Becos sem saída - O Manco
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Leia também:
32 - Giovana grita por Beijamim
34 - Memórias que só existem em mim
II
baitasar
A mãe
finge não notar a admiração do filho pela desconhecida, a contrarrevolucionária
Giovana. A curiosidade gelada de agosto. Ela adivinha que o mundo das pessoas cresceu mais que o coração e
inchou de desvios alucinados: perdeu a memória, estacionou desorientado em um
jeito profundo de amortecimento. A Memória menina está se desmanchando naquele
outono prolongado, as suas folhas tornadas amarelas pelas gavetas que se abrem
puxando para dentro, agora caem da boca aberta, a seiva úmida rompe a casca
dura, desce dos olhos até as raízes, inundam tudo na sua volta, os pés ficam
mais dentro da impossibilidade de se removerem daquele pântano, estão
enterrados no emaranhado de vozes que a solicitam. É ela que fixa o chão na sua
volta, não pode se deixar tombar por nenhum vendaval. É a sua própria
sepultura, o jazigo perpétuo da família.
Gostaria
de colocar a Memória no colo e contar algumas histórias, começaria assim: existe
ali - no lago dos pedalinhos - um medo escondido em cavernas. Os mais antigos
contam como um mundo debaixo da terra - Atlantis, nossa potencia naval de
pescadores - se fez no afundamento de uma ilha, tudo aconteceu após um dilúvio
de muitas noites e dias. Aquelas chuvas fizeram que tudo sumisse da superfície
e fosse empurrado em redemoinho para um imenso abismo. As águas encontraram
caminhos em galerias menores e escoaram por ralos até se manterem escorrendo
calmamente em pequenos abrigos submersos. Muitos acreditam, juram de pé junto,
que a cidade se ficou ilesa em uma imensa galeria, abaixo dos pés nervosos que
se vão de um lugar para outro aqui por cima. Aquela gente toda empurrada goela
abaixo da terra veio com o tempo parecer um imenso formigueiro, saúvas humanas,
alongamentos em formas de panelas, tudo muito abaixo das raízes das árvores,
muito abaixo das montanhas, poço muito para baixo esperando que se entenda as
razões para aquela ida à pique, vidas perdidas e desaparecidas apenas pela
vontade daquelas águas insanas, vindas do continente. Restou o medo da erupção
de tanques e soldados marchando, pisando sobre as flores e as ervas do caminho,
avançando a qualquer preço, destruindo o que lhes resistiu à passagem, fazendo da
terra os soluços para executar qualquer gemido de lamentação, afogando em
silêncio, em suas águas fedidas de pólvora, o fim de tudo, a morte. Menina,
isso de hoje, vivido pelo guri, apenas continua os golpes de ontem, parece que
nunca se termina
— Meu filho, calma...
— Mãe, estamos numa guerra longe do fim,
não vamos permitir outra Cuba... precisam sentir a nossa mão pesada. — o garoto
torturador lhe faz retornar a atenção para o gravador, a menina se perde de mim,
está crescida, arraigada nos filhos, é sempre assim, a mãe enraíza
─ Giovana, o mundo está moribundo.
─
Gelatinoso!
─
Abaixo as empresas estrangeiras!
─
É bem assim, os dias e noites ficaram pegajosos e ocos, em desassossego,
qualquer ditadura estraçalha com as pessoas.
─
Precisamos resistir, não pagaremos nossa dívida externa!
─
Querem privatizar nossas universidades!
─ Filhos-da-puta! Só querem mão-de-obra barata!
O
gravador ia aos pulos pra frente e pra trás, o coração da minha menina ia aos
pulos se encorpando de medo, o corpo lhe ardia em febre, ora estava calada e
enfraquecida, ora recitava em murmúrios os cânticos dos orixás da sua gente,
grandes e poderosos, enquanto as conversas daqueles dois desconhecidos lhe
enchiam os ouvidos e desconcertavam os cantos e as rezas, as promessas
─ É uma guerra silenciosa e ainda somos poucos...
─
Precisamos lutar contra a dominação do capital estrangeiro!
─
Ainda aquele que está a brotar por agora, já é apenas outro alimento dessa
gente de privilégios, como o gado a serviço da fome do querer mais, sempre mais.
─
E quando não foi?
