sábado, 4 de agosto de 2012

Sim, senhor! Meu senhor!

Becos sem saída - Marijoana sobrevive...


II
baitasar
Chamam por ela: a vassourinha; aqui para nós, que ninguém nos ouça, o seu Divo sussurrou no ouvido da dona Charmem que a mulher da limpeza e a vassoura não se deixam passear — Marijoana! Aqui no balcão! — vai às pressas... empregada nova, vassoura velha
—        Marijoana, limpa essa imundície... rápido... que nojo...
—        Meu Deus! O que foi isto?
—        Aquela senhora passou mal e vomitou por tudo... que nojo... vou vomitar...
—        Preciso de muita água...
—        Vai buscar! — respira aliviada. Não queria me meter naquela imundícia. Espia devagarzinho. Desconfiada. O mau cheiro começa a ficar insuportável. Vê que não é apenas pelo chão a sua missão. Vai livre de peso e volta com balde água pano. Pega na vassoura. Parece que a piaçaba lhe grita para largá-la. Sair daquela porcaria toda. Não adianta. A vassourinha é enfiada com pano e água no entrevero do vomitório. O estômago de Marijoana agradece não se alimentar feito essa gente de muitas comidas. Ele lhe chega tantas vezes até a boca que sente o gosto do guisadinho de batatas. As prateleiras estão maculadas pela vomitação até na altura dos joelhos. O mandador está com as mãos na cabeça
—        Minha filha, ajude aqui... — a vassoura faz jeito de ir. Fugir daquele entrevero de restos, mas continua mergulhada até a cintura. Congelada. Quer gritar por socorro — Me tirarem daqui! — ninguém ouve seus sons calados. Desespero. Quer fugir, mas não tem o que fazer, ordens são ordens. Ela é um pau mandado
—        Continua limpando, não para, não para... usa esse desinfetante cheiroso... — não vomita para fora de si nenhum resmungo. Soldada, marche-marche. Está quase lançando pela boca todo o seu estômago. Agora, sente o leite coalhado voltar até o pescoço. Está pronta para despejar o seu café. As mãos a sufocam. A barriga empurra a goela. Não tem como impedir de desembuchar o estômago pela garganta afora. Vai se engolindo. Resistindo. Regurgita e se devora. Engole de novo.
A juventude da Diva chega nas vontades de correr e sumir — Minha filha, leva essa senhora até lá fora e recolhe esses pacotes de farinha ao depósito, limpem o que for possível...
—        E o que não der, pai? — o homem dá de ombros e vira as costas
—        Vou buscar as luvas. — o vendeiro faz sinal para que Marijoana pare, está inconformado com a sua incapacidade de pensar rápido em benefício do bom emprego — Luvas? Junta tudo com a vassoura e a pazinha. Já perdemos muito tempo...
E assim, prossegue a operação rescaldo. Chão. Balcão. Ânimo. Fregueses. Tudo vai se parecendo habitual. Novinho. Marijoana não está normal, vai mergulhada dentro do balde, enfiada nos restos juntados ao chão. Precisa de um banho de espumas. Sorri do distúrbio do seu pensamento — Essas mocinhas de novela é que tem vida de princesa. — corre com o balde até o fundo do terreno do mercadinho. Como todo bom armazém, o seu Divo do mercadinho mantém uma pequena plantação de verduras e legumes, coisa pouca, mais para atrair a freguesia que procura por verduras e hortaliças fresquinhas. Marijoana atira as águas do balde e se vai à chuveirada da torneira. Quase afrouxa os nervos. Respira com sonolência.
Explode a corneta do quartel. Tempestade. Toque de reunir. Pega sua vassoura em uma das mãos e se põe a caminho. A verdadeira bucha de canhão. Ao menor sinal de perigo e o corneteiro do quartel inicia seu toque de reunir e atacar. Sai em desabalada correria pelos corredores — Quebraram duas garrafas de leite.
—        O que eu faço?
—        Limpa e cuida pra que não fiquem os cacos pelo chão... — não há tempo para sentir dores físicas ou morais. Faz a varredura do campo minado. Estilhaços da granada do leite partido se espalharam. O campo precisa ser liberado. Prontidão e rapidez. Pronto, as pessoas já podem transitar. Marijoana sente no peito a medalha de honra ao mérito. Distinção dada aos heróis da pátria. A qualquer momento seu nome será chamado nos auto-falantes. A tropa aquartelada está reunida em posição de sentido, perfilada para o hino, os soldados alinhados para honrar a briosa desconhecida. O general amarrotado dentro do seu uniforme impecável. As armas empunhadas em sua honra, os tanques rangendo sobre as pedras, os aviões rugindo sob os céus e os morteiros explodindo na sua volta. A vila toda ali, mas ela continua sozinha, a sua infância e a mãe que conheceu desapareceram no afundamento da ilha, vive extraviada desde aqueles dias, com medo da chuva e que aquele horror retorne — Queremos homenagear a nossa heroína, soldada de segunda classe, Marijoana! — a soldada da limpeza dá um passo à frente da tropa, está com as mãos amarradas às costas e tem uma venda sobre os olhos. O general se aproxima, cochicha em seu ouvido, a jovem retesa o corpo nu e presta o seu juramento
—        Eu, soldada de segunda classe, Marijoana, varredora do chão, esfregadora, juro sobre todas as coisas obedecer as ordens do meu patrão, resignada, fiel, sem perguntas, fazer a sua guerra, usando com disciplina a vassoura em defesa da limpeza! — silêncio, nenhum nome, nenhuma lembrança. Nada de vivo. Soldada desconhecida. Sem monumentos. Apenas o terceiro mandamento do capitão-do-mato — A preguiça anda tão devagar que a pobreza logo alcança.
