Becos sem saída - O Manco
Vivemos em num tempo onde se aplica a justiça e tem-se a embaraçosa
impressão de que todos estejam errados. (Giovana, a alma do
avesso ao mancador)
I
baitasar
O jovem
polícia da secreta continua sentado à cozinha, com sua mãe assombrada pelo medo
de tudo que o filho não pode dizer. A aranha vive do que tece e ela, por certo,
há de ter entrado com a sua parte nessa embolação em que o filho está metido. Sente
que ele lhe escapa. Busca na memória os desacertos da criação que empurrou
goela abaixo dos guris. Não tiveram regalias e o que faltou poderia ter
faltado, deu para sobreviver. Pensa que o pai do espírito, da carne e do sangue
possa ter feito alguma falta, talvez devesse ter insistido um pouco mais nas
buscas do homem. A polícia dizia que o jeito do desaparecimento eram sintomas
de fuga por rabo de saia. Ela acreditava e desacreditava que o marido de antes
tinha outra mulher. Mas precisava colocar a comida na mesa e a hora de comer é
a fome. A vontade de comer fez a carne encurtar o luto pelo desaparecido. O vizinho
Ogum foi aceito na sua cama e dentro das virilhas. Ela tinha uma alma e
calorias que precisavam se aquecer. O negão também estava em tristeza pelo
desaparecido da sua Ana, mas dizem os antigos que dor de mulher morta dura até
a porta, logo, ele viu graça na Memória e achou um jeito de acomodar o lombo, foi
mais fome que vontade de comer. Os dois sabiam que o resto vinha com o tempo, o
mesmo tempo que lhe corria contra e mastigava as unhas para descobrir no que o
filho se metia
— Meu filho... conta o que está
acontecendo...
— Não posso, mãe.
— Aquieta o coração da tua mãe.
— Não, mãe.
— Meu filho, não esquece... antes pobre
sossegado que rico atrapalhado.
— Mãe, isso nada tem com dinheiro.
— Tudo faz volta no dinheiro, meu filho.
Ele não
tem por onde começar. Não tem como falar o que acontece. Maria Memória, por sua
vez, muito preocupada com os silêncios para as perguntas que faz, decide que inicia
hoje mesmo sua própria investigação. Depois do café, Supimpa vai para o seu
sono. Por descuido dele e vontade de bisbilhotar dela, encontra dentro de uma
pasta, entre papéis carimbados de confidenciais, alguns recortes de jornais. Aquela
bolsa chata de couro preto há de pesar com algumas das respostas que o guri não
dá. Agitada e com os papéis nas mãos tem um instante de hesitação, mas a
decisão já foi tomada. De início começa por ler constrangida
existem,
nestes dias de submissão incondicional, homens e mulheres revoltados, coagidos a
negarem as ideias de uma outra humanidade possível, são sobreviventes da subversão
ao poderio autoritário. Todos que escrevem o contrário da história oficial
fazem com seu sangue e suor. Os jornais e revistas, e livrinhos autorizados de
escola, não emprestam sua voz aos inconformados. Escondem os castigos ao corpo
e punição ao espírito aos opositores do regime ditatorial, idealizadas e
colocadas em prática desde 64. Deixam os renegados esculpindo o pão que o diabo
amassou, esfomeados, destruindo com dentadas esse pão sem queijo e seco de
manteiga. As migalhas da canalhice autoritária são empurradas da mesa do
torturador com sonolência. O sangue escorre pelo chão pisoteado e manchado. O
manco deformador percebe a fraqueza dos canalhas, basta convocar a Defesa da
Segurança Nacional
que a vida se submete a personalidade do
Estado arrogante. Matam e fazem desaparecer sem
Não
entende muito aquelas palavras, mas no bom rumo da verdade, reconhece que não
consegue ler com a clareza dos olhos e do juízo da cabeça. Vasculha e pega
outro recorte, está tremula e apreensiva, a vantagem de quem sabe está na
ignorância de quem não sabe
— Ai, Jesus Cristinho, olha para isto...
