Becos sem saída - Cala a boca!
II
baitasar
Manualdo
sai aos assobios, dando pistas que o seu apetite vai voltar logo
— O meu apetite está em casa. — repete
para si mesmo, o olhar sorri com a trama de surpresa se preparando para sua Cariciosa. Monta
na bicicleta e pedala. Vai com a andadura do apressamento, as pernas giram as
hélices dos pedais, é um barco veloz que salta sobre as ondas. O tempo é apertado
para chegar na hora marcada, se não chega no tempo fica sem o presente. Põe
mais rapidez na bicicleta, agora precisa de aceleração por razão do seu esquecimento.
Ainda mais que tinha dado sinal de intenção do negócio, não podia perder essa
arrumação depois de tudo arranjado. O índio jaguara pedala pensando que o rapaz
vendedor parece muito precisado do dinheiro, pois a compra lhe tinha saído
quase de graça, se comparado com o preço do magazine. Aliás, foi tudo rápido e
estranho. Lembra-se de comentar com o Pimentel a sua vontade de comprar uma
bicicleta pra mulher. Na saída dos empilhamentos já tinha um camarada
oferecendo o maquinário — Tu é o Manualdo?
— Quem quer saber?
— Tenho uma bicicleta pra vender...
— É essa?
— É... ta interessado? — ali mesmo fizeram
o negócio que não podia deixar escapar oportunidade de preço tão bom de barato.
Encomendou as cadeirinhas pras crianças que não tinha graça sair de passeio com
a sua preta e deixar as crianças em casa. Já lhe bastava viver longe da sua
gente nas horas do trabalho, nas oportunidades do turismo ficavam todos juntos
— Quero levar as crianças nos passeios.
— A gente dá um jeito, mas leva um pouco
mais de tempo...
— Então, deixamos tudo para o outro sábado.
— Combinado. — o bugre gosta de negócio
rápido, sem demora de decisão.
Não sabe
como foi esquecer do encontro para retirar a mercadoria. Apressa o que já é frenético.
Quando chega ao local combinado o outro continua na espera — Finalmente, pensei
que o senhor tinha desistido.
— É essa?
— Como a gente combinou, com cadeirinha de
bebê...
— E a outra cadeirinha?
— Aqui no embrulho. — abriu o seu sorriso
de contentamento enquanto o suor lhe corria da testa até a ponta do nariz e
molhava o chão que pisavam — Tudo bem, negócio fechado.
— Gostei, meu camarada.
— Até outro dia qualquer, meu senhor. — os
dois se afastam. Seguem seus caminhos diferentes. Manualdo vem pedalando.
Experimenta a bicicleta recém-comprada no troco de quase nada, reboca a sua e pensa
com seus botões — Coitado... me sinto mal com esse negócio tão bom, esse estava
muito necessitado pra vender por tão pouco.
Quando
chega, passa pela Avó que lhe faz um aceno de nenhum entusiasmo. A sogra por
estes tempos tem ficado a manter silêncio de conversa. As crianças falam de lamentação
caindo dos olhos. Manualdo se mantém desconfiado que a Avó se meteu a saborear
bebida mais encorpada que água. O aroma é de vinho, mas em fim, o tempo se
mostra em cada um. Outro dia tentou iniciar conversa com a Cariciosa — Minha
preta, a tua mãe anda com uns silêncios esquisitos.
— Eu também tenho tomado nota.
— O que está errado?
— Não sei, tem ficado mais em silêncio que
o costume. — ainda tem na memória o olhar preocupado da filha com a mãe. Depois
destes comentários com a esposa, eles recuaram do assunto. Agora, na passagem
pela tristeza da mulher fica com convencimento que algo acontece com a Avó. A
língua não está toda enrolada, mas o aroma lhe sai todo perfumado das uvas — Índio
bão, esse que minha filha tem...
— Obrigado, Avó. — não para, não tem
necessidade de criar constrangimento na Avó. Na chegada aos fundos, dá um forte
assovio — Minha preta!
— O que é?
— Vem até aqui fora!
— Agora, não posso. — o bugre não desiste
da sua insistência — Por favor, minha preta... — caídos alguns minutos do tempo
de espera, a Cariciosa aparece toda séria, enrolada em avental branco molhado
da lavação de prato: secando as mãos num dos seus cantos
— Feliz aniversário! — o bugre sabe que acertou
na escolha do presente, sente que a sua preta está contente e desgovernada com
as águas dos olhos, faz força de preocupação — A gente não pode com esses
gastos.
— Minha preta, agora já podemos sair a
passear com os gêmeos, cada um em uma gaiola. — a jovem segura o guidom
enquanto examina a compra. Pensa em fazer olhar de desagrado com a comprada,
mas não consegue, adora ser mimada na surpresa... adora ser amada, não consegue
se controlar – Adorei!
— Minha preta, foi preço de ocasião,
podemos passear pela ilha...
