quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Mercadinho Madalena: presiça de limpesa

Becos sem saída - Marijoana sobrevive...

I
baitasar
Aquela rapariga de corpo mofado e desalinhado, olhar triste, cansado, lábios murchos, tanto pediu aos passantes agitados - agressivos e escandalosos ou aborrecidos e ignorantes - que alguém recitou as escrituras daquela placa, abriu o sorriso e deixou os ouvidos atentos. Era uma vez uma placa presa no poste dos fios da luz, as letras e as palavras não firmavam na cabeça da Marijoana, os olhos da rapariga não tinham a serventia de ler, vivia preguiçosa da memória de leitura
—        Mercadinho Madalena tem vaga: presiça de limpesa. — agradece, que por ser miserável não precisa ser mal agradecida. Sai correndo – e se pudesse estaria voando – para o mercadinho — Esse é meu! Meus Deus, ajuda que ninguém chegue antes.
Ela durava de teimosa na vida, esquecida de quase tudo das letras da professorinha Ana, moça bonita, peituda, letrada nas letras. Não queria lembrar-se de nada daqueles tempos da fartura de coisa nenhuma, a Dora cuidava de tudo. Quando ficou sem a Dora entregou as coisas da sua juventude em silêncio e não conseguiu a tranquilidade do coração, pelo contrário, os passos do tempo provocaram o tropel de uma cavalgada amargurada, despida de amor, fantasiada com a solidão desabitada, abandono
—        A água dá e a água leva.
Assim, a menina cresceu culpando as águas pelo afundamento da ilha de Madalena e o rebaixamento das memórias da sua mãe em quase nada; às vezes sabe quem é Dora, outras vezes Dora não existiu. As respostas não são fáceis, chegam e ficam por dentro da cabeça, moendo as minhocas do cérebro, esperando alguém com a pergunta que abre as portas das lembranças — Dora? Quem é Dora?
A menina não lembrava, apenas ficava esperando pelas perguntas.
Desde o dia, em que a filha da papeleira Dora descobriu a chance do emprego, não descansou até ser admitida como ajudante da higiene. E foi. Está colocada. A sua chance. A carteira de mulher empregada está quase assinada. Antes precisa demonstrar que foi feita para limpar: varrer, lavar e secar. Exigências das maneiras de uso da força dos seus braços e do seu feitio de existir; enquanto descansa dos pequenos biscates de prostituta. Logo, é ela obrigada recitar o primeiro mandamento do capitão-do-mato, o seu Divo, dono do mercadinho. O homem a cada duas coisas que diz, lhe recomenda  —  A cabeça com o pensamento pode estar longe, mas a vontade não pode descomparecer das pernas e dos braços.
Existe entre as muitas gentes malcontentes com os rumos desta vida. Mas ela não está nem descontente nem cumprida com a vida. Resignada, ela sobrevive. Fastidiosa. Não reclama da monotonia. Não lamenta sua sorte de carroça e cama, pequenos serviços avulsos. Nada é permanente. Faz seu serviço sem muito alarde, quase um ofício secreto. Indicação de boca a boca, nada de ficar amassando barro de lá pra cá e daqui pra ali, rodando a bolsinha. Só recebe quem lhe interessa, se bem que o movimento da freguesia tem diminuído. Está tentando mudança de hábitos, mas sem muita chance de escapatória, como fazia quando menina, escolhendo o feijão e separando a sujeira dos grãos. No final de tudo, sempre levou um bofete da mãe quando ela apertava nos dentes podres alguma pedrinha. Aquela pressa de separar e não reparar lhe custava uma, às vezes, duas bofetadas sem réplica e os palavrões da Dora
—        E sem choradeira... — repete para si mesma, como um soldado que precisa sair do esconderijo para caçar seu inimigo, é bem isso, a desgraça de uns é o bem de outros. Ela é agora mais um soldado na linha de frente, vestida e armada para atacar a sujeira, destruir o mau cheiro e a má impressão da imundície — Na guerra é preciso matar para não morrer.

