quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O socador de cuíca

Becos sem saída - O Manco


II
baitasar

A mãe finge não notar a admiração do filho pela desconhecida, a contrarrevolucionária Giovana. A curiosidade gelada de agosto. Ela adivinha que o mundo das pessoas cresceu mais que o coração e inchou de desvios alucinados: perdeu a memória, estacionou desorientado em um jeito profundo de amortecimento. A Memória menina está se desmanchando naquele outono prolongado, as suas folhas tornadas amarelas pelas gavetas que se abrem puxando para dentro, agora caem da boca aberta, a seiva úmida rompe a casca dura, desce dos olhos até as raízes, inundam tudo na sua volta, os pés ficam mais dentro da impossibilidade de se removerem daquele pântano, estão enterrados no emaranhado de vozes que a solicitam. É ela que fixa o chão na sua volta, não pode se deixar tombar por nenhum vendaval. É a sua própria sepultura, o jazigo perpétuo da família.
Gostaria de colocar a Memória no colo e contar algumas histórias, começaria assim: existe ali - no lago dos pedalinhos - um medo escondido em cavernas. Os mais antigos contam como um mundo debaixo da terra - Atlantis, nossa potencia naval de pescadores - se fez no afundamento de uma ilha, tudo aconteceu após um dilúvio de muitas noites e dias. Aquelas chuvas fizeram que tudo sumisse da superfície e fosse empurrado em redemoinho para um imenso abismo. As águas encontraram caminhos em galerias menores e escoaram por ralos até se manterem escorrendo calmamente em pequenos abrigos submersos. Muitos acreditam, juram de pé junto, que a cidade se ficou ilesa em uma imensa galeria, abaixo dos pés nervosos que se vão de um lugar para outro aqui por cima. Aquela gente toda empurrada goela abaixo da terra veio com o tempo parecer um imenso formigueiro, saúvas humanas, alongamentos em formas de panelas, tudo muito abaixo das raízes das árvores, muito abaixo das montanhas, poço muito para baixo esperando que se entenda as razões para aquela ida à pique, vidas perdidas e desaparecidas apenas pela vontade daquelas águas insanas, vindas do continente. Restou o medo da erupção de tanques e soldados marchando, pisando sobre as flores e as ervas do caminho, avançando a qualquer preço, destruindo o que lhes resistiu à passagem, fazendo da terra os soluços para executar qualquer gemido de lamentação, afogando em silêncio, em suas águas fedidas de pólvora, o fim de tudo, a morte. Menina, isso de hoje, vivido pelo guri, apenas continua os golpes de ontem, parece que nunca se termina
—        Meu filho, calma...
—        Mãe, estamos numa guerra longe do fim, não vamos permitir outra Cuba... precisam sentir a nossa mão pesada. — o garoto torturador lhe faz retornar a atenção para o gravador, a menina se perde de mim, está crescida, arraigada nos filhos, é sempre assim, a mãe enraíza
─ Giovana, o mundo está moribundo.
─ Gelatinoso!
─ Abaixo as empresas estrangeiras!
─ É bem assim, os dias e noites ficaram pegajosos e ocos, em desassossego, qualquer ditadura estraçalha com as pessoas.
─ Precisamos resistir, não pagaremos nossa dívida externa!
─ Querem privatizar nossas universidades!
─ Filhos-da-puta! Só querem mão-de-obra barata!
O gravador ia aos pulos pra frente e pra trás, o coração da minha menina ia aos pulos se encorpando de medo, o corpo lhe ardia em febre, ora estava calada e enfraquecida, ora recitava em murmúrios os cânticos dos orixás da sua gente, grandes e poderosos, enquanto as conversas daqueles dois desconhecidos lhe enchiam os ouvidos e desconcertavam os cantos e as rezas, as promessas
─ É uma guerra silenciosa e ainda somos poucos...
─ Precisamos lutar contra a dominação do capital estrangeiro!
─ Ainda aquele que está a brotar por agora, já é apenas outro alimento dessa gente de privilégios, como o gado a serviço da fome do querer mais, sempre mais.
─ E quando não foi?
─ Estamos tão acostumados que não protestamos mais, já nascemos com a canga e a marca do ferro em brasa.
