terça-feira, 21 de agosto de 2012

Comunistas desgraçados!


Becos sem saída - Cala a boca!
II
baitasar


Manualdo sai aos assobios, dando pistas que o seu apetite vai voltar logo
—        O meu apetite está em casa. — repete para si mesmo, o olhar sorri com a trama de surpresa se preparando para sua Cariciosa. Monta na bicicleta e pedala. Vai com a andadura do apressamento, as pernas giram as hélices dos pedais, é um barco veloz que salta sobre as ondas. O tempo é apertado para chegar na hora marcada, se não chega no tempo fica sem o presente. Põe mais rapidez na bicicleta, agora precisa de aceleração por razão do seu esquecimento. Ainda mais que tinha dado sinal de intenção do negócio, não podia perder essa arrumação depois de tudo arranjado. O índio jaguara pedala pensando que o rapaz vendedor parece muito precisado do dinheiro, pois a compra lhe tinha saído quase de graça, se comparado com o preço do magazine. Aliás, foi tudo rápido e estranho. Lembra-se de comentar com o Pimentel a sua vontade de comprar uma bicicleta pra mulher. Na saída dos empilhamentos já tinha um camarada oferecendo o maquinário —  Tu é o Manualdo?
—        Quem quer saber?
—        Tenho uma bicicleta pra vender...
—        É essa?
—        É... ta interessado? — ali mesmo fizeram o negócio que não podia deixar escapar oportunidade de preço tão bom de barato. Encomendou as cadeirinhas pras crianças que não tinha graça sair de passeio com a sua preta e deixar as crianças em casa. Já lhe bastava viver longe da sua gente nas horas do trabalho, nas oportunidades do turismo ficavam todos juntos — Quero levar as crianças nos passeios.
—        A gente dá um jeito, mas leva um pouco mais de tempo...
—        Então, deixamos tudo para o outro sábado.
—        Combinado. — o bugre gosta de negócio rápido, sem demora de decisão.
Não sabe como foi esquecer do encontro para retirar a mercadoria. Apressa o que já é frenético. Quando chega ao local combinado o outro continua na espera — Finalmente, pensei que o senhor tinha desistido.
—        É essa?
—        Como a gente combinou, com cadeirinha de bebê...
—        E a outra cadeirinha?
—        Aqui no embrulho. — abriu o seu sorriso de contentamento enquanto o suor lhe corria da testa até a ponta do nariz e molhava o chão que pisavam — Tudo bem, negócio fechado.
—        Gostei, meu camarada.
—        Até outro dia qualquer, meu senhor. — os dois se afastam. Seguem seus caminhos diferentes. Manualdo vem pedalando. Experimenta a bicicleta recém-comprada no troco de quase nada, reboca a sua e pensa com seus botões — Coitado... me sinto mal com esse negócio tão bom, esse estava muito necessitado pra vender por tão pouco.
Quando chega, passa pela Avó que lhe faz um aceno de nenhum entusiasmo. A sogra por estes tempos tem ficado a manter silêncio de conversa. As crianças falam de lamentação caindo dos olhos. Manualdo se mantém desconfiado que a Avó se meteu a saborear bebida mais encorpada que água. O aroma é de vinho, mas em fim, o tempo se mostra em cada um. Outro dia tentou iniciar conversa com a Cariciosa — Minha preta, a tua mãe anda com uns silêncios esquisitos.
—        Eu também tenho tomado nota.
—        O que está errado?
—        Não sei, tem ficado mais em silêncio que o costume. — ainda tem na memória o olhar preocupado da filha com a mãe. Depois destes comentários com a esposa, eles recuaram do assunto. Agora, na passagem pela tristeza da mulher fica com convencimento que algo acontece com a Avó. A língua não está toda enrolada, mas o aroma lhe sai todo perfumado das uvas — Índio bão, esse que minha filha tem...
—        Obrigado, Avó. — não para, não tem necessidade de criar constrangimento na Avó. Na chegada aos fundos, dá um forte assovio — Minha preta!
—        O que é?
—        Vem até aqui fora!
—        Agora, não posso. — o bugre não desiste da sua insistência — Por favor, minha preta... — caídos alguns minutos do tempo de espera, a Cariciosa aparece toda séria, enrolada em avental branco molhado da lavação de prato: secando as mãos num dos seus cantos
—        Feliz aniversário! — o bugre sabe que acertou na escolha do presente, sente que a sua preta está contente e desgovernada com as águas dos olhos, faz força de preocupação — A gente não pode com esses gastos.
—        Minha preta, agora já podemos sair a passear com os gêmeos, cada um em uma gaiola. — a jovem segura o guidom enquanto examina a compra. Pensa em fazer olhar de desagrado com a comprada, mas não consegue, adora ser mimada na surpresa... adora ser amada, não consegue se controlar – Adorei!
—        Minha preta, foi preço de ocasião, podemos passear pela ilha...
