segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Introdução (b)

Introdução

120 MILHÕES DE CRIANÇAS NO CENTRO DA TORMENTA

continuando...

     O sistema não previu este pequeno incômodo: o que sobra é gente. E gente se reproduz. Faz-se o amor com entusiasmo e sem precauções. Cada vez resta mais gente à beira do caminho, sem trabalho no campo, onde o latifúndio reina com suas gigantescas terras improdutivas, e sem trabalho na cidade, onde reinam as máquinas: o sistema vomita homens. As missões norte-americanas esterilizam as mulheres e semeiam pílulas, diafragmas, DIUS, preservativos e calendários marcados, mas colhem crianças. Teimosamente, as crianças latino-americanas continuam nascendo, reivindicando seu direito natural de ter um lugar ao sol nessas terras esplêndidas, que poderiam dar a todos o que a quase todos negam.
     No princípio de novembro de 1968, Richard Nixon constatou em voz alta que a Aliança para o Progresso completara sete anos de vida e, no entanto, agravara-se a desnutrição e a escassez de alimentos na América Latina. Poucos meses antes, em abril, George W. Ball escrevia na Life: “Ao menos nas próximas décadas a insatisfação das nações mais pobres não significará uma ameaça de destruição do mundo. Por vergonhoso que seja, durante gerações o mundo tem sido dois terços pobre e um terço rico. Por injusto que seja, é limitado o poder dos países pobres”. Ball tinha encabeçado a delegação dos Estados Unidos à Primeira Conferência de Comércio e Desenvolvimento, em Genebra, e votara contra nove dos doze princípios gerais aprovados pela conferência, com o objetivo de atenuar as desvantagens dos países subdesenvolvidos no comércio internacional.
     São secretas as matanças da miséria na América Latina. A cada ano, silenciosamente, sem estrépito algum, explodem três bombas de Hiroshima sobre esses povos que têm o costume de sofrer de boca calada. Essa violência sistemática, não aparente, mas real, vem aumentando: seus crimes não são noticiados pelos diários populares, mas pelas estatísticas da FAO. Ball diz que a impunidade ainda é possível porque os pobres não podem desencadear a guerra mundial, mas o império se preocupa: incapaz de multiplicar os pães, faz o possível para suprimir os comensais. “Combata a pobreza, mate um mendigo”, grafitou um mestre do humor negro num muro de La Paz. O que propõem os herdeiros de Malthus senão matar todos os futuros mendigos antes que nasçam? Robert McNamara, o presidente do Banco Mundial que tinha sido presidente da Ford e Secretário da Defesa, afirma que a explosão demográfica constitui o maior obstáculo ao progresso da América Latina, e anuncia que o Banco Mundial, em seus empréstimos, dará preferência aos países que executarem planos de controle da natalidade. McNamara constata, com lástima, que o cérebro dos pobres pensa 25 por cento menos, e os tecnocratas do Banco Mundial (que já nasceram) fazem zumbir os computadores e geram intrincados cálculos sobre as vantagens de não nascer. “Se um país em desenvolvimento, que tem uma renda média per capita de 150 a 200 dólares anuais, puder reduzir sua fertilidade em 50 por cento num período de 25 anos, ao cabo de 30 anos sua renda per capita, quando menos, será 40 por cento superior ao nível que teria alcançado sem reduzir os nascimentos, e duas vezes maior ao cabo de 60 anos”, assegura um dos documentos do organismo. Tornou se célebre a frase de Lyndon Johnson: “Cinco dólares investidos contra o crescimento da população são mais eficazes do que 100 investidos no crescimento econômico”. Dwight Eisenhower prognosticou que, se os habitantes da terra continuarem a se multiplicar no mesmo ritmo, não só se aguçará o perigo da revolução como também se produzirá “uma degradação no nível de vida de todos os povos, o nosso inclusive”.
     Os Estados Unidos não sofrem, fronteiras adentro, o problema da explosão demográfica, mas se preocupam como ninguém em difundir e impor o planejamento familiar aos quatro pontos cardeais. Não só o governo: também Rockefeller e a Fundação Ford padecem de pesadelos por causa dos milhões de crianças que avançam, como lagostas, dos horizontes do Terceiro Mundo. Platão e Aristóteles ocuparam-se do tema antes de Malthus e McNamara. Em nosso tempo, contudo, toda essa ofensiva universal cumpre uma função bem definida: quer justificar a desigual distribuição de renda entre países e entre classes sociais, quer convencer os pobres de que a pobreza é consequência dos filhos que não evitam e opor um dique ao avanço da fúria das massas em movimento e rebelião. No sudeste asiático os dispositivos intrauterinos competem com bombas e metralhadores, no esforço de deter o crescimento da população do Vietnam. Na América Latina, é mais higiênico e eficaz matar guerrilheiros no útero do que nas montanhas ou nas ruas. Diversas missões norte americanas esterilizaram milhares de mulheres na Amazônia, embora seja esta a zona habitável mais deserta do planeta. Na maior parte dos países