terça-feira, 14 de agosto de 2012

Giovana grita por Beijamim

Becos sem saída - O Manco


Vivemos em num tempo onde se aplica a justiça e tem-se a embaraçosa impressão de que todos estejam errados. (Giovana, a alma do avesso ao mancador)
I
baitasar
O jovem polícia da secreta continua sentado à cozinha, com sua mãe assombrada pelo medo de tudo que o filho não pode dizer. A aranha vive do que tece e ela, por certo, há de ter entrado com a sua parte nessa embolação em que o filho está metido. Sente que ele lhe escapa. Busca na memória os desacertos da criação que empurrou goela abaixo dos guris. Não tiveram regalias e o que faltou poderia ter faltado, deu para sobreviver. Pensa que o pai do espírito, da carne e do sangue possa ter feito alguma falta, talvez devesse ter insistido um pouco mais nas buscas do homem. A polícia dizia que o jeito do desaparecimento eram sintomas de fuga por rabo de saia. Ela acreditava e desacreditava que o marido de antes tinha outra mulher. Mas precisava colocar a comida na mesa e a hora de comer é a fome. A vontade de comer fez a carne encurtar o luto pelo desaparecido. O vizinho Ogum foi aceito na sua cama e dentro das virilhas. Ela tinha uma alma e calorias que precisavam se aquecer. O negão também estava em tristeza pelo desaparecido da sua Ana, mas dizem os antigos que dor de mulher morta dura até a porta, logo, ele viu graça na Memória e achou um jeito de acomodar o lombo, foi mais fome que vontade de comer. Os dois sabiam que o resto vinha com o tempo, o mesmo tempo que lhe corria contra e mastigava as unhas para descobrir no que o filho se metia
—        Meu filho... conta o que está acontecendo...
—        Não posso, mãe.
—        Aquieta o coração da tua mãe.
—        Não, mãe.
—        Meu filho, não esquece... antes pobre sossegado que rico atrapalhado.
—        Mãe, isso nada tem com dinheiro.
—        Tudo faz volta no dinheiro, meu filho.
Ele não tem por onde começar. Não tem como falar o que acontece. Maria Memória, por sua vez, muito preocupada com os silêncios para as perguntas que faz, decide que inicia hoje mesmo sua própria investigação. Depois do café, Supimpa vai para o seu sono. Por descuido dele e vontade de bisbilhotar dela, encontra dentro de uma pasta, entre papéis carimbados de confidenciais, alguns recortes de jornais. Aquela bolsa chata de couro preto há de pesar com algumas das respostas que o guri não dá. Agitada e com os papéis nas mãos tem um instante de hesitação, mas a decisão já foi tomada. De início começa por ler constrangida
existem, nestes dias de submissão incondicional, homens e mulheres revoltados, coagidos a negarem as ideias de uma outra humanidade possível, são sobreviventes da subversão ao poderio autoritário. Todos que escrevem o contrário da história oficial fazem com seu sangue e suor. Os jornais e revistas, e livrinhos autorizados de escola, não emprestam sua voz aos inconformados. Escondem os castigos ao corpo e punição ao espírito aos opositores do regime ditatorial, idealizadas e colocadas em prática desde 64. Deixam os renegados esculpindo o pão que o diabo amassou, esfomeados, destruindo com dentadas esse pão sem queijo e seco de manteiga. As migalhas da canalhice autoritária são empurradas da mesa do torturador com sonolência. O sangue escorre pelo chão pisoteado e manchado. O manco deformador percebe a fraqueza dos canalhas, basta convocar a Defesa da Segurança Nacional que a vida se submete a personalidade do Estado arrogante. Matam e fazem desaparecer sem
Não entende muito aquelas palavras, mas no bom rumo da verdade, reconhece que não consegue ler com a clareza dos olhos e do juízo da cabeça. Vasculha e pega outro recorte, está tremula e apreensiva, a vantagem de quem sabe está na ignorância de quem não sabe
