Becos sem saída - Marijoana sobrevive...
I
baitasar
Aquela
rapariga de corpo mofado e desalinhado, olhar triste, cansado, lábios murchos,
tanto pediu aos passantes agitados - agressivos e escandalosos ou aborrecidos e
ignorantes - que alguém recitou as escrituras daquela placa, abriu o sorriso e deixou
os ouvidos atentos. Era uma vez uma placa presa no poste dos fios da luz, as letras
e as palavras não firmavam na cabeça da Marijoana, os olhos da rapariga não
tinham a serventia de ler, vivia preguiçosa da memória de leitura
— Mercadinho Madalena tem vaga: presiça de
limpesa. — agradece, que por ser miserável não precisa ser mal agradecida. Sai
correndo – e se pudesse estaria voando – para o mercadinho — Esse é meu! Meus
Deus, ajuda que ninguém chegue antes.
Ela durava de
teimosa na vida, esquecida de quase tudo das letras da professorinha Ana, moça
bonita, peituda, letrada nas letras. Não queria lembrar-se de nada daqueles
tempos da fartura de coisa nenhuma, a Dora cuidava de tudo. Quando ficou sem a
Dora entregou as coisas da sua juventude em silêncio e não conseguiu a
tranquilidade do coração, pelo contrário, os passos do tempo provocaram o
tropel de uma cavalgada amargurada, despida de amor, fantasiada com a solidão
desabitada, abandono
— A água dá e a água leva.
Assim, a
menina cresceu culpando as águas pelo afundamento da ilha de Madalena e o
rebaixamento das memórias da sua mãe em quase nada; às vezes sabe quem é Dora,
outras vezes Dora não existiu. As respostas não são fáceis, chegam e ficam por
dentro da cabeça, moendo as minhocas do cérebro, esperando alguém com a
pergunta que abre as portas das lembranças — Dora? Quem é Dora?
A menina não
lembrava, apenas ficava esperando pelas perguntas.
Desde o dia,
em que a filha da papeleira Dora descobriu a chance do emprego, não descansou
até ser admitida como ajudante da higiene. E foi. Está colocada. A sua chance. A
carteira de mulher empregada está quase assinada. Antes precisa demonstrar que
foi feita para limpar: varrer, lavar e secar. Exigências das maneiras de uso da
força dos seus braços e do seu feitio de existir; enquanto descansa dos
pequenos biscates de prostituta. Logo, é ela obrigada recitar o primeiro
mandamento do capitão-do-mato, o seu Divo, dono do mercadinho. O homem a cada
duas coisas que diz, lhe recomenda — A
cabeça com o pensamento pode estar longe, mas a vontade não pode descomparecer
das pernas e dos braços.
Existe entre
as muitas gentes malcontentes com os rumos desta vida. Mas ela não está nem
descontente nem cumprida com a vida. Resignada, ela sobrevive. Fastidiosa. Não
reclama da monotonia. Não lamenta sua sorte de carroça e cama, pequenos
serviços avulsos. Nada é permanente. Faz seu serviço sem muito alarde, quase um
ofício secreto. Indicação de boca a boca, nada de ficar amassando barro de lá
pra cá e daqui pra ali, rodando a bolsinha. Só recebe quem lhe interessa, se
bem que o movimento da freguesia tem diminuído. Está tentando mudança de
hábitos, mas sem muita chance de escapatória, como fazia quando menina,
escolhendo o feijão e separando a sujeira dos grãos. No final de tudo, sempre
levou um bofete da mãe quando ela apertava nos dentes podres alguma pedrinha. Aquela
pressa de separar e não reparar lhe custava uma, às vezes, duas bofetadas sem
réplica e os palavrões da Dora
— E sem choradeira... — repete para si
mesma, como um soldado que precisa sair do esconderijo para caçar seu inimigo,
é bem isso, a desgraça de uns é o bem de outros. Ela é agora mais um soldado na
linha de frente, vestida e armada para atacar a sujeira, destruir o mau cheiro
e a má impressão da imundície — Na guerra é preciso matar para não morrer.
