domingo, 26 de agosto de 2012

O que não é ensinado


Ensaio
baitasar

Alisava com o polegar e o indicador da mão esquerda os fios do bigode. Enquanto remexia delicadamente – sempre do mesmo jeito: do meio para as pontas – o aroma da Olalla, rolos da memória lhe subiam nos dois furos do nariz, como o fumacê da combustão enchia os dutos de saída da churrascada — Comi uma deliciosa ovelha! — estava pronto para as demais tarefas do dia. Antes, cumpria um breve cumprimento — Até breve! E não me perca a foguista. — Olalla tinha cabelos da cor fogo, longos e ondulados, lábios avermelhados, carnudos, úmidos, olhos azulados, mas era o couro aveludado, eriçado nas mãos do general, que enlouquecia o homem. Nas despedidas, ele inclinava o queixo levemente, acenava com a mão direita, a mão esquerda não lhe descia do bigode, e se aproximava para cochicho de reverência — A sua casa oferece influentes incentivos para o dia a dia do homem. — agradecia e lhe oferecia minha mão que ele levava aos lábios, delicadamente. Homem educado e fino.
Abri minha própria casa quando cheguei nestas terras de capões e corvos. Não foi difícil encontrar meninas prontas para uma vida melhor. Todas lindas. Terras de fartura e beleza, mas sem regras, me aprenderam o que mostrar e esconder, como fazer preço da quantia adequada, oferecer desconto, e provocar encarecimento — Meninas, isso são apenas negócios!
Acho que é por isso que me chamam mulher que é homem, penso como os homens, tenho a autoridade dos homens. Aprendi. Tudo se aprende quando se quer. Conto histórias como um homem. Gosto dos homens. Gosto das mulheres. Adoro gatos selvagens... domesticar, deixar gatoso. Animal de luxo e recreação. Angorá. Siamês. Cruzar até encontrar a mutação doméstica. O vira-lata que ronrona satisfeito, adornado com laços de fita, lavado com xampu, penteado e escovado. Adorava escorregar os dedos nas listras pardas do seu pelo enquanto me sugeria fazer o que eu queria fazer pensava que era mais imortal que eu... — Meu filho...
—        Sim, mamãe.
—        Preciso de um cigarro.
—        Cigarro não, mamãe.
—        Vai à merda! Quero um cigarro...
—        O médico...
—        Esse vai se fudê, o que vocês querem comigo? Acabou! — meus filhos vocês perderam de me conhecer no melhor da beleza e alegria. Caminhava flutuando, nunca fiz barulhos com meus passos, nem deixei pegadas por onde passei. Aprendi en la Montaña esse jeito de ir e vir, me escondendo. Aparecendo e desaparecendo.
Criei estes sete como se fossem das minhas entranhas
—        O meu cigarro! — em dezembro plantamos ervilha, na época da chuva
—        Meu menino, tudo vem com a chuva. — eu não quero que minhas filhas sejam como mi papá y mi hermana, sofreriam muito trabalhando en la Montaña, que elas cresçam como eu... não, eu não quero — Sou bêbada, puta... não, minhas filhas não. — esse ano a chuva foi boa. As plantações cresceram bem, mas muita chuva trás minhoca, então precisam colher antes. Foi um bom ano de chuva, tivemos suficiente para comer e vender, é preciso fazer uma pequena oração, conversar com os espíritos antigos
—        Quando chove e o plantio é bom, fico feliz, fico em paz. — a freguesia aumenta, a alegria fica barulhenta, fico nessa vida até vocês crescerem. Não, não é por vocês, gosto do meu jeito de fazer as coisas. Gosto de mandar. Gosto de ser chefe. E na minha casa eu mando. Gosto de ser convencida com educação.
Espero que tudo dê certo para os meus filhos estudarem, serem melhor do que eu... às vezes, me canso dos turistas, penso em me livrar da carga que mal aguento, com o passar do tempo fiquei envelhecida, frouxa e feia, por isso, a trilha das doenças está me atacando, me sinto subindo la Montaña com um saco nas costas e outro na mão