latino-americanos não sobra gente: falta. O Brasil tem 38 vezes menos habitantes por quilômetro quadrado do que a Bélgica. O Paraguai, 49 vezes menos do que a Inglaterra; o Peru, 32 vezes menos do que o Japão. Haiti e El Salvador, formigueiros humanos da América Latina, têm uma densidade populacional menor do que da Itália. Os pretextos invocados ofendem a inteligência, as intenções reais incendeiam a indignação. Afinal, não menos da metade dos territórios da Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Paraguai e Venezuela não está habitada por ninguém. Nenhuma população latino-americana cresce menos do que a do Uruguai, país de velhos, e no entanto nenhuma outra nação tem sido tão castigada, em anos recentes, por uma crise que parece arrastá-la para o último círculo dos infernos. O Uruguai está vazio e suas férteis pradarias poderiam dar de comer a uma população infinitamente maior do que aquela que hoje, em seu próprio chão, sofre tantas penúrias.
     Há mais de um século, um chanceler da Guatemala sentenciou profeticamente: “Seria curioso que do seio dos Estados Unidos, de onde nos vem o mal, nascesse também o remédio”. Morta e enterrada a Aliança para o Progresso, o Império propõe agora, com mais pânico do que generosidade, resolver os problemas da América Latina eliminando de antemão os latino-americanos. Em Washington já se suspeita que os povos pobres não prefiram ser pobres. Mas não se pode querer o fim sem querer os meios: aqueles que negam a libertação da América Latina negam também nosso único renascimento possível, e de passagem absolvem as estruturas em vigência. Os jovens se multiplicam, levantam-se, escutam: o que lhes oferece a voz do sistema? O sistema se expressa numa linguagem surreal: propõe evitar os nascimentos nessas terras vazias, opina que faltam capitais em países onde os capitais estão sobrando e são desperdiçados, chama de ajuda a ortopedia deformante dos empréstimos e a drenagem de riquezas que os investimentos estrangeiros provocam, convoca os latifundiários para fazer a reforma agrária e a oligarquia para pôr em prática a justiça social. A luta de classes não existe – decreta-se –, sobretudo por culpa dos agentes forâneos que a incitam, mas em troca existem as classes sociais, e à opressão de umas pelas outras dá-se o nome de estilo ocidental de vida. As expedições criminosas dos marines têm por objetivo restabelecer a ordem e a paz social, e as ditaduras submissas a Washington fundam nos cárceres o estado de direito e proíbem as greves e aniquilam os sindicatos para proteger a liberdade de trabalho.
     Tudo nos é proibido, exceto cruzar os braços? A pobreza não está escrita nas estrelas, o subdesenvolvimento não é fruto de um obscuro desígnio de Deus. Correm anos de revolução, tempos de redenção. As classes dominantes põem as barbas de molho e, ao mesmo tempo, anunciam o inferno para todos. Em certo sentido, a direita tem razão quando se identifica com a tranquilidade e com a ordem. A ordem é a diuturna humilhação das maiorias, mas sempre é uma ordem – a tranquilidade de que a injustiça siga sendo injusta e a fome faminta. Se o futuro se converte numa caixa de surpresas, o conservador grita, com toda razão: “Me traíram”. E os ideólogos da impotência, os escravos que se contemplam com os olhos do amo, não demoram em fazer ouvir seus clamores. A águia de bronze do Maine, derrubada no dia da vitória da revolução cubana, jaz agora abandonada, com as asas partidas, sob um portal do bairro velho de Havana. De Cuba em diante, outros países também iniciaram por distintas vias e distintos meios a experiência de mudança: a perpetuação da atual ordem de coisas é a perpetuação do crime.
     Os fantasmas de todas as revoluções estranguladas ou traídas, ao longo da torturada história latino-americana, ressurgem nas novas experiências, assim como os tempos presentes tinham sido pressentidos e engendrados pelas contradições do passado. A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será. Por isto neste livro, que quer oferecer uma história da rapinagem e, ao mesmo tempo, mostrar como funcionam os mecanismos atuais da espoliação, aparecem os conquistadores nas caravelas e, ali perto, os tecnocratas nos jatos, Hernán Cortez e os fuzileiros navais, os corregedores do reino e as missões do Fundo Monetário Internacional, os dividendos dos traficantes de escravos e os lucros da General Motors. Também os heróis derrotados e as revoluções de nossos dias, as infâmias e as esperanças mortas e ressurretas: os sacrifícios fecundos. Quando Alexander von Humboldt investigou os costumes dos antigos habitantes indígenas das mesetas de Bogotá, ficou sabendo que os índios chamavam de quihica as vítimas das cerimônias rituais. Quihica significava porta: a morte de cada eleito abria um novo ciclo de 185 luas.

continua na página...18
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As veias abertas da América Latina - Introdução (b)

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