os rebentos de musgos, gente que se multiplica em
desatino de não saber o que lhes acontece, seguem guiados como cegos pelos
folhetins informativos que escrevem o que esses cegos querem ler. Os canalhas e
poderosos vivem inconformados com a possibilidade de um mundo conduzido pelo
povo. Gente comum. Tudo tem a sua hora. O chão dessa terra não tem mais voz que
essa tremida e espremida, pregada na garganta, mas Giovana grita por Beijamim. Ela
é a mulher filha, a mulher mãe, a mulher terra, a mulher que ama apaixonada:
—
Beijamim, por onde andam os companheiros e as companheiras que se diziam
prontos, em reuniões secretas combativas, intermináveis, para as mudanças do
velho para o novo?
— Minha querida Giovana, os vejo dispersos, por aí,
desconfortáveis, levando porrada!
A mãe lê
sem entender, vai perguntar ao filho, precisa saber se tudo aquilo é coisa
ruim. Enquanto espera pelo acordamento do guri, compreende que está sentindo o
mesmo desconforto desconhecido daquela noite de anúncios pelo rádio. Tantos
anos passados e volta à mesma aflição, o mesmo medo. Precisa lembrar-se de
rezar para o padre santo, livrar-se destas injúrias. Não pode esquecer-se de
pedir a intervenção dos seus orixás. Essa é uma guerra que a mão não enfrenta
sozinha, convoca o auxílio da outra. Enquanto uma é dotada de disposição, a
outra mão é feita de coração, juntas precisam ser uma aliagem maciça.
O jovem
mancador Supimpa ouve a mãe em silêncio. O autor do recorte do jornal é um tal
de Beijamim, chamado assim pelo seu filho, depois de muito custo e insistência
da mãe. O guri levanta e vai até aquela pasta preta, revira tudo. Volta com um
gravador e uma fita cassete na mão. Instala o equipamento
— Mãe... se a senhora ta na disposição de
saber, tenho gravada as conversa entre essa Giovana e o preso Beijamim, tudo
feito antes da gente ter na certeza, como preto no branco, a necessidade de
colocar as mãos no vivido. — roda para frente e para trás a fita magnética,
procura os trechos que a mãe haveria de ter interesse de escutar, da própria
pele não há quem fuja
— Esse Beijamim não resiste por muito
tempo ao nosso jeito de persuadimento.
— Mas, meu filho, é certo ficar gravando a
conversa das pessoas?
— Tudo autorizado pelo general.
— General?
— Mãe, escuta esse pedacinho... — aperta
na tecla play e faz sinal de silêncio com o dedo indicador, está debruçado
sobre a mesa, não tem jeito, o guri gosta do serviço, dentada de cão se cura
com o pelo do próprio cão
—
Meu amor, passei o dia pensando em como posso me tornar uma pessoa melhor, não,
talvez não tenha sido isso. Passei pensando em como posso ajudar para que as
coisas sejam, funcionem melhor. Não, também não foi isso...
Ninguém escuta
além da fita magnética e os ouvidos do mancador policial, escondido da própria
assombração, desumano da própria vida. Suas almas conversam intocadas da
violência. A voz da mulherinha continua
─ ... não,
na verdade, percorri de um lado para outro a minha alma apaixonada em amor indisciplinado
por ti, enquanto investigava os livros que não li nestes últimos dias e
recordei os muitos que já li, na decisão de não perder a confiança em outro
mundo, com justiça e solidariedade.
─ Minha
adorável otimista...
O
aprendiz de torturador aciona a tecla pause e se volta para a Memória, está
sério, e não carrega leveza no jeito de falar, sabe que é mais fácil rasgar do
que costurar e não tem nenhuma intenção de reparar, faz o que precisa ser feito
— Mãe, e daí? Entendeu alguma coisa?
— Não sei, meu filho, talvez a moça deva esperar
de tudo o pior, para que se sinta menos enganada.
— Ela não tem que se sentir melhor.
