Becos sem saída - Cegante ignorância!
II
baitasar
Num
primeiro combate com o temporal a timbaúva se mantivera em pé. O revestido
de botas nos pés gira e se sai. Tem uma decisão a tomar. Coitada da vida
apressada que deveria ser melhor. Segue o caminho para casa em passadas sem
urgência. Mesmo trajeto, mesmo horário, talvez a mesma intensidade e mesmas
casas, mesmas caras. Tudo normal até aqui, mais um dia sem surpresas na ilha.
Cruza por Dora e sua carroça. Eis aí, uma profissão que não pára de crescer
nesta ilha: catadora de lixo, carroceira, cavalo de carga. É carregada para o
abismo — Não vou pular!
— Não é preciso.
O tempo não
se passou. As histórias têm a mesma aparência. Os negros ficavam lado a lado,
encadeados pelo pescoço.
Depois de percorrerem todo o caminho, uma trilha de mais ou menos quatro
quilômetros, os escravos chegavam ao mercado de vendas e trocas, daí eles
seguiam para lugares completamente desconhecidos. Por isso, o lugar passou a
ser conhecido como o último ponto, o ponto de não retorno. Um lugar de onde os
escravos eram examinados e comprados, não tinha feição de humanidade — Olhem para
os dentes, perfeitos.
— Estou procurando domésticos.
— Esse parece abatido.
— Acabam de chegar... a viagem nos
negreiros é longa, mas logo estarão cantando e dançando.
— Esse parece distraído.
— Eu quero negro pras minas! Não quero pro
canto ou pra a dança, tenho precisão pro trabalho das minas. — desviam atenção
para um vozerio na praça
— O que está acontecendo por lá?
— Uma surra de chicote. Vai ficar com as costas sem pele e
humilhado solenemente no pelourinho, assim conhece de perto todo o peso da
palavra fuga. — outro coitado que fica deitado com a salmoura nas costas, não perde
a imaginação para fugir. Lembrando-se da dor e dos castigos esse não vacila.
Descobre logo os seus únicos direitos: pão, pano e paulada
— Tem nome
esse?
— Negro Canalho! — o negro apanha sem um
gemido
— Eu quero pra uso na plantação! Ele tem
alegria no coração? — o traficante dos escravos retorna ao seu discurso vendedor
— Têm braços fortes.
— Preciso uma preta pros meus confortos...
— Veja por si mesmo, essa carrega bagagem
na cabeça. — o civilizado barbudo e desdentado, cheirando gordura de toucinho, mascava
fumo enquanto combinava negócio. Deu um passo na direção da carga pretendida e
lhe agarrou os peitos, depois as coxas e enfiava a cara bem perto, pra lhe
sentir o cheiro enquanto enfiava a mão bem fundo — Por quanto este lote de pretos?
— Faça uma oferta...
— Troco por fumo e cachaça!
— Faça uma oferta mais forte, ao homem
ousado a fortuna estende a mão.
Cada um é para o que nasce e faz o
que pode...
— Cegante
ignorância vos ilude, ó miseráveis mortais, abri os olhos míopes!
Manualdo
acorda deitado sobre um colchão, continua nu e encapuzado. É a sua vez de ser trocado por fumo ou cachaça. A cuia e o chimarrão
não estão por perto, lhe chegam com os devaneios desesperados. Tem os braços e
pés amarrados, presos ao pescoço. Entre os dedos do pé sente que lhe colocaram
pequenos panos. Ouve seus torturadores combinando as próximas tarefas
— Vamos testar essa chinesa.
— Isso eu quero ver...
— Vem e me ajuda. — molham o
corpo do bugre por diversas vezes, para que a descarga elétrica tenha mais
efeito. Os choques se sucedem
— Esse fica louco ou cura a epilepsia. — não sabe mais quando é dia
ou noite. Decide contar seu tempo de cativeiro. Os dias serão aqueles
destinados ao maior tempo de suplício. Percebe que as noites são muito breves,
pelo menos seu corpo assim reclama. Dias longos com noites resumidas. Num dia qualquer, daqueles
destinados as surras e sevícias, algo diferente acontece. Pela primeira vez,
alguém lhe dirige a palavra
— Meu
Deus, quantos sofrimentos aplicaram neste pobre homem.