—        Ai, Jesus Cristinho, olha para isto...
os rebentos de musgos, gente que se multiplica em desatino de não saber o que lhes acontece, seguem guiados como cegos pelos folhetins informativos que escrevem o que esses cegos querem ler. Os canalhas e poderosos vivem inconformados com a possibilidade de um mundo conduzido pelo povo. Gente comum. Tudo tem a sua hora. O chão dessa terra não tem mais voz que essa tremida e espremida, pregada na garganta, mas Giovana grita por Beijamim. Ela é a mulher filha, a mulher mãe, a mulher terra, a mulher que ama apaixonada:
— Beijamim, por onde andam os companheiros e as companheiras que se diziam prontos, em reuniões secretas combativas, intermináveis, para as mudanças do velho para o novo?
— Minha querida Giovana, os vejo dispersos, por aí, desconfortáveis, levando porrada!
A mãe lê sem entender, vai perguntar ao filho, precisa saber se tudo aquilo é coisa ruim. Enquanto espera pelo acordamento do guri, compreende que está sentindo o mesmo desconforto desconhecido daquela noite de anúncios pelo rádio. Tantos anos passados e volta à mesma aflição, o mesmo medo. Precisa lembrar-se de rezar para o padre santo, livrar-se destas injúrias. Não pode esquecer-se de pedir a intervenção dos seus orixás. Essa é uma guerra que a mão não enfrenta sozinha, convoca o auxílio da outra. Enquanto uma é dotada de disposição, a outra mão é feita de coração, juntas precisam ser uma aliagem maciça.
O jovem mancador Supimpa ouve a mãe em silêncio. O autor do recorte do jornal é um tal de Beijamim, chamado assim pelo seu filho, depois de muito custo e insistência da mãe. O guri levanta e vai até aquela pasta preta, revira tudo. Volta com um gravador e uma fita cassete na mão. Instala o equipamento
—        Mãe... se a senhora ta na disposição de saber, tenho gravada as conversa entre essa Giovana e o preso Beijamim, tudo feito antes da gente ter na certeza, como preto no branco, a necessidade de colocar as mãos no vivido. — roda para frente e para trás a fita magnética, procura os trechos que a mãe haveria de ter interesse de escutar, da própria pele não há quem fuja
—        Esse Beijamim não resiste por muito tempo ao nosso jeito de persuadimento.
—        Mas, meu filho, é certo ficar gravando a conversa das pessoas?
—        Tudo autorizado pelo general.
—        General?
—        Mãe, escuta esse pedacinho... — aperta na tecla play e faz sinal de silêncio com o dedo indicador, está debruçado sobre a mesa, não tem jeito, o guri gosta do serviço, dentada de cão se cura com o pelo do próprio cão
— Meu amor, passei o dia pensando em como posso me tornar uma pessoa melhor, não, talvez não tenha sido isso. Passei pensando em como posso ajudar para que as coisas sejam, funcionem melhor. Não, também não foi isso...
Ninguém escuta além da fita magnética e os ouvidos do mancador policial, escondido da própria assombração, desumano da própria vida. Suas almas conversam intocadas da violência. A voz da mulherinha continua
─       ... não, na verdade, percorri de um lado para outro a minha alma apaixonada em amor indisciplinado por ti, enquanto investigava os livros que não li nestes últimos dias e recordei os muitos que já li, na decisão de não perder a confiança em outro mundo, com justiça e solidariedade.
─       Minha adorável otimista...
O aprendiz de torturador aciona a tecla pause e se volta para a Memória, está sério, e não carrega leveza no jeito de falar, sabe que é mais fácil rasgar do que costurar e não tem nenhuma intenção de reparar, faz o que precisa ser feito — Mãe, e daí? Entendeu alguma coisa?
—        Não sei, meu filho, talvez a moça deva esperar de tudo o pior, para que se sinta menos enganada.