Lutar pela necessidade da guerra, se você sai na chuva é bem provável que irá se molhar, ela se apresenta para o serviço de soldada. Esquadrão de vassouras e panos de chão. Esse é seu primeiro dia de operária, longe da carroça e dos enredos de cama alugada. Ela é Marijoana: a filha da carroceira que esteve pertinho de afundar com a ilha de Madalena e foi oferecida por uns poucos tostões como mulher pública de diversão.
Quase nada lembra do primeiro ao último dia no primário do colégio. Mas não esquece o medo de afundar. As desconfianças são as mesmas quando começa a chover. O coração aperta e corre descontrolado. Não sossega até que o aguaceiro definha, consumido aos poucos, esgotado. O pesadelo é sempre o mesmo, as águas vão subindo, lhe cobrem a boca, os olhos, ela não se debate, apenas desaparece na escuridão. Afogada, como deveria ter sido naquela avalanche de 64. Moribunda que vive as mortes com o coração nas mãos, espremido e desdentado. Segurar a vassoura está mais fácil que agarrar e tranquilizar os galhos boiando enrolados, parvos parapeitos daquela gente toda afogada.
Recebe suas instruções durante uma ligeira conversa com o seu Divo — Marijoana... esse é o seu nome, certo? — Sim. — Você é uma vassoura uniformizada do mercadinho. — aquela que faz tudo brilhar: vai e vem invisível. Deixa os caminhos novinhos, com cheiro de lavanda. Faxineira. Uma estrela que brilha durante o dia. A nova empregada doméstica do mercado de gêneros alimentícios, coisas de limpeza e asseio, bebidas e carnes, balas e chocolates, está radiante, mas preocupada. Desconfia da sua vassoura. Acha que ela não acaba bem o dia. Nenhuma vassoura vai resistir mais que ela. De qualquer maneira, está encantada, nunca viu tanta miudeza reunida numa mesma loja de secos e molhados. Um lugar com vários lugares e que tem um pouquinho de tudo.
Marijoana se sente puxada no fio a prumo. Revigorada. Finalmente, tem uso de serventia. Orgulho para os filhos. Comida na mesa. Dinheiro de suor decente. Varre-varre vassourinha. Neste início de manhã, com o mercadinho ainda vazio, ergue o braço em espreguiçamento. Evita um bocejo. Lágrimas escorrem. Mente pra si mesma — Puro sono.
Entra nos corredores do mercado sem os engarrafamentos e o trânsito intenso do seu Divo. Ninguém a reconhece ou observa. Veste seu uniforme camuflado marrom. Vai até a dona Charmem, a mulher do seu Divo senta na frente da caixa recolhedora do dinheiro, é o lugar onde as moedas entram em troca das mercadorias que saem — Maria Joana... — Sim, dona Charmem. — Varre aqui. — faz uma vaporosa passagem nas duas portas, uma de entrada e a outra de saída. Sente que o chão está pronto para resistir ao começo do dia. A mulher dona lhe sorri agradecendo, é um bom começo do dia
—        Bom dia, para seu primeiro dia. — leva um susto, as pessoas não têm por costume lhe dar agrados. Recupera a educação e resmunga na contra vontade de falar
—        Bom dia, dona Charmem, to tão assustada que qualquer pessoa vai notar. — essa é o olho do dono que engorda o porco. O marido trata das vendas do balcão e a dona Charmem dá atenção aos pagamentos das mercadorias, na porta de saída. Ninguém sai sem o pagamento, na porta de saída as preocupações não são menores — Escuta menina... a gente acostuma com tudo.
—        Pois é... e o dia é novo, tão bonito.
—        E você vai poder voar pra cá e lá. — a patroa parece ser boa gente, mas para Marijoana adular não é um meio de vida — E as vendas?
—        Daqui a pouco começa a correria, é só esquentar o dia. — Correria? — mediu a mulher da máquina registradora e pensou — Todo começo é um comecinho. — a outra mediu nossa soldada pelo seu jeito rápido de varrer e distribuir a limpeza — Essas mulheres sem marido acabam na faxina. — as portas são levantadas e começa o entra e sai.