—        Te amo, te amo, te amo! — acomoda a cadeirinha em sua bicicleta. A Cariciosa entra na casa tirando o avental da lavação. Depois de tudo assegurado e averiguado e apertado, colocam as crianças nas gaiolas de passageiro e saem para o passeio inaugural. O menino Abelaira vai com o pai e a menina Futuro passeia com a mãe. Manualdo fica um pouco atrás. Na saída do cercado, ouvem as recomendações da Avó  — Cuidado com as minhas crianças!
—        Não se preocupe, mamã! — o cheiro das uvas está mais forte.
O entardecer da luz descolorindo naquele arco-íris é acontecimento para aquele passeio. Sem vento, apenas com aquelas cores tão fortes do outono. O calor azulado ia diminuindo e amaralecendo, até envolver o sol em uma imensa bola de trapo vermelha, deixando o firmamento que se põe enfeitiçado. O calor do dia vai diminuindo na medida em que o sol se esconde atrás da vermelhidão do céu. Manualdo tem certeza que os céus se avermelham porque se envergonham das safadezas que pretende com a sua Cariciosa. Aquela que aniversaria olha para trás: procura o marido. Ele pensa que tem vezes que é até bom não ler o pensamento um do outro — Que vermelho é esse na cara, Manualdo?
—        É o coração correndo na frente das pernas! — o marido olhando as carnes da mulher abocanharem o selim, bem do jeito que adora se fazer de desaparecido, a chicha bem esticada e toda dentro... sumida do próprio corpo pela ganância dos dois. Sente os arrepios de vontade da mulher — Eta, mulher gostosona. — resmunga entre dentes, avisa aos ouvidos: o formigamento das virilhas que lhe sobe até a língua. O bugre ta se achando um tarado, se bem que controlado, mas de qualquer jeito um comilão anormal na profissão de marido. Ninguém sacramentado de esposo sai por ai querendo manducar a própria mulher toda hora de maneira desavergonhada, isso é uma aberração. Não existe. Ninguém há de acreditar nessa contação.
Os quatro saem da vila, se vão pelas ruas de pouco uso, até chegar na praça dos pedalinhos. O lugar está acobertado de pessoas. Dão algumas voltas na volta do lago e seguem pelas ruas do outro lado. O caminho dos abonados. Cariciosa pedala com seu sorriso de agradecimento — É tudo que sempre pedi a Deus e ao padre Santo. — retornam já no escurecer. Manualdo já sonha com a sua noite de amor e desaparecimentos. Cariciosa prepara o jantar para os quatro. Comida simples. Arroz e feijão. Uma carne assada como reforço e uma salada de agrião. Servem às crianças q-suco de laranja e abrem uma garrafa de cerveja - gelada para o almoço de domingo - mas que a sede os convida para brindarem naquela noite de sábado.
Depois do jantar tem a lavação dos pratos e dos talheres, as crianças já dormem. Começam os preparativos para as promessas da noite, quando a luz das lâmpadas se apagará e a escuridão da noite chegará no galope. A luz da energia do poste apaga. Ficam nas escuras. Precisam acender o lampião escondido embaixo da pia para essas emergências de desalento. Os dois se abaixam e procuram pela lamparina de querosene — Achei...
—        Minha preta, estou procurando s fósforos.
—        Deixei em cima do fogão.
—        Encontrei. — o Manualdo risca um fósforo e uma claridade instantânea descobre um para o outro. Cariciosa ergue o vidro e o marido acende a chama do pavio encharcado de petróleo — Socorro... — ouvem gritos abafados. Pensam nas crianças
—        Socorro! — os chamados parecem vir da Avó e assustam pelo desespero — Por favor, não!
Saem correndo. A lanterna de destilado de petróleo fica esquecida na mesa dos pratos lavados. O aniversário na luz do lampião. Manualdo vai à frente e na sua perseguição vem Cariciosa, mas não têm tempo de maiores correrias, caem depois de cruzarem com um sarrafo posto a frente de sua porta. Enquanto rolam pelo chão sentem mãos graúdas que os imobilizam. A jovem faz intenção de gritar, não consegue. A mão de um dos agressores a deixa muda com a violência do tapa que recebe. Os dois são agarrados pelos cabelos e arrastados por sombras imensas até a casa da frente. Entram aos empurrões, rolando pela escuridão. Lanternas de pilhas brilham empurradas aos seus olhos. Cegam. Ogum é agredido, leva um pau arrebatado. Socos, cuteladas, encontrões, a cabeça soqueada contra a parede. Pegam Maria Memória pelos cabelos e a obrigam tirar toda a roupa. Cariciosa agradece a escuridão, menos uma humilhação para sua mamã — Por que vocês estão fazendo isso?
—        Cala a boca!
—        Cada um colhe conforme semeia... — havia um cardume de homens dentro da casa. Levam a mais velha para um dos carros e a jogam deitada nua... no chão do veículo. Ali, tem na memória, pelo sangue que derrama, todo o sofrimento que viveram seus negros escravizados. As cores em preto e branco daqueles choros de submissão às correntes não tinham desaparecido. O coração lhe diz que está sendo jogada em um navio negreiro e não irá voltar. Não sabe como ficaram suas crianças, precisa dar atenção de despedida. Não há mais tempo. Fazem o mesmo com Ogum em outro carro. Saem com os dois. Na casa da frente ficam Cariciosa e Manualdo. Algemam os dois e rasgam suas roupas — Macaco vestido é sempre macaco!
