Acordada cedo
baitasar
Domingo.
Levanto cedo para tomar chimarrão. Gosto dos goles de chimarrão cedinho
do dia ou nos acabamentos do entardecer. Hábitos de gosto.
O frio congela meus pés. Enfio meias para aquecer. Volto a sentir os
dedos e caminho em silêncio até a cozinha. Coloco água na chaleira e acendo o
fogo. Apenas um click... tantas coisas mudaram desde que descobri o fogo. Eu é
que não mudei em quase nada. Mas enfim, a escuridão da noite é rasgada em
frangalhos pelas claridades do dia. A água continua aquecendo no fogo
intrépido. Aproveito para pegar o ferramental do chimarrão.
A chaleira começa cantoria de fervura. A água está pronta. A cuia com a
erva-mate, a água calorosa, a bomba. Sinto a algazarra dos pampas me descendo
pelo gargalo estreito do pescoço: quente e amargo.
Fecho os olhos e imagino velhos e moços, agachados à volta da fogueira,
convidando os espíritos antigos para um dedo de prosa; escuto velhas e moças
rezando para aliviar as dificuldades da vida nos pampas: guerras, ventanias,
solidão
— Bom dia, pai... — abro
os olhos desprevenidos da surpresa, tomo um gole do mate e respondo — Bom dia,
minha filha!
Fica parada, em pé, me olha com um sorriso num cantinho dos seus lábios.
Continua com os olhos em mim. É linda. Cresceu tão rápido. Peço para os mais
velhos a protegerem das víboras venenosas. Eles cantavam e sorriam festejando a
vida na poeira cósmica dos espíritos, sabem que os moinhos da roda d’água não
param. O fubá grosso e o mimoso seguem sendo apertados. A canjica e a pamonha
morna são fermentadas no fogo enquanto consumimos a matéria do corpo. A vida é a vida que precisa ser enfrentada junto com um saboroso licor.
O encantamento dos sonhos de um pai não enfraquece a verdade do
cotidiano, nem desmerece o duro esforço de sobreviver, mas basta estar por perto... amoroso, atento, ouvindo suas vozes e enxergando seus sorrisos, amparando suas lágrimas, forte como um rochedo enquanto as ondas batem, batem, batem e recuam, recuam, recuam
— Tão cedo acordada... —
Quero conversar com o senhor. — ela senta num banco de madeira na cozinha, me
oferece outro banco. As histórias e a poesia flutuam no espaço invisível entre
as coisas, entre o pai e a filha. Os mistérios da vida de cada um se juntam com
os pedaços da vida que podem ser contados, até que deixamos de ver uns aos
outros, desinventados da própria vida
— Pai... eu preciso dizer
uma coisa.
— Estou ouvindo, minha
filha. — então é isso, vou ser avô. Os fantasmas do pai. Aprumo as costas do meu corpo desfigurado
de mocidade. Devia ter feito o pedido para que não tivesse filhos tão cedo —
Minha filha, espera o pai morrer, quero voltar como teu filho. — o pai que
nasce da filha, devia ter pedido
— Pai... eu te amo. —
ganho um abraço quente e doce — Queria ser a primeira te abraçando, feliz dia
dos Pais.
— Quer um chimarrão?
— Quero...
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