— Te amo, te amo, te amo! — acomoda a
cadeirinha em sua bicicleta. A Cariciosa entra na casa tirando o avental da
lavação. Depois de tudo assegurado e averiguado e apertado, colocam as crianças
nas gaiolas de passageiro e saem para o passeio inaugural. O menino Abelaira
vai com o pai e a menina Futuro passeia com a mãe. Manualdo fica um pouco
atrás. Na saída do cercado, ouvem as recomendações da Avó — Cuidado com as minhas crianças!
— Não se preocupe, mamã! — o cheiro das
uvas está mais forte.
O
entardecer da luz descolorindo naquele arco-íris é acontecimento para aquele
passeio. Sem vento, apenas com aquelas cores tão fortes do outono. O calor
azulado ia diminuindo e amaralecendo, até envolver o sol em uma imensa bola de
trapo vermelha, deixando o firmamento que se põe enfeitiçado. O calor do dia
vai diminuindo na medida em que o sol se esconde atrás da vermelhidão do céu. Manualdo
tem certeza que os céus se avermelham porque se envergonham das safadezas que
pretende com a sua Cariciosa. Aquela que aniversaria olha para trás: procura o
marido. Ele pensa que tem vezes que é até bom não ler o pensamento um do outro
— Que vermelho é esse na cara, Manualdo?
— É o coração correndo na frente das
pernas! — o marido olhando as carnes da mulher abocanharem o selim, bem do
jeito que adora se fazer de desaparecido, a chicha bem esticada e toda dentro...
sumida do próprio corpo pela ganância dos dois. Sente os arrepios de vontade da
mulher — Eta, mulher gostosona. — resmunga entre dentes, avisa aos ouvidos: o
formigamento das virilhas que lhe sobe até a língua. O bugre ta se achando um
tarado, se bem que controlado, mas de qualquer jeito um comilão anormal na
profissão de marido. Ninguém sacramentado de esposo sai por ai querendo
manducar a própria mulher toda hora de maneira desavergonhada, isso é uma
aberração. Não existe. Ninguém há de acreditar nessa contação.
Os
quatro saem da vila, se vão pelas ruas de pouco uso, até chegar na praça dos
pedalinhos. O lugar está acobertado de pessoas. Dão algumas voltas na volta do
lago e seguem pelas ruas do outro lado. O caminho dos abonados. Cariciosa
pedala com seu sorriso de agradecimento — É tudo que sempre pedi a Deus e ao
padre Santo. — retornam já no escurecer. Manualdo já sonha com a sua noite de
amor e desaparecimentos. Cariciosa prepara o jantar para os quatro. Comida
simples. Arroz e feijão. Uma carne assada como reforço e uma salada de agrião.
Servem às crianças q-suco de laranja e abrem uma garrafa de cerveja - gelada
para o almoço de domingo - mas que a sede os convida para brindarem naquela
noite de sábado.
Depois
do jantar tem a lavação dos pratos e dos talheres, as crianças já dormem. Começam
os preparativos para as promessas da noite, quando a luz das lâmpadas se apagará
e a escuridão da noite chegará no galope. A luz da energia do poste apaga.
Ficam nas escuras. Precisam acender o lampião escondido embaixo da pia para
essas emergências de desalento. Os dois se abaixam e procuram pela lamparina de
querosene — Achei...
— Minha preta, estou procurando s fósforos.
— Deixei em cima do fogão.
— Encontrei. — o Manualdo risca um fósforo
e uma claridade instantânea descobre um para o outro. Cariciosa ergue o vidro e
o marido acende a chama do pavio encharcado de petróleo — Socorro... — ouvem
gritos abafados. Pensam nas crianças
— Socorro! — os chamados parecem vir da
Avó e assustam pelo desespero — Por favor, não!
Saem
correndo. A lanterna de destilado de petróleo fica esquecida na mesa dos pratos
lavados. O aniversário na luz do lampião. Manualdo vai à frente e na sua
perseguição vem Cariciosa, mas não têm tempo de maiores correrias, caem depois
de cruzarem com um sarrafo posto a frente de sua porta. Enquanto rolam pelo
chão sentem mãos graúdas que os imobilizam. A jovem faz intenção de gritar, não
consegue. A mão de um dos agressores a deixa muda com a violência do tapa que
recebe. Os dois são agarrados pelos cabelos e arrastados por sombras imensas
até a casa da frente. Entram aos empurrões, rolando pela escuridão. Lanternas
de pilhas brilham empurradas aos seus olhos. Cegam. Ogum é agredido, leva um
pau arrebatado. Socos, cuteladas, encontrões, a cabeça soqueada contra a
parede. Pegam Maria Memória pelos cabelos e a obrigam tirar toda a roupa.
Cariciosa agradece a escuridão, menos uma humilhação para sua mamã — Por que
vocês estão fazendo isso?
— Cala a boca!
— Cada um colhe conforme semeia... — havia
um cardume de homens dentro da casa. Levam a mais velha para um dos carros e a
jogam deitada nua... no chão do veículo. Ali, tem na memória, pelo sangue que
derrama, todo o sofrimento que viveram seus negros escravizados. As cores em
preto e branco daqueles choros de submissão às correntes não tinham desaparecido.