—        Ela não tem que se sentir melhor.
—        Assim, com tanta disposição, fracassar a fará sentir-se mal. — o filho não lhe ouve, pressiona a tecla play e a voz do tal Beijamim é ouvida, vem carregada de uma esperança cuja morte é inevitável, afinal alguém como ele nunca fica impune nem para sementeiro
— Eu sempre tenho a sensação que não estou podendo fazer nada para isto, é tudo muito inútil. Precisamos de mais passeatas e greves.
— Apanhar tapas e pancadas não é pouco.
— Pelo menos, quando saio nas ruas, gritando palavras de protesto contra a falta de liberdade, me sinto à frente das baionetas da ditadura.
— Mas, enfim, há que ter esperança nesse tal de mundo novo.
Interrompe novamente a fita magnética
—        Mãe... eles sonham com um tal de homem novo, mulher nova, cidade nova, isso não existe.
—        O amor não consegue desistir do desejo da vida simples.
—        Mãe, por favor... eles são um perigo para tudo que o general acredita.
—        E você, meu filho? Acredita no quê?
—        Acredito no general... — retornam os ouvidos à gravação dos sonhos compartilhados, prestes a serem pulverizados pela pólvora
─ Meu querido, meu querido, a sociedade da simplicidade e das coisas singelas está tão longe.
─ Eu sei, eu sei... tudo que nos faz humanos parece sempre distante das nossas mãos, mas precisamos contagiar os operários pela luta por melhores salários e condições de trabalho.
O tempo passa e Memória quer que Supimpa não se dê na conta disso. Precisa que ele volte a ser o seu menino. Enquanto ficam na escutação daquela fita, o guri está em casa, longe daquilo tudo. Supimpa faz um pequeno avanço na fita, diz que não tem necessidade da mãe escutar tanta baboseira de liberdade, humanidade solidária, amorosa, como se o mundo de verdade pudesse ser diferente, não dá, é assim mesmo, o jeito do mundo é preconceituoso, elitista e desigual — Mãe, quem pode mais, chora menos. — para esse aprendiz de manco as pessoas precisam reforçar a vontade, a prestança é a mãe da prosperidade, ao contrário, a indolência leva a mendicância, e o medo carrega consigo a deduragem — Tem preso que a gente sabe direitinho que botão apertar.
─ Beijamim, se fazemos igual, repetimos a mesma canalhice... em quê somos diferentes?
─ Não sei, Giovana, mas por sensatez, prudência, experiência e asseio moral, com esses não se faz merda alguma de revolução.
─ Contar com quem, se a gente cair?
─ Diga você.
─ Nestes dias, aprendi a contar comigo mesma.
─ Esses desfalecidos de propósito iriam para el paredón da fuzilaria.
─ Como exemplo seriam os primeiros.
─ Gente que não têm cura.
O guri interrompe mais uma vez a gravação, a mãe não precisa ter a sabedoria de tudo, só uns pedaços, uma visão panorâmica da situação, pequenos fragmentos. Aprendeu desde cedo que a escola do mundo é dura, não tem lugar para ignorância do mal
—        De quem eles falam?
—        Dos ratos que abandonam o navio do lado de lá, por essa conversa o general mandou enjaular os dois.
—        Por que, meu filho?
—        Ela é perigosa, como esse tal de Beijamim!
—        Por quê? Isso não tem pé nem cabeça! É loucura!
—        Ela manda matar... — o filho da Memória fica pensativo, em atenção. Tentando adivinhar quem seriam os traidores, quem seria Giovana? Antes cautela que arrependimento, essa ideia da criminosa lhe soa compreensiva, também consegue aceitar essa ideia de preocupação: mudar de intenção é o mesmo que mudar de lado, muda da morte certa, mas ninguém confia mais — Essa é uma contrarrevolucionária do outro lado a ser descoberta e examinada em minúcia.

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31 - Manhãs de Amor 

33 - O socador de cuíca

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