Becos sem saída - Cala a boca!
I
baitasar
As
lembranças daquele arroio e dos meninos pelados correndo e se jogando nas suas
águas... não me deixam. As marés das chuvas crescendo suas águas no contorno da
minha cidade: São Francisco de Assis. Meus cabelos brancos não me afastam
destas memórias, pelo contrário, a cada novo fio pálido de leite as minhas
carnes ficam com doze anos, o fôlego me volta de uma só vez, os olhos se
arregalam, esbugalhados de contentamento e o coração se acelera.
O arroio
chega com suas curvas de sinuosas intenções.
Tenho
mais que a nostalgia poderia me trazer, tenho a memória do vivido com aqueles
guris.
Voltei.
Precisava
voltar.
Achei
quase tudo no lugar. Minha casinha humilde com seu teto de telhas em canoa. A porta. Janelas.
As mexeriqueiras sumiram e as terras se dividiram para abrigarem muitas casas. Desapareceu
o roçado da mandioca, das batatas e dos feijões. Mas a praça e os bugios ainda
andam por lá, viraram atrações. Os matos acabam e resta a praça com os seus
macaqueadores. Os excursionistas vêm para alimentá-los e fazem posse na frente
do retratista da praça. Registram na chapa fotográfica o alvoroço dos bugios.
Fico de longe.
Não
tenho precisão das fotos, pois tenho a vida, conservo as lembranças. Escuto os
gritos de convocação — Vamos jogar bola na beirada, Milton!
— Posso, vó Nena?
— Vai, mas cuida a hora do sol mais fraco...
— Tem pão quando eu voltar?
— Bem quentinho...
E lá se
iam os guris de São Chico na direção do arroio Inhacundá. A pelada era jogada
com bola de costuras por fora, nem parecia que doía chutar. O guri que eu era
crescia entre os amigos, enquanto meus irmãos foram mudar de vida na cidade dos
brancos. Deixaram a incondicional calmaria pela agitação das charretes e fords
bigodes. Burburinho da urbe grande. Os brancos gostam de empacotar a vida. Os
meus irmãos abandonaram as tradições originárias, vivendo amontoados. Não
perderam a valentia e a generosidade, mas deixaram sair da lembrança os laços
de parentesco, nosso jeito de estar na vida. Nosso jeito de conversar com os
espíritos antigos. Talvez, tudo não tenha sido bem assim, mas e daí, é como lembro
e gosto de pensar que foi.
Depois
do futebol batia aquela vontade danada de pular no Inhacundá, mas o que fazer
dos calções molhados, todos se olhavam e lá se iam eles pernas abaixo. Ficavam
jogados no chão da barranca. Corríamos pelados até a ribanceira e pulávamos um
após o outro, feitos pedras de dominó. Minhas lembranças se ficaram dos vôos
até as suas águas límpidas de cor marrom. Cheiravam a mato. Sinto ainda estar
flutuando do barranco, as pernas encolhidas, os gritos de alegria, os olhos
arregalados de satisfação e os braços estendidos junto com mãos e dedos. Voltei
a ser aquele guri que já havia esquecido, deixado de lado, meio a contragosto.
Nadávamos
até a ilha no meio do arroio e tornávamos a saltar nas águas — Silêncio... psiu...
— O que foi?
— Ouçam... — afinava os ouvidos e só se
escutava os bugios
— Não to escutando nada.
— As gurias estão no banho, lá pra cima...
— Vamos espiar? — e lá nos íamos espreitar
os banhos das gurias com seus cabelos e pernas compridas. Quando nos viam saiam
nas correrias. Todos fugiam. Voltávamos correndo para o conforto da valentia dos
calções.
Lembro
dos dias de chuva dentro do rancho. Não sei se o rumo dos sonhos viaja no tempo
e chega intocado da terra dos lugares distantes, mas não interessa, para galopar
nas lembranças, apenas atravesso a roça. Faço da agonia de percorrer o tempo e
lugares, antes que o estalar dos dedos se faça ouvir, o meu contentamento.
Caminho com as mãos nos bolsos e passos lentos, por gosto, com a pele
avermelhada pelo sol e mergulhada em sua luz iluminante. A vasta cabeleira
negra cedeu lugar ao cabelo encanecido pelo tempo, cortado baixinho. Uso
cabelos civilizados, os brancos disseram que o índio não viveria feliz longe
das terras que seriam demarcadas. Por isso, tiraram nossa terra e estamos aqui,
esperando as cercas. Não podemos confiar nos brancos. Contamos que a nossa
terra foi roubada, e como estamos morrendo, dão aperto de mão e aconselham que não
podemos desistir. A aldeia é o lugar da nossa vida por isso estamos morrendo. Digo
que estou ainda inteiramente ingênuo e, até esse tempo, represento por inteiro
aquele menino.
Paro a
tomar fôlego e ouvir minhas preces ocultas. As vozes dos guris nos milhos.