Sai uns minutinhos à rua e fuma uma bagana. Aperta a guimba entre os dedos. Ergue os olhos e vê nuvens carregadas de chuva. Ninguém sabe explicar da onde veio àquela escuridão. Deve ser coisa deste calor maluco ou castigo de Deus. Até que abaixa um temporal de chuva e ventania. O barulho na guarnição aérea de zinco, um avanço de proteção da chuva e do sol, colocado na entrada e na saída da bodega, parece o pipocar de uma matraca. Ensurdecedor. Extraordinário. Por ora, está livre da voz do seu Divo. Vê  o lodo da rua entrando com os pés da freguesia. Não segue atrás dos embarrados apagando suas pisadas. Os rastros borrados são desmanchados por outros pés, como se nunca existissem e jamais tivessem pisado no mercado. Tudo sujo e imundo.
Novo toque de reunir.
Nova tarefa para cumprir.
Secar e limpar os ferimentos do chão de entrada — É tua tarefa deixar a entrada brilhando... — esse é o quarto mandamento das leis do seu Divo. Recua os olhos até o chão. Aperta o cabo da piaçaba entre as mãos. Tarefa de muito trabalho. Mas afinal, foi para isso que se alistou — Sim senhor! Meu senhor!
Apaga as marcas gigantes com desenhos de lodo. Corre desfazendo a trilha da velhinha que se arrasta e brinca de escorregar. Tudo cumprido sem a emissão de qualquer nota oficial de desconforto. Nem sinal de paralisação. Greve. Nem um olhar, um muxoxo, um contrair da boca. Nada. Acha que se a mandassem para morrer ou matar, o faria do mesmo jeito — Sim senhor! Meu senhor!
Silenciosa.
Final da manhã, e quase está recostada. Respirando. A chuva veio e desapareceu feito um pesadelo. O sol já se encarregava de trazer a alegria às compras. O entra e sai do mercado não diminui. O encarregado a envia para nova missão. Tirar as sujeiras e purificar o chão da registradora de dinheiro. Cumprir a missão rapidamente e sair em retirada sem ser descoberta. Invisível. Sem problemas. Ninguém precisa enxergar a vassoura. Pensa em ir à frente da batalha rastejando com a vassoura deitada sobre os braços, como um soldado carrega o seu fuzil; e o balde na cabeça, como o soldado leva em si o capacete. Desisti. Precisa ir rápido. Fica exposta aos tiros e morteiros. Está pensando no almoço. Distraída com as dores do estômago. Não percebe nenhum perigo.
Cai de joelhos. As mãos ao peito. Os olhos em súplica. Pensam que reza. Vejo-a claramente flutuando. Murmura vento aos ouvidos do menino que leva o pão. Ele não se ajoelha nem leva as mãos ao peito. Está assustado. Desabam no chão. Lágrimas lhe saem. Não consegue evitá-las. Ardem os olhos. Os ouvidos ensurdecem. Tudo a fazer é continuar deitada. Passou a manhã querendo descansar. Chegou sua hora.
Fica imóvel. Calada. Por sorte, só precisa respirar. E comer. Tudo terminou. Graça de Deus. A vassoura está inerte ao seu lado. Desfalecida. Finalmente, a vassourinha parou. Está caída. Não ganha um dia de folga. O patrão procura a paladina entrincheirada. O chão de terra é o único lugar que acolhe os pobres. Como semeados. Um a um, ficam no chão batido — Alguém me encontre a moça da vassoura...
Campo de descanso da miséria. Desamparados. Semienterradas. Continua prisioneira dos milagres. Nunca desistir por desânimo. Vai enriquecendo o patrão. Encurtando a sua vida, enquanto a dele vai se prolongando. No mercado, ninguém quer trabalhar na faxina, por enquanto é tudo com a Marijoana — Alguém me encontre a moça da vassoura...
A soldada desconhecida levanta de arma em punho, tem um silêncio diferente nos olhos. Uma mulher que não existe foi abatida em combate e não identificada. Caminha algum passo na luz. Tem o olhar suave de quem não lamenta a sua sorte. Tira a roupa e sai varrendo os corredores do mercado, gritando — Sou a mulher invisível, ninguém me vê! — exumando a alma de seu corpo adormecido, cria asas. Uma alma descolorida dá seu lugar para um corpo com asas coloridas. Passa pela registradora. Dona Charmem está boquiaberta, e assim fica. Segue pelos corredores até as frutas e verduras.
Todos do outro lado do balcão olham pelo seu caminho, fecham os olhos arregalados. Levam a mão à boca. Um guri comenta a desestima do corpo desembainhado da faz-tudo. O seu Divo fica atormentando que lhe tragam um lençol, um pano, um saco... qualquer coisa para cobrir a doida — Por favor, tragam algo para cobrir essa maluca!
Encontrar e trazer os panos de cobertura foi rápido. Mas não tinham planos de como ou quem agarrar aquela vassoura sem roupa. O açougueiro se anuncia voluntário. Larga das facas e, com o avental em sangue, vai pelos corredores atrás do animal ferido. Está acostumado a lidar com carnes mortas. Aproxima pela retaguarda e a abraça. Pronto, está feito. A registradora das vendas grita com a filha, a moça Diva se aproxima com uma toalha e a cobre. Caminham aos vestiários — Eu tentei... eu tentei... — Tudo bem, querida.
O patrão manda que preguem no poste o aviso de vaga na vassoura. A tabuleta nem havia sido retirada. Outra moça ávida se apresentava para o emprego. Com sorte, o encarregado já preenchia a vaga para o restante do dia — Qual é o seu nome?
—        Cariciosa, meu nome é Maria Cariciosa.

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