─
Estamos tão acostumados que não protestamos mais, já nascemos com a canga e a
marca do ferro em brasa.
─
Mugimos hesitantes.
─ Muuuuuuuuu...
Depois
dessas conversas, o tal Beijamim é encarcerado inúmeras vezes. Estão na busca
da Giovana e decidem que soltam a mão que segura o torturado. Quando soltam o
rapaz, o polícia secreta fica de campana. A armadilha está pronta, mas de nada
adianta: a moça sumiu. Poucos dias depois, ele volta a ser preso e espancado.
Os espancadores acostumam com a mão incondicionada, a truculência e a impaciência
dos primeiros anos são trocadas pela paciência, o entretenimento que separa e
aproxima as partes do mosaico até formar a figura procurada. Brincam de quebrar
cabeças. O despudor da governança cínica se mantém apoiado na cumplicidade dos noticiosos
e no desejo dos buscadores de pequenas vantagens para si. Petiscos pessoais. O
rigor da injustiça apenas para os inimigos, a justiça é destinada aos
desconhecidos - para os amigos: deixa para lá, isso é outra conversa. Enquanto
a moça, Giovana, não é encontrada, o Beijamim vive a morte prometida no
espancamento. Sua possibilidade de fuga é estar em muitos pensamentos.
Memória
passa a viver com a angústia do filho torturador. Quando ouve no rádio que o
corpo de um jovem fora encontrado com as mãos amarradas e sinais de tortura, no
lago dos pedalinhos, sente náuseas. Poderia ser o jovem das gravações e dos
recortes. Faz silêncio. Precisa falar com o filho
— Mãe, o indivíduo fugiu.
— Diz a verdade, meu filho...
— A verdade, mãe? É isso mãe, eu juro!
— Meu filho, quem é esse jovem encontrado
com as mãos amarradas?
— Não sei, mãe... não sei...
— Acho que eu estou sonhando um pesadelo.
Memória
faz sua voz metálica, diz que Supimpa ainda não se fez homem pra enfrentá-la — Diz
a verdade, meu filho! — além disso, ele carrega na lembrança o cheiro do leite
da mãe, ainda não desmamou. O aprendiz pede o seu juramento de segredo no que
vai ouvir. Memória faz silêncio, decide entre a curiosidade de saber das
andanças do seu filho e a fatalidade da mãe que não pode perdoar
— O que a senhora vai ler, nunca aconteceu...
O entendimento não retornou ao corpo do meu constituído
tão cedo. Beijamim foi adormecido de pancadas. Por estes dias de chumbeira e
desatino, muitas histórias são descobertas ao acaso, outras nos vêm pela sua
aparência de desimportante e irrelevante. Mas todas, repito, todas têm uma
importância fundamental, para que possamos entender e julgar não os presos, mas
os seus torturadores. Houve na cela das tortuosidades do meu constituído, um
ventilador descolorido, barulhento, com suas pás num zumbido de asmático, ora
num lado ora noutro, Beijamim, o perdido de suas partes, naquele instante,
torceu pelo ventilante, queria a ventosidade artificial da ventilação. O
socador de cuíca, num gesto de controle, apertou o botão que mantinha o vento
na direita, às vezes, na esquerda, e o tornou em única direção, desviou de
Beijamim a ventania, como tortura, por certo. Criou mais um desespero no socado,
agora, por um pequeno jato de ar, mas seus pensamentos continuavam requeridos
pelo valentão
—
Pára de gritar, seu gordalhaço de merda, come ao exagero descuidado.
—
Não grito pela minha fome.
—
Não conheço nenhum gorducho preocupado com a fome alheia mais que com as
próprias tripas.
Diz
e desfere mais um violento murro na cabeça do meu constituído, que permanece
com as mãos atadas às costas. Sangra pelo nariz e baba o próprio sangue
—
Tenho pressa em denunciar a fome dos miseráveis.
—
Coitado, olha aqui, o gorducho preocupado com a fome do mundo... pura conversa!
Quero nomes! Quero endereços! — outro soco, mais sangue.