─ Mugimos hesitantes.
─ Muuuuuuuuu...
Depois dessas conversas, o tal Beijamim é encarcerado inúmeras vezes. Estão na busca da Giovana e decidem que soltam a mão que segura o torturado. Quando soltam o rapaz, o polícia secreta fica de campana. A armadilha está pronta, mas de nada adianta: a moça sumiu. Poucos dias depois, ele volta a ser preso e espancado. Os espancadores acostumam com a mão incondicionada, a truculência e a impaciência dos primeiros anos são trocadas pela paciência, o entretenimento que separa e aproxima as partes do mosaico até formar a figura procurada. Brincam de quebrar cabeças. O despudor da governança cínica se mantém apoiado na cumplicidade dos noticiosos e no desejo dos buscadores de pequenas vantagens para si. Petiscos pessoais. O rigor da injustiça apenas para os inimigos, a justiça é destinada aos desconhecidos - para os amigos: deixa para lá, isso é outra conversa. Enquanto a moça, Giovana, não é encontrada, o Beijamim vive a morte prometida no espancamento. Sua possibilidade de fuga é estar em muitos pensamentos.
Memória passa a viver com a angústia do filho torturador. Quando ouve no rádio que o corpo de um jovem fora encontrado com as mãos amarradas e sinais de tortura, no lago dos pedalinhos, sente náuseas. Poderia ser o jovem das gravações e dos recortes. Faz silêncio. Precisa falar com o filho
—        Mãe, o indivíduo fugiu.
—        Diz a verdade, meu filho...
—        A verdade, mãe? É isso mãe, eu juro!
—        Meu filho, quem é esse jovem encontrado com as mãos amarradas?
—        Não sei, mãe... não sei...
—        Acho que eu estou sonhando um pesadelo.
Memória faz sua voz metálica, diz que Supimpa ainda não se fez homem pra enfrentá-la — Diz a verdade, meu filho! — além disso, ele carrega na lembrança o cheiro do leite da mãe, ainda não desmamou. O aprendiz pede o seu juramento de segredo no que vai ouvir. Memória faz silêncio, decide entre a curiosidade de saber das andanças do seu filho e a fatalidade da mãe que não pode perdoar
—        O que a senhora vai ler, nunca aconteceu...
O entendimento não retornou ao corpo do meu constituído tão cedo. Beijamim foi adormecido de pancadas. Por estes dias de chumbeira e desatino, muitas histórias são descobertas ao acaso, outras nos vêm pela sua aparência de desimportante e irrelevante. Mas todas, repito, todas têm uma importância fundamental, para que possamos entender e julgar não os presos, mas os seus torturadores. Houve na cela das tortuosidades do meu constituído, um ventilador descolorido, barulhento, com suas pás num zumbido de asmático, ora num lado ora noutro, Beijamim, o perdido de suas partes, naquele instante, torceu pelo ventilante, queria a ventosidade artificial da ventilação. O socador de cuíca, num gesto de controle, apertou o botão que mantinha o vento na direita, às vezes, na esquerda, e o tornou em única direção, desviou de Beijamim a ventania, como tortura, por certo. Criou mais um desespero no socado, agora, por um pequeno jato de ar, mas seus pensamentos continuavam requeridos pelo valentão
— Pára de gritar, seu gordalhaço de merda, come ao exagero descuidado.
— Não grito pela minha fome.
— Não conheço nenhum gorducho preocupado com a fome alheia mais que com as próprias tripas.
Diz e desfere mais um violento murro na cabeça do meu constituído, que permanece com as mãos atadas às costas. Sangra pelo nariz e baba o próprio sangue
— Tenho pressa em denunciar a fome dos miseráveis.
— Coitado, olha aqui, o gorducho preocupado com a fome do mundo... pura conversa! Quero nomes! Quero endereços! — outro soco, mais sangue.
Agora, o amarrado recebe o cacete de borracha no rosto, é um murro que amolece outro dente, enquanto a baba e o sangue escorrem da boca misturada com o uniforme do prisioneiro, um saco cinza disforme costurado em tecido grosseiro. Já não sabe mais qual o seu limite. Tudo é feito para testar a fronteira da vida e o desejo pela morte. Não dorme, ou nunca mais adormeceu. Não lembra. É preciso autorização para dormir. É forçoso licença para se matar. O banho só quando o carcereiro não suporta mais a morrinha do prisioneiro. Jorro de água gelada direto do mangueirante, tudo para destruir a dignidade e a identidade
— Ao custo de quantas vidas?