A solução proposta pelo dono do mercado para fazer a freguesa comprar: os preços. Tudo um centavo mais barato que o menor preço oferecido na vilota da Boa Esperança, se os produtos não são de qualidade isso não é problema dele. A saída do impasse com a concorrência é encontrada no preço mais em conta, mais barato. As guerras são as discussões do troco. A falta de moedas de valor pequeno inspira desconfiança — O seu Divo quer ganhar na trocação de dinheiro! — lucrar o lucro e continuar lucrando. A freguesia não quer dar um centavo além do anunciado. As trombadas dos dias são pelo troco em centavos e levam para longe o espírito da boa vontade — Pode ser uma bala? — Como assim?
—        O troco tá fraco, hoje... — a soldada Marijoana olha para a medidora do movimento de dinheiro das vendas. Imune ao palavrório das pessoas, a conta dos tolos quem faz são os vivos — Essa fila não vai andar? — Estou esperando meu troco! — Aceita uma bala ou pega o vale... — empacam feito mula.
A fila ganha vida própria, faz muxoxo e pede ligeireza. Um só corpo. Vítima e algoz. Cansadas de estarem ali, em pé, aguardando, inchando, irritando, as pessoas falam mal e reclamam juntas. Todas elas são apenas uma, a próxima vítima da fila — Outro dia destes, uma senhora fez as compras com uma menina caminhando ao seu lado. Ao perceber a fila da registradora do dinheiro, sem nenhuma hesitação, pegou a criança no colo e se foi pra frente. — Safadeza. — Quase sofreu algumas lambadas pela esperteza com criança e compras. — Essa aprendeu.
Não conseguimos deixar ninguém passar a nossa frente. Em nada. Mas também, tem sempre alguém querendo nos passar a frente. Em tudo. Eta vida de lutas e banalidades. Neste meio tempo, a fila desincha. A vassoura entrega seu melhor sorriso amarelo e segue deslizando pelos apertados corredores, pouco a pouco varrendo um pouco, resvalando e desviando, humilde e cuidadosa, tirando o pó sem escândalos — Cof, cof, cof — não se atormenta com a imaginação. Será a primeira chegando todos os dias, a última saindo todas as noites. Trabalha para ela, para o patrão e para a vassoura.
Só tem queixa da poeira. No empório comercial é deslocada de lá para cá e daqui para ali, na linha de frente dos combates: a soldada da faxina. Começou o dia em hesitação de importância, mas sentiu que ainda nem está morta e já é esfolada. É a transitória que faz tudo. Tem função de ser usada sem descansos. Em todo o tempo está limpando e carregando, passando o pano de chão, para lá e cá, sobrevoando o piso empoeirado ou carregando e descarregando mercadorias nas prateleiras — Muito serviço?
—        Muito, mas tem pior. — Onde?
 —       No chão do açougue, das verduras e frutas é fora do comum. — conversa rápida com a filha da organizadora dos pagamentos. Conversa fugida enquanto mede na cabeça uma das palavras do capitão-do-mato, memória de soldada nunca esquece as ordens — Dona Marijoana, a intenção é que faz a ação. — o patrão quer dedicação e inclinação para a limpeza, os requisitos da vaga de soldada da faxina — Trabalha há muito tempo, por aqui?
—        Desde que nasci...
—        Meu nome é Marijoana.
—        O meu é Diva.
—        Você é filha...
—        Sou. — o seu Divo manda lá do balcão um rosnado insalubre e não parece ter preocupação com detalhes da vida de nenhuma delas, nem tanto da filha e menos da serviçal
—        Vocês estão na hora do descanso?
—        Não senhor...
—        Pois é o que me parece... lembrem-se que a ocasião faz a preguiçosa. — Marijoana volta a desaparecer entre os corredores de higiene e massas. Não quer encrenca.
Varre-varre vassourinha.

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