sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Troco por fumo e cachaça

Becos sem saída - Cegante ignorância!



II
baitasar
Num primeiro combate com o temporal a timbaúva se mantivera em pé. O revestido de botas nos pés gira e se sai. Tem uma decisão a tomar. Coitada da vida apressada que deveria ser melhor. Segue o caminho para casa em passadas sem urgência. Mesmo trajeto, mesmo horário, talvez a mesma intensidade e mesmas casas, mesmas caras. Tudo normal até aqui, mais um dia sem surpresas na ilha. Cruza por Dora e sua carroça. Eis aí, uma profissão que não pára de crescer nesta ilha: catadora de lixo, carroceira, cavalo de carga. É carregada para o abismo — Não vou pular!
—        Não é preciso.
O tempo não se passou. As histórias têm a mesma aparência. Os negros ficavam lado a lado, encadeados pelo pescoço. Depois de percorrerem todo o caminho, uma trilha de mais ou menos quatro quilômetros, os escravos chegavam ao mercado de vendas e trocas, daí eles seguiam para lugares completamente desconhecidos. Por isso, o lugar passou a ser conhecido como o último ponto, o ponto de não retorno. Um lugar de onde os escravos eram examinados e comprados, não tinha feição de humanidade — Olhem para os dentes, perfeitos.
—        Estou procurando domésticos.
—        Esse parece abatido.
—        Acabam de chegar... a viagem nos negreiros é longa, mas logo estarão cantando e dançando.
—        Esse parece distraído.
—        Eu quero negro pras minas! Não quero pro canto ou pra a dança, tenho precisão pro trabalho das minas. — desviam atenção para um vozerio na praça
—        O que está acontecendo por lá?
—        Uma surra de chicote. Vai ficar com as costas sem pele e humilhado solenemente no pelourinho, assim conhece de perto todo o peso da palavra fuga. — outro coitado que fica deitado com a salmoura nas costas, não perde a imaginação para fugir. Lembrando-se da dor e dos castigos esse não vacila. Descobre logo os seus únicos direitos: pão, pano e paulada
—        Tem nome esse?
—        Negro Canalho! — o negro apanha sem um gemido
—        Eu quero pra uso na plantação! Ele tem alegria no coração? — o traficante dos escravos retorna ao seu discurso vendedor
—        Têm braços fortes.
—        Preciso uma preta pros meus confortos...
—        Veja por si mesmo, essa carrega bagagem na cabeça. — o civilizado barbudo e desdentado, cheirando gordura de toucinho, mascava fumo enquanto combinava negócio. Deu um passo na direção da carga pretendida e lhe agarrou os peitos, depois as coxas e enfiava a cara bem perto, pra lhe sentir o cheiro enquanto enfiava a mão bem fundo — Por quanto este lote de pretos?
—        Faça uma oferta...
—        Troco por fumo e cachaça!
—        Faça uma oferta mais forte, ao homem ousado a fortuna estende a mão.
Cada um é para o que nasce e faz o que pode...
—        Cegante ignorância vos ilude, ó miseráveis mortais, abri os olhos míopes!
Manualdo acorda deitado sobre um colchão, continua nu e encapuzado. É a sua vez de ser trocado por fumo ou cachaça. A cuia e o chimarrão não estão por perto, lhe chegam com os devaneios desesperados. Tem os braços e pés amarrados, presos ao pescoço. Entre os dedos do pé sente que lhe colocaram pequenos panos. Ouve seus torturadores combinando as próximas tarefas
—        Vamos testar essa chinesa.
—        Isso eu quero ver...
—        Vem e me ajuda. — molham o corpo do bugre por diversas vezes, para que a descarga elétrica tenha mais efeito. Os choques se sucedem
—        Esse fica louco ou cura a epilepsia. — não sabe mais quando é dia ou noite. Decide contar seu tempo de cativeiro. Os dias serão aqueles destinados ao maior tempo de suplício. Percebe que as noites são muito breves, pelo menos seu corpo assim reclama. Dias longos com noites resumidas. Num dia qualquer, daqueles destinados as surras e sevícias, algo diferente acontece. Pela primeira vez, alguém lhe dirige a palavra