— Não importa... Quem sabe, a tua se vá amanhã?
— Quanta vontade por minha vida.
— Tu tem dono, mané...
— Tu é um pau-mandado.
— Filho da mãe, não me encara! Olhando pro chão!
O surrado pelo punho autoritário fechou os olhos, a boca e o sentido de escutar. A imobilidade de Beijamim coberta de sangue escorreu pelas paredes azulejadas em esmeraldas, frias, mudas e cegas, na solidão da caverna. Vazou pelos rejuntes escuros em caminho até o piso do andar acima, encontrou as paredes de ladrilho vidrado na cor do enxofre, derramou para cima até o rastro dos comandantes e reforçou o suco humano escorrido, deformado embaixo de coturnos e sapatos indiferentes, tudo pisoteado no entreato de sanduíches de mortadela e queijo, refeição pequena de sobrepasto. O prato principal já estava servido, a carne desarranjada do Beijamim. Os generais do andar por cima também mancham seus pés e suas mãos de sangue. Mais socos e choques e odores de suor, mais fome no pavilhão da libertação. Mais estrelas surgem no céu de brigadeiro junto com gritos tristes e a intimidade com a dor, é o desprezo pela benevolência, clemência e compaixão. Vivemos dias de amputação da humanidade.
A tosse rouca, o cheiro dolorido da morte, a penumbra, a desconfiança recompensada, a desforra na delação, as ventanias do medo e da impaciência, o vizinho desaparecido de casa no meio do mar, a passarada que não voa mais por sobre o arvoredo. Um mundo de chumbo. Não existem mais borboletas dançando pelo ar, apenas lagartas arrastando as barrigas pelo chão. Os apitos, os assovios, os balões estão proibidos. O vôo da imaginação até o mundo da lua está sendo acusado de criminoso, é um atentado contra a boa segurança e a boa acomodação de todos. O silêncio e a ordem reunida é o modelo. As lagartas foram aconselhadas a desistirem da própria transformação e não se imaginam mais borboletas. Deixaram de querer o mundo da lua. Aquelas que vieram depois nunca souberam que eram borboletas. Crescem e desaparecem ouvindo que são preguiçosas, muito feias e comilonas. Gente bizarra e feia que não tem que tirar a barriga do chão.
Algumas poucas resistiram, não sabem até quando, mas ainda sonham com o mundo da lua. Durante o dia ficam imobilizadas e à noite saem do saco refúgio como mariposas.
Beijamim fugiu aos tropeços, o mais rápido que as ataduras o permitiram - a procura do oásis para os sonhos - deixou o corpo, essa engrenagem biológica misteriosa com tantos elementos e partes, que não é simples, não é única e existe na mercê do invasor desumano. Alcançou os limites de um lugar acobertado da dor, viajou sem sair da cela. Devaneios. Foram vezes em que o atormentador escutou o nome da terra, na palavra do homem encantado, e quis saber mais
— Quem é Giovana/
— Alguém que inventei com minha alma. — respondeu o homem encantado e voltou para sua enxaqueca. Aos resmungos, sem dentes, sangue e mau humor, o meu representado os desafia com o murmulho das suas palavras de queixas e lamentos
— Não merecem saber de Giovana... — murmura para si mesmo — ... não têm direito de saber dos seus abraços, beijos em labaredas, olhos que desnudam o corpo do amor, pernas perfumadas e pêlos que me entram pela boca, e se passam para fora, pela guerra íntima do intestino. — monstros têm medo do amor
— Espancadores só entendem de intestinos!
Desculpem, senhores juízes, meu desarranjo. De qualquer maneira, o espancador se afasta, não suporta o amorável, a falação aos sentidos. Assim, ela - a mulher terra - se deu ao Beijamim, como uma região coberta de vegetação em meio a um grande deserto se oferece ao viajante que tem sede, deixou-se bebida até o esgotamento daquele que sofreu encantamento. O acolhe em suas entranhas de mãe, em seus carinhos de amante.