Agora,
o amarrado recebe o cacete de borracha no rosto, é um murro que amolece outro
dente, enquanto a baba e o sangue escorrem da boca misturada com o uniforme do
prisioneiro, um saco cinza disforme costurado em tecido grosseiro. Já não sabe
mais qual o seu limite. Tudo é feito para testar a fronteira da vida e o desejo
pela morte. Não dorme, ou nunca mais adormeceu. Não lembra. É preciso
autorização para dormir. É forçoso licença para se matar. O banho só quando o
carcereiro não suporta mais a morrinha do prisioneiro. Jorro de água gelada
direto do mangueirante, tudo para destruir a dignidade e a identidade
—
Ao custo de quantas vidas?
—
Não importa... Quem sabe, a tua se vá amanhã?
—
Quanta vontade por minha vida.
—
Tu tem dono, mané...
—
Tu é um pau-mandado.
— Filho da mãe, não
me encara! Olhando pro chão!
O surrado pelo
punho autoritário fechou os olhos, a boca e o sentido de escutar. A imobilidade
de Beijamim coberta de sangue escorreu pelas paredes azulejadas em esmeraldas,
frias, mudas e cegas, na solidão da caverna. Vazou pelos rejuntes escuros em
caminho até o piso do andar acima, encontrou as paredes de ladrilho vidrado na
cor do enxofre, derramou para cima até o rastro dos comandantes e reforçou o
suco humano escorrido, deformado embaixo de coturnos e sapatos indiferentes,
tudo pisoteado no entreato de sanduíches de mortadela e queijo, refeição
pequena de sobrepasto. O prato principal já estava servido, a carne
desarranjada do Beijamim. Os generais do andar por cima também mancham seus pés
e suas mãos de sangue. Mais socos e choques e odores de suor, mais fome no
pavilhão da libertação. Mais estrelas surgem no céu de brigadeiro junto com
gritos tristes e a intimidade com a dor, é o desprezo pela benevolência,
clemência e compaixão. Vivemos dias de amputação da humanidade.
A tosse rouca, o
cheiro dolorido da morte, a penumbra, a desconfiança recompensada, a desforra
na delação, as ventanias do medo e da impaciência, o vizinho desaparecido de
casa no meio do mar, a passarada que não voa mais por sobre o arvoredo. Um
mundo de chumbo. Não existem mais borboletas dançando pelo ar, apenas lagartas
arrastando as barrigas pelo chão. Os apitos, os assovios, os balões estão
proibidos. O vôo da imaginação até o mundo da lua está sendo acusado de
criminoso, é um atentado contra a boa segurança e a boa acomodação de todos. O
silêncio e a ordem reunida é o modelo. As lagartas foram aconselhadas a
desistirem da própria transformação e não se imaginam mais borboletas. Deixaram
de querer o mundo da lua. Aquelas que vieram depois nunca souberam que eram
borboletas. Crescem e desaparecem ouvindo que são preguiçosas, muito feias e
comilonas. Gente bizarra e feia que não tem que tirar a barriga do chão.
Algumas poucas
resistiram, não sabem até quando, mas ainda sonham com o mundo da lua. Durante
o dia ficam imobilizadas e à noite saem do saco refúgio como mariposas.
Beijamim fugiu aos tropeços, o mais
rápido que as ataduras o permitiram - a procura do oásis para os sonhos -
deixou o corpo, essa engrenagem biológica misteriosa com tantos elementos e
partes, que não é simples, não é única e existe na mercê do invasor desumano.
Alcançou os limites de um lugar acobertado da dor, viajou sem sair da cela.
Devaneios. Foram vezes em que o atormentador escutou o nome da terra, na
palavra do homem encantado, e quis saber mais
— Quem é Giovana/
— Alguém que inventei com minha
alma. — respondeu o homem encantado e voltou para sua enxaqueca. Aos resmungos,
sem dentes, sangue e mau humor, o meu representado os desafia com o murmulho
das suas palavras de queixas e lamentos
— Não merecem saber de Giovana... —
murmura para si mesmo — ... não têm direito de saber dos seus abraços, beijos em
labaredas, olhos que desnudam o corpo do amor, pernas perfumadas e pêlos que me
entram pela boca, e se passam para fora, pela guerra íntima do intestino. — monstros
têm medo do amor
— Espancadores só entendem de
intestinos!
Desculpem, senhores juízes, meu
desarranjo. De qualquer maneira, o espancador se afasta, não suporta o
amorável, a falação aos sentidos. Assim, ela - a mulher terra - se deu ao
Beijamim, como uma região coberta de vegetação em meio a um grande deserto se
oferece ao viajante que tem sede, deixou-se bebida até o esgotamento daquele
que sofreu encantamento. O acolhe em suas entranhas de mãe, em seus carinhos de
amante.