Ninguém
percebe minha alegria do espanto, o eco me retorna. Sou aquelas memórias que só
existem em mim. Fui
feito em muitos anos. Lutei em muitos moinhos e sonhos, devaneios do guri feito
homem sozinho. Esses pedaços da memória que me pertencem me fazem de carne e
osso.
Tenho
oitenta, e sei, sempre terei doze. Aquele guri do Inhacundá chegou até aqui e
pretende ir mais longe — Nada é tão simples do que viver, meu filho...
Sou um
narrador intrometido nos próprios sonhos de lembrar. Sinto saudades da escola
que não fui, fugia para jogar bola, tomar banho de rio e pescar. Não sinto a
ausência das letras que deixei pelos caminhos sem decifrá-las. Fiz um mundo
diferente para mim. Tenho meus grandes heróis, alguns têm prestígio de chefe,
outros nem tanto. Quero reunir todos que enquanto dormem sonham com os
encantamentos do Karaí. Não tive habilidade de lançar feitiços, nem curar as
doenças, meu empenho foi combater o esquecimento da memória.
Sinto o
sono e o sonho me invadirem, enraízam nos lugares mais retirados do meu corpo.
Minha vontade vai me abandonando, quase adormeço do mesmo modo que sempre digo
que você deve descansar confiante, sem medo do escuro, pois, no final, sempre
vencemos a escuridão. Continuo a conduzir as minhas histórias, gostosas
lembranças de guri. Eu sou o que existe recolhido dentro da memória. Intacto.
Descobri o que desembaralhei do tempo. Isso, eu sou o guri que nunca deixei de
ser. No mundo dos sonhos estou apenas usando minha memória, lembrando do que
desejo sonhar de novo, coisas que podem ser acontecidas. O meu abraço em você,
meu filho, desses que acontecem de vez em quando pelo mundo, essa ilha de
muitos sabores.
Hiiiippppp,
estou flutuando da barranca, as pernas encolhidas, os gritos de contentamento,
os olhos arregalados de satisfação e os braços estendidos junto com suas mãos,
meu filho. Meus cabelos nevados se arrepiam, envelheceram. Minhas memórias
pulam ansiosas, gritam alegres, têm a força e o encantamento com aqueles guris
— Filho, a mata é um mundo aberto sem porteiras.
Manualdo
trás a cuia do chimarrão até a boca e dá um longo trago no mate. Gosta assim,
quentíssimo, a ponto de queimar a boca. Continua com o jeito de na tardinha do
sábado se recolher em si mesmo. Sorve o seu mate em cuia pequena, usada
emprestada do famoso tereré do pampa, mas tomado com água quente. Deixa o olhar
na lonjura do passado. Sente saudades das conversas com o pai. O seu velho de
muitas histórias. Vida de menino plantador do milho, mandioca, e seus banhos no
arroio. Guarda na memória o vigor daquele homem que se negava parar de seguir
até a roça e a caça — É preciso levar o alimento para os filhos.
Nunca saiu
das terras demarcadas, jamais veio para a cidade. Não quis mudar de plantação e
de dono. Dizia valer muito sair contemplando a paisagem no som dos rumores do
vento, dos pássaros, mesmo precisando enfrentar a polícia dos índios. O velho
pai encarou estação calmosa e tempos de muito tormentório. Não lembra de ver o
pai choramingando pelos cantos do sítio. Mas, por certo, como cavalo relincha e
vaca muge, o velho pai se apequenava quando um dos filhos ia de vida mudada
para a cidade. Não tinha solução, até levar jeito de costume com a falta do filho
afastado, o velho calava. Não tinha o que conversar. E da mãe, Manualdo só
lembra a fotografia envelhecida da memória do pai, ela já tinha ido quando ele
chegou, foi tudo na mesma hora, muito rápido. Morreu de fazer nascer a sua
vida. Passou a existir órfão de mãe. Criado pela avó Nena, uma negra forte e
destemida, respeitada nas redondezas, como uma mulher de força e lealdade.
Fazedora do melhor pão cozido em forno de barro da redondeza. Com a morte do
pai, e logo em seguidinha da Avó, deixou de ter razão para ficar no sítio de
índio quase demarcado. E assim, ele foi o último a sair da roça para a cidade
dos brancos espremida de índios, mestiços, mulatos e pretos. Era tanta cor de
gente que o bugre se ouvia gritando
— Acorda, Manualdo!
É o pai
lhe expulsando do repositório dos sonhos, como sempre lhe fez todas as manhãs.
O homem era incansável, o último a deitar e o primeiro a nascer
— Lembra que amanhã é aniversário da sua
Maria!
— Por São Francisco, protetor das terras
do Inhacundá, esqueci do encontro...
Precisa
ir buscar a compra encomendada. Faz gosto de entregar no dia do acontecido.
Índio jaguará... esqueceu da hora marcada, mas tem jeito, guarda o ferramental
do mate e sai avisando
— Amorzinho, vou sair!
— Não se demora...
— O meu apetite está aqui em casa.
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Leia também:
33 - O socador de cuíca
35 - Comunistas desgraçados!
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