Um pequeno anel pertencente ao meu constituinte foi encontrado na porta de meu escritório, pergunto aos senhores juízes desse tribunal militar
— É um recado da sua morte ou que não devo desistir de procurar por Beijamim? Não sei a quem julgamos aqui.
Muitas borrachas não bastam para apagar as vozes, escritas pelos lugares por onde andam a serem ouvidas, nem as borrachadas fazem calar o curso do vozeio, não suportam o reviver dos sonhos e as lembranças. Homens e mulheres lagartas querem as terras sem memórias, têm medo das borboletas, mas eu renuncio a ficar sem lembramento, ouvi e vi Giovana e Beijamim. Adoro repetir, devolver o nome desses dois aos meus ouvidos, é meu jeito de rezar, é a arrumação que encontro da inconfidência das torturas com a sua gente.
Acho que temos que construir um texto bíblico destruindo as formigas e as abelhas, pois sempre são exemplos para dizer que os miseráveis se encontram em estado de lagarta porque trepam e bebem demais e não querem nada com o trabalho
— Mas qual trabalho, senhores juízes? Qualquer trabalho?
Dizem que puxar carroça com papelão, vidro, plásticos, ou restos de comida é trabalho. É bem assim, quando transformam lixo em dinheiro: isso é trabalho, e bem depressa, vira emprego
— Sei não, senhores desse tribunal.
A humanidade constrói e transforma as próprias ferramentas, torna diferente o mundo e ao mesmo tempo transforma a mente, é o raio da consciência. As formigas e abelhas fazem a mesma coisa a milhares de anos. Nossos queridos mestres ou tias, como Vossas Excelências preferirem, deixo ao vosso gosto, transformam as descobertas da ciência em compartimentagem sem significado nenhum. Repetem e sustentam a ordem opressora. Está bem, podemos aceitar essa função reprodutora. São organizadas, ordeiras, altruístas, respeitam a autoridade de seus superiores, constroem colméias e formigueiros, mas deveriam ter um compromisso com a transformação da sociedade, superando conformismos, por isso, Beijamim foi torturado e morto, nunca quis construir colméias e formigueiros subalternos. Precisamos dos sonhadores e sonhadoras: borboletas e cigarras, acreditadoras das pessoas que não querem só comida, mas o mundo da lua. Desejam fazer o amor, sendo apenas o cosmo, a energia, a terra. Estamos na beira do abismo esperando o último vôo do flamingo
— Nós, senhores juízes... as borboletas e as cigarras.
O aprendiz de torturador termina de ler parte do auto de qualificação e interrogatório, sem o corpo presente, processo que leva o número 171, com o depoimento do advogado dos direitos humanos, perante o Conselho de Justiça Militar
—        Mãe, isso tudo não se termina por aqui.
—        Tem mais? — as lágrimas da mãe vazam do transbordamento da sua amargura. Chora pelo filho que perdeu e lhe está ao alcance das vistas e da voz. Derrama as lágrimas do canto fúnebre pela mãe que não mais vê ou ouve o seu filho, desmanchado em alguma caverna — Podia ser meu filho, o filho de qualquer uma...
Este que tortura não lhe conta, é um desconhecido. Não vê, mas sente que entre cordas, banhos de água fria, afogamentos, insônia desacordada, tocos de cigarro, choques elétricos, fezes e urina, ela ouve um desagrado ruidoso, o jovem Beijamim não abre os olhos, nada ouve, apenas lhe persegue a ignorância daquele que o espanca. O aprendiz de manco olha sua mãe, mulher humilhada pela dor e, indiferente àquela dor de mãe, faz falação do final do espancado
— Quem são essas lagartas?
— Gente que te anima porque vive de barriga no chão!
— E eu? — o torturado Beijamim faz um pequeno intervalo, tempo de cuspir o sangue que lhe umedece a boca. É examinado por um doutor, toma-lhe o pulso, Beijamim tira os olhos do chão e encara o maldito secreta, mede o delírio do outro e lhe responde lentamente, com pausas de descanso, com pausas de desespero, com pausas de saudade, com pausas de despedida
— Tu é um pau-mandado manco... e quem mata pelo chefe... um dia vai ter que mostrar a bunda... aí o pau-mandado não tem mais jeito... vai perder serventia
— Cala a boca, mané!