Um pequeno anel pertencente ao meu
constituinte foi encontrado na porta de meu escritório, pergunto aos senhores
juízes desse tribunal militar
— É um recado da sua morte ou que
não devo desistir de procurar por Beijamim? Não sei a quem julgamos aqui.
Muitas borrachas não bastam para
apagar as vozes, escritas pelos lugares por onde andam a serem ouvidas, nem as
borrachadas fazem calar o curso do vozeio, não suportam o reviver dos sonhos e
as lembranças. Homens e mulheres lagartas querem as terras sem memórias, têm
medo das borboletas, mas eu renuncio a ficar sem lembramento, ouvi e vi Giovana
e Beijamim. Adoro repetir, devolver o nome desses dois aos meus ouvidos, é meu
jeito de rezar, é a arrumação que encontro da inconfidência das torturas com a
sua gente.
Acho que temos que construir um texto bíblico destruindo
as formigas e as abelhas, pois sempre são exemplos para dizer que os miseráveis
se encontram em estado de lagarta porque trepam e bebem demais e não querem
nada com o trabalho
— Mas qual trabalho, senhores juízes? Qualquer
trabalho?
Dizem que puxar carroça com papelão, vidro, plásticos,
ou restos de comida é trabalho. É bem assim, quando transformam lixo em
dinheiro: isso é trabalho, e bem depressa, vira emprego
— Sei não, senhores desse tribunal.
A humanidade constrói e transforma as próprias
ferramentas, torna diferente o mundo e ao mesmo tempo transforma a mente,
é o raio da consciência. As formigas e abelhas fazem a mesma coisa a milhares
de anos. Nossos queridos mestres ou tias, como Vossas Excelências preferirem,
deixo ao vosso gosto, transformam as descobertas da ciência em compartimentagem
sem significado nenhum. Repetem e sustentam a ordem opressora. Está bem,
podemos aceitar essa função reprodutora. São organizadas, ordeiras, altruístas,
respeitam a autoridade de seus superiores, constroem colméias e formigueiros, mas
deveriam ter um compromisso com a transformação da sociedade, superando
conformismos, por isso, Beijamim foi torturado e morto, nunca quis construir
colméias e formigueiros subalternos. Precisamos dos sonhadores e sonhadoras:
borboletas e cigarras, acreditadoras das pessoas que não querem só comida, mas o
mundo da lua. Desejam fazer o amor, sendo apenas o cosmo, a energia, a terra.
Estamos na beira do abismo esperando o último vôo do flamingo
— Nós, senhores juízes... as
borboletas e as cigarras.
O aprendiz de torturador termina de ler parte
do auto de qualificação e interrogatório, sem o corpo presente, processo que
leva o número 171, com o depoimento do advogado dos direitos humanos, perante o
Conselho de Justiça Militar
— Mãe,
isso tudo não se termina por aqui.
— Tem
mais? — as lágrimas da mãe vazam do transbordamento da sua amargura. Chora pelo
filho que perdeu e lhe está ao alcance das vistas e da voz. Derrama as lágrimas
do canto fúnebre pela mãe que não mais vê ou ouve o seu filho, desmanchado em
alguma caverna — Podia ser meu filho, o filho de qualquer uma...
Este que tortura não lhe conta, é um
desconhecido. Não vê, mas sente que entre cordas, banhos de água fria, afogamentos,
insônia desacordada, tocos de cigarro, choques elétricos, fezes e urina, ela ouve
um desagrado ruidoso, o jovem Beijamim não abre os olhos, nada ouve, apenas lhe
persegue a ignorância daquele que o espanca. O aprendiz de manco olha sua mãe,
mulher humilhada pela dor e, indiferente àquela dor de mãe, faz falação do
final do espancado
— Quem são essas
lagartas?
— Gente que te anima
porque vive de barriga no chão!