—        Meu Deus, quantos sofrimentos aplicaram neste pobre homem.
—        Quem é o senhor? — o Manualdo rompe a barreira do próprio silêncio, sente vontade de ceder a tentação: talvez ele possa ajudar, tentar pelo menos — Por favor, o que eles querem?
—        Os nomes e os endereços de todos os envolvidos no negócio.
—        Mas que negócio?
—        Você sabe...
—        Não sei! — o desconhecido avisa: se ele continua agindo assim não pode ajudar, aliás, nem deus pode ajudar
—        Por amor de Deus, o que vocês querem? — o sujeito tem a voz doce e cheiro de café
—        Os nomes e os endereços... — ele se esfacela, não tem como responder, não tem nome, não tem endereço, não tem o que dizer
—        Então, não posso fazer nada.
—        Por favor, não vá!
—        Esse já está pronto. — o barulho seco da porta fechando e a absoluta escuridão e silêncio trás o terror aos pensamentos de Manualdo. Chora por ele e pela esposa — Minha preta, ainda estou aqui, vivo... por favor, fique viva...
Pouco a pouco, vai esquecendo-se de si mesmo e dirige suas preces à mulher, aos filhos. Sente uma imensa e insuperável saudade. Está em uma daquelas missões jesuíticas, aprendendo os cristãos, interrompido de dançar e cantar para alcançar a liberdade. Ela - a sua Cariciosa - está em um daqueles navios negreiros, expulsa da sua terra, arrancada da sua gente, desmembrada de seus sonhos. Acorrentada, sem nenhuma saída. Viaja pra cá, afim de encontrá-lo. É sina, atravessar aquela imensidão de água para casar com o Manualdo, incivilizado da terra.
O dia recomeça. Os inquisidores chegam alegres e falantes — Hoje, ele vai para o pau-de-arara. — atravessam uma barra de ferro entre os punhos amarrados e a dobra dos joelhos do Manualdo. Os homens colocam-no suspenso entre duas mesas, ficando seu corpo torturado pendurado alguns centímetros do chão. Lúcido. O sangue circulando. O primeiro eletro-choque é dado por um telefone de campanha do exército que possui dois fios longos. Um terminal é ligado ao pênis e o outro num dedo do seu pé. Recebe descargas sucessivas até perder os sentidos. A vida sumindo. Um médico é chamado e faz a assistência ao preso. O reanima e atesta que o vivo a ser morto está pronto. Um dos torturadores, já impaciente com a demora e tantos cuidados, trás um tubo de borracha e o introduz na boca do Manualdo. Passa a lançar água pelo tubo. Nesse mesmo momento, uma nova descarga elétrica entra pelo cu e sai pelo pau, obriga Manualdo a respirar. O afogamento é inevitável. O médico se aproxima — Deixem-me examiná-lo...
—        Ele ainda está vivo? — Podemos continuar?
—        Acho que sim...
—        Vamos descobrir do que esse é feito por dentro. — enfiam os dois fios desencapados dentro do bugre — Agora vai ser só pelo cu!
—        Hahahahahaha!!!!!! — o seu próprio sangue é o que pode derramar. As lágrimas já sumiram evaporadas
—        Minha preta, longe de ti me falha todos os pedaços, sou feliz quando estamos junto, tu faz falta no fim da tarde e no amanhecer. — a noite vem, ou será que é dia que já chegou? Não importa. Cerra os dentes e fica calado, nunca saberão daquelas belas tardes: que tardes belas tenho de ti, que cheiros de amor esfrego em mim, as tuas cores róseas, as umidades, e a paixão toda entregue por tua taça, derramando as borbulhas do gozo, que tardes belas carrego em mim.
 Esquece que pode gritar.
O seu ódio está vestido pelo silêncio.
Antes de saírem para descansar... cada um dos torturadores chuta sua cabeça.

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36 - Quando o esquecimento é vergonha! 

38 - Ordens são ordens

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