Silêncio. Não sabem o que dizer.
Os donos dos porretes não falam.
Duas lamparinas foram acessas e mostram com sua cor amarelo esverdeada e trêmula o sangue e o desespero que escorre chão adentro quando entram com os gêmeos. Cariciosa grita o seu desespero. Enfiam em suas bocas buchas de jornal. Sentem o gosto da tinta que lhes escorre pela garganta. O ar entra e sai descontrolado, mas sempre pouco. Afogado. A mãe mais se parece com um canhão prestes a explodir em ódio. O menino Abelaira ainda não abriu bem os olhinhos, mas a menina Futuro já vem aos berros. Os dois são amontoados junto da tia Destino. Todos choram juntos a própria angústia e sofrimento, em cada um e em todos.
Os gêmeos da Memória estão escondidos no galinheiro. Agarrados um ao outro. Ali, do cárcere de chão batido ouvem os pedidos de súplica do cunhado e da irmã. As crianças choram, foram empurradas para um canto da sala da televisão. Não entendem. Ninguém compreende. Nem os animais compreendem. Os bichos do galinheiro fazem silêncio enquanto os bichos do andar de cima gritam ameaças. Os guris lembram-se das histórias do lobo mau para acalmar as bichanas. Quando os miúdos terminam sua historieta os lobos ruins são castigados e todos vivem felizes para sempre.
Cariciosa e Manualdo são empurrados frente a frente. As suas bocas e aquelas buchas de jornal ensanguentadas. Trazem uma bacia com água. Enfiam os pés dos dois acorrentados naquela água fria. Com pedaços de fios ligados em um aparelhamento, passam a aplicar choques — Filha de peixe, peixinho é...
—        Cabelo ruim e bandido é sempre assim... ta na cadeia ou anda armado. — um dos homens pegou a menina Futuro pelos pés e a levou até a janela. A filha daqueles dois amarrados e amordaçados fica de cabeça para baixo, segura pelas canelas fininhas, aos gritos — Mamã, mamã! — estendia os bracinhos para Cariciosa. O filho-da-puta do galo-enfeitado, indiferente aos choros, grita para aquela mãe e aquele pai — Olhem para cá!
Os dois olham em desespero para Maria Futuro e cravam a vista nas mãos que empunham sua filhinha — Vocês vão dar um passeio com a gente, se, escutem bem, se não contarem direitinho tudo que sabem, a gente volta aqui, nessa espelunca e solta a menina.
Outro que parece gostar da escuridão, pois não aparece na luz das estrelas, diz com uma voz que parece querer disfarçar — Mãezinha, não se preocupem se cair... do chão não passa. — nem bem termina o desaforo e o segurador larga a menina na direção do chão de concreto da Maria Memória. Os olhos gritavam com a força da alma, enquanto a garganta recheada de pano mandava urros perdidos. Não se ouvem mais os choros. Aquele silêncio despedaça suas vontades de resistir. Mais um choque pelos fios. A menina reaparece nos braços de outro polícia. O homem entra na casa com o seu sorriso hiena. Óculos escuros com armação dourada e um palito entre os dentes. Coloca a menina Futuro com Abelaira e Destino
—        Na próxima vez, talvez, a garotinha não tenha tanta sorte... — na cena de horror seguinte, levam os dois, encapuzados, nus e aos empurrões, até um carro. Depois de muito rodarem são deixados em um quarto sem luz, escuro de qualquer vida. Continuam amordaçados e amarrados pelas mãos. Uma pequena trégua dos gritos, tapas e choques. Manualdo chora, ele sabe que precisa da voz para suplicar ajuda. Assim, amordaçados e escondidos no escuro, não serão achados pelo Deus-nos-acuda.
O silêncio é rompido pela algazarra de muitas vozes. Alegres. Parecem participarem de um mocotó de quermese. Pelo sopro de ar sabem que alguma porta se abriu. São arrastados até uma mesa. Manualdo é colocado deitado sobre a mesa de metal fria. Sente calafrios. Cariciosa é colocada deitada sobre ele. E, assim, ficam. O tempo inventado deixa de existir. Só existem pelas lágrimas que lhes escorrem e se confundem. Continuam misturados. Vivos, por enquanto — Chega de namoro!
Cariciosa é puxada para o chão. Cai de barriga, a cabeça lhe sangra por mais um corte, é arrastada para outra sala de tormentos desumanos. No corredor passa por outras portas. Num desses momentos de lucidez, reconhece uma voz resmungando — Comunistas desgraçados!
Sabia que ela e sua mãe nunca mais se veriam.

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34 - Memórias que só existem em mim 

36 - Quando o esquecimento é vergonha!

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