O coração lhe diz que está sendo jogada em um navio negreiro e não irá voltar. Não
sabe como ficaram suas crianças, precisa dar atenção de despedida. Não há mais
tempo. Fazem o mesmo com Ogum em outro carro. Saem com os dois. Na casa da
frente ficam Cariciosa e Manualdo. Algemam os dois e rasgam suas roupas — Macaco
vestido é sempre macaco!
Silêncio.
Não sabem o que dizer.
Os donos
dos porretes não falam.
Duas
lamparinas foram acessas e mostram com sua cor amarelo esverdeada e trêmula o
sangue e o desespero que escorre chão adentro quando entram com os gêmeos.
Cariciosa grita o seu desespero. Enfiam em suas bocas buchas de jornal. Sentem
o gosto da tinta que lhes escorre pela garganta. O ar entra e sai descontrolado,
mas sempre pouco. Afogado. A mãe mais se parece com um canhão prestes a
explodir em ódio. O menino Abelaira ainda não abriu bem os olhinhos, mas a menina
Futuro já vem aos berros. Os dois são amontoados junto da tia Destino. Todos
choram juntos a própria angústia e sofrimento, em cada um e em todos.
Os
gêmeos da Memória estão escondidos no galinheiro. Agarrados um ao outro. Ali,
do cárcere de chão batido ouvem os pedidos de súplica do cunhado e da irmã. As
crianças choram, foram empurradas para um canto da sala da televisão. Não
entendem. Ninguém compreende. Nem os animais compreendem. Os bichos do
galinheiro fazem silêncio enquanto os bichos do andar de cima gritam ameaças.
Os guris lembram-se das histórias do lobo mau para acalmar as bichanas. Quando
os miúdos terminam sua historieta os lobos ruins são castigados e todos vivem
felizes para sempre.
Cariciosa
e Manualdo são empurrados frente a frente. As suas bocas e aquelas buchas de
jornal ensanguentadas. Trazem uma bacia com água. Enfiam os pés dos dois acorrentados
naquela água fria. Com pedaços de fios ligados em um aparelhamento, passam a
aplicar choques — Filha de peixe, peixinho é...
— Cabelo ruim e bandido é sempre assim...
ta na cadeia ou anda armado. — um dos homens pegou a menina Futuro pelos pés e a
levou até a janela. A filha daqueles dois amarrados e amordaçados fica de cabeça
para baixo, segura pelas canelas fininhas, aos gritos — Mamã, mamã! — estendia
os bracinhos para Cariciosa. O filho-da-puta do galo-enfeitado, indiferente aos
choros, grita para aquela mãe e aquele pai — Olhem para cá!
Os dois
olham em desespero para Maria Futuro e cravam a vista nas mãos que empunham sua
filhinha — Vocês vão dar um passeio com a gente, se, escutem bem, se não contarem
direitinho tudo que sabem, a gente volta aqui, nessa espelunca e solta a menina.
Outro
que parece gostar da escuridão, pois não aparece na luz das estrelas, diz com
uma voz que parece querer disfarçar — Mãezinha, não se preocupem se cair... do
chão não passa. — nem bem termina o desaforo e o segurador larga a menina na
direção do chão de concreto da Maria Memória. Os olhos gritavam com a força da
alma, enquanto a garganta recheada de pano mandava urros perdidos. Não se ouvem
mais os choros. Aquele silêncio despedaça suas vontades de resistir. Mais um
choque pelos fios. A menina reaparece nos braços de outro polícia. O homem
entra na casa com o seu sorriso hiena. Óculos escuros com armação dourada e um
palito entre os dentes. Coloca a menina Futuro com Abelaira e Destino
— Na próxima vez, talvez, a garotinha não
tenha tanta sorte... — na cena de horror seguinte, levam os dois, encapuzados,
nus e aos empurrões, até um carro. Depois de muito rodarem são deixados em um
quarto sem luz, escuro de qualquer vida. Continuam amordaçados e amarrados
pelas mãos. Uma pequena trégua dos gritos, tapas e choques. Manualdo chora, ele
sabe que precisa da voz para suplicar ajuda. Assim, amordaçados e escondidos no
escuro, não serão achados pelo Deus-nos-acuda.
O
silêncio é rompido pela algazarra de muitas vozes. Alegres. Parecem
participarem de um mocotó de quermese. Pelo sopro de ar sabem que alguma porta
se abriu. São arrastados até uma mesa. Manualdo é colocado deitado sobre a mesa
de metal fria. Sente calafrios. Cariciosa é colocada deitada sobre ele. E,
assim, ficam. O tempo inventado deixa de existir. Só existem pelas lágrimas que
lhes escorrem e se confundem. Continuam misturados. Vivos, por enquanto — Chega
de namoro!
Cariciosa
é puxada para o chão. Cai de barriga, a cabeça lhe sangra por mais um corte, é
arrastada para outra sala de tormentos desumanos. No corredor passa por outras
portas. Num desses momentos de lucidez, reconhece uma voz resmungando — Comunistas
desgraçados!
Sabia
que ela e sua mãe nunca mais se veriam.
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Leia também:
34 - Memórias que só existem em mim
36 - Quando o esquecimento é vergonha!
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