos países
subdesenvolvidos no comércio internacional.
São secretas as matanças da miséria na América Latina.
A
cada ano, silenciosamente, sem estrépito algum,
explodem três bombas de Hiroshima sobre esses povos que
têm o costume de sofrer de boca calada. Essa violência
sistemática, não aparente, mas real, vem aumentando: seus
crimes não são noticiados pelos diários populares, mas
pelas estatísticas da FAO. Ball diz que a impunidade ainda é
possível porque os pobres não podem desencadear a guerra
mundial, mas o império se preocupa: incapaz de multiplicar
os pães, faz o possível para suprimir os comensais.
“Combata a pobreza, mate um mendigo”, grafitou um
mestre do humor negro num muro de La Paz. O que
propõem os herdeiros de Malthus senão matar todos os
futuros mendigos antes que nasçam? Robert McNamara, o
presidente do Banco Mundial que tinha sido presidente da
Ford e Secretário da Defesa, afirma que a explosão
demográfica constitui o maior obstáculo ao progresso da
América Latina, e anuncia que o Banco Mundial, em seus
empréstimos, dará preferência aos países que executarem
planos de controle da natalidade. McNamara constata, com
lástima, que o cérebro dos pobres pensa 25 por cento
menos, e os tecnocratas do Banco Mundial (que já
nasceram) fazem zumbir os computadores e geram
intrincados cálculos sobre as vantagens de não nascer. “Se
um país em desenvolvimento, que tem uma renda média
per capita de 150 a 200 dólares anuais, puder reduzir sua
fertilidade em 50 por cento num período de 25 anos, ao
cabo de 30 anos sua renda per capita, quando menos, será
40 por cento superior ao nível que teria alcançado sem
reduzir os nascimentos, e duas vezes maior ao cabo de 60
anos”, assegura um dos documentos do organismo. Tornou
se célebre a frase de Lyndon Johnson: “Cinco dólares
investidos contra o crescimento da população são mais
eficazes do que 100 investidos no crescimento econômico”.
Dwight Eisenhower prognosticou que, se os habitantes da
terra continuarem a se multiplicar no mesmo ritmo, não só
se aguçará o perigo da revolução como também se
produzirá “uma degradação no nível de vida de todos os
povos, o nosso inclusive”.
Os Estados Unidos não sofrem, fronteiras adentro, o
problema da explosão demográfica, mas se preocupam
como ninguém em difundir e impor o planejamento familiar
aos quatro pontos cardeais. Não só o governo: também
Rockefeller e a Fundação Ford padecem de pesadelos por
causa dos milhões de crianças que avançam, como
lagostas, dos horizontes do Terceiro Mundo. Platão e
Aristóteles ocuparam-se do tema antes de Malthus e
McNamara. Em nosso tempo, contudo, toda essa ofensiva
universal cumpre uma função bem definida: quer justificar a
desigual distribuição de renda entre países e entre classes
sociais, quer convencer os pobres de que a pobreza é
consequência dos filhos que não evitam e opor um dique ao
avanço da fúria das massas em movimento e rebelião. No
sudeste asiático os dispositivos intrauterinos competem
com bombas e metralhadores, no esforço de deter o
crescimento da população do Vietnam. Na América Latina, é
mais higiênico e eficaz matar guerrilheiros no útero do que
nas montanhas ou nas ruas. Diversas missões norte
americanas esterilizaram milhares de mulheres na
Amazônia, embora seja esta a zona habitável mais deserta
do planeta. Na maior parte dos países latino-americanos
não sobra gente: falta. O Brasil tem 38 vezes menos
habitantes por quilômetro quadrado do que a Bélgica. O
Paraguai, 49 vezes menos do que a Inglaterra; o Peru, 32
vezes menos do que o Japão. Haiti e El Salvador,
formigueiros humanos da América Latina, têm uma
densidade populacional menor do que da Itália. Os
pretextos invocados ofendem a inteligência, as intenções
reais incendeiam a indignação. Afinal, não menos da
metade dos territórios da Bolívia, Brasil, Chile, Equador,
Paraguai e Venezuela não está habitada por ninguém.