— Assim, com tanta disposição, fracassar a
fará sentir-se mal. — o filho não lhe ouve, pressiona a tecla play e a voz do
tal Beijamim é ouvida, vem carregada de uma esperança cuja morte é inevitável,
afinal alguém como ele nunca fica impune nem para sementeiro
— Eu sempre tenho a sensação que não estou podendo
fazer nada para isto, é tudo muito inútil. Precisamos de mais passeatas e
greves.
—
Apanhar tapas e pancadas não é pouco.
—
Pelo menos, quando saio nas ruas, gritando palavras de protesto contra a falta
de liberdade, me sinto à frente das baionetas da ditadura.
— Mas, enfim, há que ter esperança nesse tal de
mundo novo.
Interrompe
novamente a fita magnética
— Mãe... eles sonham com um tal de homem
novo, mulher nova, cidade nova, isso não existe.
— O amor não consegue desistir do desejo
da vida simples.
— Mãe, por favor... eles são um perigo
para tudo que o general acredita.
— E você, meu filho? Acredita no quê?
— Acredito no general... — retornam os
ouvidos à gravação dos sonhos compartilhados, prestes a serem pulverizados pela
pólvora
─ Meu querido, meu querido, a sociedade da simplicidade
e das coisas singelas está tão longe.
─ Eu sei, eu sei... tudo que nos faz humanos parece
sempre distante das nossas mãos, mas precisamos contagiar os operários pela
luta por melhores salários e condições de trabalho.
O tempo
passa e Memória quer que Supimpa não se dê na conta disso. Precisa que ele volte
a ser o seu menino. Enquanto ficam na escutação daquela fita, o guri está em
casa, longe daquilo tudo. Supimpa faz um pequeno avanço na fita, diz que não
tem necessidade da mãe escutar tanta baboseira de liberdade, humanidade
solidária, amorosa, como se o mundo de verdade pudesse ser diferente, não dá, é
assim mesmo, o jeito do mundo é preconceituoso, elitista e desigual — Mãe, quem
pode mais, chora menos. — para esse aprendiz de manco as pessoas precisam reforçar
a vontade, a prestança é a mãe da prosperidade, ao contrário, a indolência leva
a mendicância, e o medo carrega consigo a deduragem — Tem preso que a gente
sabe direitinho que botão apertar.
─ Beijamim, se fazemos igual, repetimos a mesma
canalhice... em quê somos diferentes?
─
Não sei, Giovana, mas por sensatez, prudência, experiência e asseio moral, com
esses não se faz merda alguma de revolução.
─
Contar com quem, se a gente cair?
─
Diga você.
─
Nestes dias, aprendi a contar comigo mesma.
─
Esses desfalecidos de propósito iriam para el paredón da fuzilaria.
─
Como exemplo seriam os primeiros.
─ Gente que não têm cura.
O guri interrompe
mais uma vez a gravação, a mãe não precisa ter a sabedoria de tudo, só uns
pedaços, uma visão panorâmica da situação, pequenos fragmentos. Aprendeu desde
cedo que a escola do mundo é dura, não tem lugar para ignorância do mal
— De quem eles falam?
— Dos ratos que abandonam o navio do lado
de lá, por essa conversa o general mandou enjaular os
dois.
— Por que, meu filho?
— Ela é perigosa, como esse tal de
Beijamim!
— Por quê? Isso não tem pé nem cabeça! É loucura!
— Ela manda matar... — o filho da Memória
fica pensativo, em atenção. Tentando adivinhar quem seriam os traidores, quem seria Giovana?
Antes cautela que arrependimento, essa ideia da criminosa lhe soa compreensiva, também consegue aceitar essa ideia de preocupação: mudar de intenção é o mesmo que
mudar de lado, muda da morte certa, mas ninguém confia mais — Essa é uma contrarrevolucionária do outro lado a ser
descoberta e examinada em minúcia.
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Leia também:
31 - Manhãs de Amor
33 - O socador de cuíca
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