Lutar pela necessidade
da guerra, se você sai na chuva é bem provável que irá se molhar, ela se
apresenta para o serviço de soldada. Esquadrão de vassouras e panos de chão. Esse
é seu primeiro dia de operária, longe da carroça e dos enredos de cama alugada.
Ela é Marijoana: a filha da carroceira que esteve pertinho de afundar com a
ilha de Madalena e foi oferecida por uns poucos tostões como mulher pública de
diversão.
Quase nada lembra do primeiro ao último dia no primário do colégio. Mas não esquece o medo
de afundar. As desconfianças são as mesmas quando começa a chover. O coração
aperta e corre descontrolado. Não sossega até que o aguaceiro definha,
consumido aos poucos, esgotado. O pesadelo é sempre o mesmo, as águas vão
subindo, lhe cobrem a boca, os olhos, ela não se debate, apenas desaparece na
escuridão. Afogada, como deveria ter sido naquela avalanche de 64. Moribunda
que vive as mortes com o coração nas mãos, espremido e desdentado. Segurar a
vassoura está mais fácil que agarrar e tranquilizar os galhos boiando enrolados,
parvos parapeitos daquela gente toda afogada.
Recebe suas
instruções durante uma ligeira conversa com o seu Divo — Marijoana... esse é o
seu nome, certo? — Sim. — Você é uma vassoura uniformizada do mercadinho. — aquela
que faz tudo brilhar: vai e vem invisível. Deixa os caminhos novinhos, com
cheiro de lavanda. Faxineira. Uma estrela que brilha durante o dia. A nova
empregada doméstica do mercado de gêneros alimentícios, coisas de limpeza e asseio,
bebidas e carnes, balas e chocolates, está radiante, mas preocupada. Desconfia
da sua vassoura. Acha que ela não acaba bem o dia. Nenhuma vassoura vai
resistir mais que ela. De qualquer maneira, está encantada, nunca viu tanta
miudeza reunida numa mesma loja de secos e molhados. Um lugar com vários
lugares e que tem um pouquinho de tudo.
Marijoana se
sente puxada no fio a prumo. Revigorada. Finalmente, tem uso de serventia.
Orgulho para os filhos. Comida na mesa. Dinheiro de suor decente. Varre-varre
vassourinha. Neste início de manhã, com o mercadinho ainda vazio, ergue o braço
em
espreguiçamento. Evita um bocejo. Lágrimas escorrem. Mente
pra si mesma — Puro sono.
Entra nos
corredores do mercado sem os engarrafamentos e o trânsito intenso do seu Divo.
Ninguém a reconhece ou observa. Veste seu uniforme camuflado marrom. Vai até a dona
Charmem, a mulher do seu Divo senta na frente da caixa recolhedora do dinheiro,
é o lugar onde as moedas entram em troca das mercadorias que saem — Maria
Joana... — Sim, dona Charmem. — Varre aqui. — faz uma vaporosa passagem nas
duas portas, uma de entrada e a outra de saída. Sente que o chão está pronto
para resistir ao começo do dia. A mulher dona lhe sorri agradecendo, é um bom começo
do dia
— Bom dia, para seu primeiro dia. — leva
um susto, as pessoas não têm por costume lhe dar agrados. Recupera a educação e
resmunga na contra vontade de falar
— Bom dia, dona Charmem, to tão assustada
que qualquer pessoa vai notar. — essa é o olho do dono que engorda o porco. O
marido trata das vendas do balcão e a dona Charmem dá atenção aos pagamentos
das mercadorias, na porta de saída. Ninguém sai sem o pagamento, na porta de
saída as preocupações não são menores — Escuta menina... a gente acostuma com
tudo.
— Pois é... e o dia é novo, tão bonito.
— E você vai poder voar pra cá e lá. — a
patroa parece ser boa gente, mas para Marijoana adular não é um meio de vida —
E as vendas?
— Daqui a pouco começa a correria, é só
esquentar o dia. — Correria? — mediu a mulher da máquina registradora e pensou
— Todo começo é um comecinho. — a outra mediu nossa soldada pelo seu jeito
rápido de varrer e distribuir a limpeza — Essas mulheres sem marido acabam na
faxina. — as portas são levantadas e começa o entra e sai.