— E eu? — o torturado Beijamim
faz um pequeno intervalo, tempo de cuspir o sangue que lhe umedece a boca. É
examinado por um doutor, toma-lhe o pulso, Beijamim tira os olhos do chão e
encara o maldito secreta, mede o delírio do outro e lhe responde lentamente,
com pausas de descanso, com pausas de desespero, com pausas de saudade, com
pausas de despedida
— Tu é um pau-mandado
manco... e quem mata pelo chefe... um dia vai ter que mostrar a bunda... aí o
pau-mandado não tem mais jeito... vai perder serventia
— Cala a boca, mané!
— Vejo borboletas dançando... belas... elegantes...
— Você é um
parvo que acredita em borboletas e num mundo novo... me dá pena. O mundo é esse
daqui: a imaginação da porrada!
As imagens do relato chegam até Maria
Memória, envolta em névoas, as vozes daquele filho doem. É um desconhecido, não
é o seu filho
— Vi
quando o mané tornou a virar as costas, isso foi intolerável. Todo amarrado e
vira as costas. — a Memória leva as mãos aos ouvidos, até com a desgraça as
gente se acostumam facilitando os ouvidos
— Mãe...
a caceteação veio abaixo em seu corpo nu, paulada a paulada, sob a lua cheia
dos holofotes. — para um breve instante como a tomar fôlego, é tudo bem
simples, o guri quer que a mãe entenda que ele escolheu ser o ferrão - não quer ser o boi - dá prestígio domesticar
homens, aniquilando-os. Escreveu algumas regras que procura aplicar nos seus domínios.
Nenhum preso pode ler... nada, assobiar ou cantar nem pensar, só dormem com
autorização. Ele acha que está indo bem e segue sua narração
— Olhava
pelo canto do olho para a platéia, estavam por lá, oficiais graduados e alguns
cadetes, não podia decepcionar, ninguém recuou, nem o Beijamim. — o suor do
batedor escorria nas lágrimas do homem terra, e, da boca impedida de fechar, o
grito estava sufocado, inacabado. Bateu descontrolado como ela jamais ousou
fazer. Alucinado
pela cegueira da força. Confusão pra benzedura nenhuma dar no jeito de
curar, eram dias e noites de jaulas, fome e servidão. E ele com essa história
para narrar. Ela está com duas cicatrizes em covas desconhecidas
— O filho-da-puta quase me faz reprovar!
— Não fala assim, meu filho... reprovar em
quê?
— Esse mané era meu preso cobaia...
Maria
Memória não quer mais ouvir, mas não pode mais parar, descobriu que a coragem
do filho é a maldade que engole a vida — Que história é essa de preso cobaia?
— Depois das aulas teóricas... com
projeção de slides sobre torturas, precisamos demonstrar na prática.
— Nos presos?
— Em quem mais haveria de ser, eles não
são gente...
— Meu Deus!
— Esse mané do Beijamim me enfrentou... na
frente dos outros alunos, gente graúda!
Maria
Memória leva as mãos à cabeça, não são dores, mas o aniquilamento – Chega!
Chega!
O preso Beijamim
saiu do cárcere subterrâneo, úmido e sombrio, no embrulho do pão amarrotado, no
papel com letras e sangue, no lixo jogado ao acaso, nas inconfidências dos
carcereiros trocadas por migalha de dinheiro
— Essa é a última vez que falo disso,
Maria Memória... — o filho da mãe aprende a ser mais intolerável que o tirano
severo. Forma no espírito as palavras de ódio e desprezo por borboletas, gente
presa e acorrentada. Repete o dono da sua consciência. O socador manco e míope se obliterou da razão. Bate mais, sempre
mais, e os gritos unem outros tantos gritos de mágoa, púrpura aflição física e
moral, que lhe navegam pela estrada de chão no tempo.
Como num
desencanto encantado de dor, Maria Memória ouve pedidos de socorro que em época
nenhuma foram reconhecidos - índios, negros, índias, negras, pobres, escravos,
meninos das ruas, escravas, meninas das calçadas, mulheres surradas,
violentadas, prostitutas, homossexuais, desempregados, famintos, sem-terra,
sem-teto, retirantes, desempregadas, famintas - todos abandonados em silêncio,
pelas costas. Deixados pelo caminho como pequenos pedaços de acácia, para
queimar pelo sustento do calor. Esses pequenos troncos de madeira cortada
ficaram a cozer em fornalha até que se extinguiram reduzidos a cinzas.
Não
deixaram nenhum vestígio.
Maria Memória fica encolhida em um canto da sua gaiola.________________________
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