—        Mi niños y niñas são meus tesouros... — Eu sei, mamãe. — peço que se cale, esse guri ta sempre querendo me agradar, mas não larga da vontade de conhecer a mãe de natureza. Eu lhe dei comida, mas quer saber quem lhe deu esse seu olho azulado e cabelo avermelhado. Respondo metade da verdade — Não sei por onde vive a sua mãe. — por prudência nunca procurei saber, prometi segredo a menina e não quis viver a tentação de contar, quem não sabe não tem o que mentir
—        Sentem, vou contar tudo, como eu vivi la vida. O meu cigarro...
—        Mamãe... — não havia o que fazer, lhe estendi o cigarro. Olhou como se estivesse me olhando, se despedia da única intimidade que lhe restou no fim. Fechou os olhos e parou de tentar respirar. Começava assim, a lenda
—        Meu querido, se fosse fazer filho escolhia época da chuva, quando plantamos milho. — digo que esse ano a chuva foi boa. As plantações cresceram bem, mas muita chuva trouxe muita minhoca, então precisam colher antes — Um bom ano de chuva. Vamos ter clientes suficientes para vender as meninas. Quando chove o plantio é bom, fico feliz, fico em paz.
—        Descanse em paz.... — faz muito que a casa perdeu o seu comércio habitual e refinado. Depois da morte do general Calçacurta as coisas não foram mais as mesmas — Vamos sentir falta dele. O homem sabia controlar o descontrole. — mamãe nunca esqueceu, e as escondidas, do seu jeito, rezava pelo homem. Foi a sua viúva perpétua.
Sete filhos criados por essa mulher, ainda quentinha da vida, mas já morta, esfriando, se misturando a poeira cósmica dos espíritos antigos. Cumprida da vida. Sete irmãos e irmãs de mães diferentes e pais desconhecidos. Clientes — Trabalhem, meninas... que a Preta cuida de tudo. — e cuidou das suas meninas
—        O que a mocinha quer fazer?  Nunca deixou de ouvir o interesse das interessadas, não achava justo tomar decisão que não era sua, nem fazer fingimento que não tinha nenhuma influência nos ânimos da freguesia
—        Quero tirar... — sentia um aperto de molestamento, mas ela decidia dessas coisas com as meninas quando era pedida sua consideração. Mamãe cuidava o seu negócio como um negócio, queria que a tristeza não fosse escondida por alegria dourada
—        Não quero gente triste, fingindo contentamento. — não entendia mamãe, viveu do fingimento daqueles homens e mulheres, e nunca esqueceu de perguntar — O que a mocinha quer fazer?
—        Quero deixar... — os olhos se alegravam — Se a mocinha quiser faço criação da criança. — não diziam que sim, nem que não — Eu sou... — Não diga nada, minha filha...  não repita essa palavra feia. — levou os dedos levemente aos lábios da mocinha sementeira, não queria lhe impedir de falar, mas não queria lhe deixar escapar aquela palavra de uso do homem mal educado, escravizado pelo costume de mau jeito das mulheres — Mocinha, a má educação se trás de casa... — a mocinha Olalla sabia que ensinamentos esperavam dela, enquanto a barriga sementeira não arredondasse o jeito era seguir na lida com a lição da casa.
Voltaram com a conversa quando não havia mais disfarce que pudesse esconder que a mocinha estava cheia de vida — Está bem, mocinha. Até sua volta aos atendimentos fica com os cuidados de limpeza da casa. — todas às vezes ela conseguira solução. Não queria a criança olhando a mãe, ano após ano, trabalhando com acusação de desapreço. Depois do nascimento, a menina decidia se partia com o filho ou renunciava a criação — Vai doer?
—        Sempre... para sempre, mocinha. — cuidava dos preparativos, cuidava dos cuidados. Mamãe sabia o que elas precisavam, também sabia o que eles queriam ouvir, mas isso não é ensinado vem do nascimento
—        Adoro quando um homem me convence e pensa que me acalma... esquece que somente a morte é mais forte que a vida — mas isso não é ensinado.



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