A solução
proposta pelo dono do mercado para fazer a freguesa comprar: os preços. Tudo um
centavo mais barato que o menor preço oferecido na vilota da Boa Esperança, se
os produtos não são de qualidade isso não é problema dele. A saída do impasse
com a concorrência é encontrada no preço mais em conta, mais barato. As guerras
são as discussões do troco. A falta de moedas de valor pequeno inspira
desconfiança — O seu Divo quer ganhar na trocação de dinheiro! — lucrar o lucro
e continuar lucrando. A freguesia não quer dar um centavo além do anunciado. As
trombadas dos dias são pelo troco em centavos e levam para longe o espírito da
boa vontade — Pode ser uma bala? — Como assim?
— O troco tá fraco, hoje... — a soldada Marijoana
olha para a medidora do movimento de dinheiro das vendas. Imune ao palavrório das
pessoas, a conta dos tolos quem faz são os vivos — Essa fila não vai andar? —
Estou esperando meu troco! — Aceita uma bala ou pega o vale... — empacam feito
mula.
A fila ganha
vida própria, faz muxoxo e pede ligeireza. Um só corpo. Vítima e algoz. Cansadas
de estarem ali, em pé, aguardando, inchando, irritando, as pessoas falam mal e
reclamam juntas. Todas elas são apenas uma, a próxima vítima da fila — Outro
dia destes, uma senhora fez as compras com uma menina caminhando ao seu lado.
Ao perceber a fila da registradora do dinheiro, sem nenhuma hesitação, pegou a
criança no colo e se foi pra frente. — Safadeza. — Quase sofreu algumas
lambadas pela esperteza com criança e compras. — Essa aprendeu.
Não
conseguimos deixar ninguém passar a nossa frente. Em nada. Mas também, tem
sempre alguém querendo nos passar a frente. Em tudo. Eta vida de lutas
e banalidades. Neste meio tempo, a fila desincha. A vassoura entrega seu melhor
sorriso amarelo e segue deslizando pelos apertados corredores, pouco a pouco
varrendo um pouco, resvalando e desviando, humilde e cuidadosa, tirando o pó
sem escândalos — Cof, cof, cof — não se atormenta com a imaginação. Será a
primeira chegando todos os dias, a última saindo todas as noites. Trabalha para
ela, para o patrão e para a vassoura.
Só tem queixa
da poeira. No empório comercial é deslocada de lá para cá e daqui para ali, na
linha de frente dos combates: a soldada da faxina. Começou o dia em hesitação
de importância, mas sentiu que ainda nem está morta e já é esfolada. É a
transitória que faz tudo. Tem função de ser usada sem descansos. Em todo o
tempo está limpando e carregando, passando o pano de chão, para lá e cá,
sobrevoando o piso empoeirado ou carregando e descarregando mercadorias nas
prateleiras — Muito serviço?
— Muito, mas tem pior. — Onde?
— No
chão do açougue, das verduras e frutas é fora do comum. — conversa rápida com a
filha da organizadora dos pagamentos. Conversa fugida enquanto mede na cabeça
uma das palavras do capitão-do-mato, memória de soldada nunca esquece as ordens
— Dona Marijoana, a intenção é que faz a ação. — o patrão quer dedicação e
inclinação para a limpeza, os requisitos da vaga de soldada da faxina — Trabalha
há muito tempo, por aqui?
— Desde que nasci...
— Meu nome é Marijoana.
— O meu é Diva.
— Você é filha...
— Sou. — o seu Divo manda lá do balcão um
rosnado insalubre e não parece ter preocupação com detalhes da vida de nenhuma
delas, nem tanto da filha e menos da serviçal
— Vocês estão na hora do descanso?
— Não senhor...
— Pois é o que me parece... lembrem-se que
a ocasião faz a preguiçosa. — Marijoana volta a desaparecer entre os corredores
de higiene e massas. Não quer encrenca.
Varre-varre
vassourinha.
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