— Quem
é o senhor? — o Manualdo rompe a barreira do próprio silêncio, sente vontade de
ceder a tentação: talvez ele possa ajudar, tentar pelo menos — Por favor, o que
eles querem?
— Os
nomes e os endereços de todos os envolvidos no negócio.
— Mas
que negócio?
— Você
sabe...
— Não
sei! — o desconhecido avisa: se ele continua agindo assim não pode ajudar,
aliás, nem deus pode ajudar
— Por
amor de Deus, o que vocês querem? — o sujeito tem a voz doce e cheiro de café
— Os
nomes e os endereços... — ele se esfacela, não tem como responder, não tem
nome, não tem endereço, não tem o que dizer
— Então,
não posso fazer nada.
— Por
favor, não vá!
— Esse
já está pronto. — o barulho seco da porta fechando e a absoluta escuridão e
silêncio trás o terror aos pensamentos de Manualdo. Chora por ele e pela esposa
— Minha preta, ainda estou aqui, vivo... por favor, fique viva...
Pouco a pouco, vai esquecendo-se de
si mesmo e dirige suas preces à mulher, aos filhos. Sente uma imensa e
insuperável saudade. Está em uma daquelas missões jesuíticas, aprendendo os
cristãos, interrompido de dançar e cantar para alcançar a
liberdade. Ela - a sua
Cariciosa - está em um daqueles navios negreiros, expulsa da sua terra,
arrancada da sua gente, desmembrada de seus sonhos. Acorrentada, sem nenhuma
saída. Viaja pra cá, afim de encontrá-lo. É sina, atravessar aquela imensidão
de água para casar com o Manualdo, incivilizado da terra.
O dia recomeça. Os inquisidores chegam
alegres e falantes — Hoje, ele vai para o pau-de-arara. — atravessam uma barra de
ferro entre os punhos amarrados e a dobra dos joelhos do Manualdo. Os homens
colocam-no suspenso entre duas mesas, ficando seu corpo torturado pendurado
alguns centímetros do chão. Lúcido. O sangue circulando. O primeiro
eletro-choque é dado por um telefone de campanha do exército que possui dois
fios longos. Um terminal é ligado ao pênis e o outro num dedo do seu pé. Recebe
descargas sucessivas até perder os sentidos. A vida sumindo. Um médico é
chamado e faz a assistência ao preso. O reanima e atesta que o vivo a ser morto
está pronto. Um dos torturadores, já impaciente com a demora e tantos cuidados,
trás um tubo de borracha e o introduz na boca do Manualdo. Passa a lançar água
pelo tubo. Nesse mesmo momento, uma nova descarga elétrica entra pelo cu e sai
pelo pau, obriga Manualdo a respirar. O afogamento é inevitável. O médico se
aproxima — Deixem-me examiná-lo...
— Ele
ainda está vivo? — Podemos continuar?
— Acho
que sim...
— Vamos
descobrir do que esse é feito por dentro. — enfiam os dois fios desencapados
dentro do bugre — Agora vai ser só pelo cu!
— Hahahahahaha!!!!!!
— o seu próprio sangue é o que pode derramar. As lágrimas já sumiram evaporadas
— Minha
preta, longe de ti me falha todos os pedaços, sou feliz quando estamos junto, tu
faz falta no fim da tarde e no amanhecer. — a noite vem, ou será que é dia que
já chegou? Não importa. Cerra os dentes e fica calado, nunca saberão daquelas
belas tardes: que tardes belas tenho de ti, que cheiros de amor esfrego em mim,
as tuas cores róseas, as umidades, e a paixão toda entregue por tua taça,
derramando as borbulhas do gozo, que tardes belas carrego em mim.
Esquece que pode gritar.
O seu ódio está vestido pelo
silêncio.
Antes de saírem para descansar... cada
um dos torturadores chuta sua cabeça.
__________________________
Leia também:
36 - Quando o esquecimento é vergonha!
38 - Ordens são ordens
__________________________
Leia também:
36 - Quando o esquecimento é vergonha!
38 - Ordens são ordens
Nenhum comentário:
Postar um comentário