Nenhuma população latino-americana cresce menos do que
a do Uruguai, país de velhos, e no entanto nenhuma outra
nação tem sido tão castigada, em anos recentes, por uma
crise que parece arrastá-la para o último círculo dos
infernos. O Uruguai está vazio e suas férteis pradarias
poderiam dar de comer a uma população infinitamente
maior do que aquela que hoje, em seu próprio chão, sofre
tantas penúrias.
Há mais de um século, um chanceler da Guatemala
sentenciou profeticamente: “Seria curioso que do seio dos
Estados Unidos, de onde nos vem o mal, nascesse também
o remédio”. Morta e enterrada a Aliança para o Progresso, o
Império propõe agora, com mais pânico do que
generosidade, resolver os problemas da América Latina
eliminando de antemão os latino-americanos. Em
Washington já se suspeita que os povos pobres não prefiram
ser pobres. Mas não se pode querer o fim sem querer os
meios: aqueles que negam a libertação da América Latina
negam também nosso único renascimento possível, e de
passagem absolvem as estruturas em vigência. Os jovens
se multiplicam, levantam-se, escutam: o que lhes oferece a
voz do sistema? O sistema se expressa numa linguagem
surreal: propõe evitar os nascimentos nessas terras vazias,
opina que faltam capitais em países onde os capitais estão
sobrando e são desperdiçados, chama de ajuda a ortopedia
deformante dos empréstimos e a drenagem de riquezas que
os investimentos estrangeiros provocam, convoca os
latifundiários para fazer a reforma agrária e a oligarquia
para pôr em prática a justiça social. A luta de classes não
existe – decreta-se –, sobretudo por culpa dos agentes
forâneos que a incitam, mas em troca existem as classes
sociais, e à opressão de umas pelas outras dá-se o nome de
estilo ocidental de vida. As expedições criminosas dos
marines têm por objetivo restabelecer a ordem e a paz
social, e as ditaduras submissas a Washington fundam nos
cárceres o estado de direito e proíbem as greves e
aniquilam os sindicatos para proteger a liberdade de
trabalho.
Tudo nos é proibido, exceto cruzar os braços? A pobreza
não está escrita nas estrelas, o subdesenvolvimento não é
fruto de um obscuro desígnio de Deus. Correm anos de
revolução, tempos de redenção. As classes dominantes
põem as barbas de molho e, ao mesmo tempo, anunciam o
inferno para todos. Em certo sentido, a direita tem razão
quando se identifica com a tranquilidade e com a ordem. A
ordem é a diuturna humilhação das maiorias, mas sempre é
uma ordem – a tranquilidade de que a injustiça siga sendo
injusta e a fome faminta. Se o futuro se converte numa
caixa de surpresas, o conservador grita, com toda razão:
“Me traíram”. E os ideólogos da impotência, os escravos
que se contemplam com os olhos do amo, não demoram em
fazer ouvir seus clamores. A águia de bronze do Maine,
derrubada no dia da vitória da revolução cubana, jaz agora
abandonada, com as asas partidas, sob um portal do bairro
velho de Havana. De Cuba em diante, outros países
também iniciaram por distintas vias e distintos meios a
experiência de mudança: a perpetuação da atual ordem de
coisas é a perpetuação do crime.
Os fantasmas de todas as revoluções estranguladas ou
traídas, ao longo da torturada história latino-americana,
ressurgem nas novas experiências, assim como os tempos
presentes tinham sido pressentidos e engendrados pelas
contradições do passado. A história é um profeta com o
olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi,
anuncia o que será. Por isto neste livro, que quer oferecer
uma história da rapinagem e, ao mesmo tempo, mostrar
como funcionam os mecanismos atuais da espoliação,
aparecem os conquistadores nas caravelas e, ali perto, os
tecnocratas nos jatos, Hernán Cortez e os fuzileiros navais,
os corregedores do reino e as missões do Fundo Monetário
Internacional, os dividendos dos traficantes de escravos e
os lucros da General Motors. Também os heróis derrotados e
as revoluções de nossos dias, as infâmias e as esperanças
mortas e ressurretas: os sacrifícios fecundos. Quando
Alexander von Humboldt investigou os costumes dos
antigos habitantes indígenas das mesetas de Bogotá, ficou
sabendo que os índios chamavam de quihica as vítimas das
cerimônias rituais. Quihica significava porta: a morte de
cada eleito abria um novo ciclo de 185 luas.
continua na página...18
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As veias abertas da América Latina - Introdução (b)
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