— Vejo borboletas dançando... belas... elegantes...
— Você é um parvo que acredita em borboletas e num mundo novo... me dá pena. O mundo é esse daqui: a imaginação da porrada!
As imagens do relato chegam até Maria Memória, envolta em névoas, as vozes daquele filho doem. É um desconhecido, não é o seu filho
—        Vi quando o mané tornou a virar as costas, isso foi intolerável. Todo amarrado e vira as costas. — a Memória leva as mãos aos ouvidos, até com a desgraça as gente se acostumam facilitando os ouvidos
—        Mãe... a caceteação veio abaixo em seu corpo nu, paulada a paulada, sob a lua cheia dos holofotes. — para um breve instante como a tomar fôlego, é tudo bem simples, o guri quer que a mãe entenda que ele escolheu ser o ferrão -  não quer ser o boi - dá prestígio domesticar homens, aniquilando-os. Escreveu algumas regras que procura aplicar nos seus domínios. Nenhum preso pode ler... nada, assobiar ou cantar nem pensar, só dormem com autorização. Ele acha que está indo bem e segue sua narração
—        Olhava pelo canto do olho para a platéia, estavam por lá, oficiais graduados e alguns cadetes, não podia decepcionar, ninguém recuou, nem o Beijamim. — o suor do batedor escorria nas lágrimas do homem terra, e, da boca impedida de fechar, o grito estava sufocado, inacabado. Bateu descontrolado como ela jamais ousou fazer. Alucinado pela cegueira da força. Confusão pra benzedura nenhuma dar no jeito de curar, eram dias e noites de jaulas, fome e servidão. E ele com essa história para narrar. Ela está com duas cicatrizes em covas desconhecidas
—        O filho-da-puta quase me faz reprovar!
—        Não fala assim, meu filho... reprovar em quê?
—        Esse mané era meu preso cobaia...
Maria Memória não quer mais ouvir, mas não pode mais parar, descobriu que a coragem do filho é a maldade que engole a vida — Que história é essa de preso cobaia?
—        Depois das aulas teóricas... com projeção de slides sobre torturas, precisamos demonstrar na prática.
—        Nos presos?
—        Em quem mais haveria de ser, eles não são gente...
—        Meu Deus!
—        Esse mané do Beijamim me enfrentou... na frente dos outros alunos, gente graúda!
Maria Memória leva as mãos à cabeça, não são dores, mas o aniquilamento – Chega! Chega!
O preso Beijamim saiu do cárcere subterrâneo, úmido e sombrio, no embrulho do pão amarrotado, no papel com letras e sangue, no lixo jogado ao acaso, nas inconfidências dos carcereiros trocadas por migalha de dinheiro
—        Essa é a última vez que falo disso, Maria Memória... — o filho da mãe aprende a ser mais intolerável que o tirano severo. Forma no espírito as palavras de ódio e desprezo por borboletas, gente presa e acorrentada. Repete o dono da sua consciência. O socador manco e míope se obliterou da razão. Bate mais, sempre mais, e os gritos unem outros tantos gritos de mágoa, púrpura aflição física e moral, que lhe navegam pela estrada de chão no tempo.
Como num desencanto encantado de dor, Maria Memória ouve pedidos de socorro que em época nenhuma foram reconhecidos - índios, negros, índias, negras, pobres, escravos, meninos das ruas, escravas, meninas das calçadas, mulheres surradas, violentadas, prostitutas, homossexuais, desempregados, famintos, sem-terra, sem-teto, retirantes, desempregadas, famintas - todos abandonados em silêncio, pelas costas. Deixados pelo caminho como pequenos pedaços de acácia, para queimar pelo sustento do calor. Esses pequenos troncos de madeira cortada ficaram a cozer em fornalha até que se extinguiram reduzidos a cinzas.
Não deixaram nenhum vestígio.
Maria Memória fica encolhida em um canto da sua gaiola.

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Leia também: 
32 - Giovana grita por Beijamim 

34 - Memórias que só existem em mim

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