quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Quando o esquecimento é vergonha!

Becos sem saída - Cegante ignorância!

I
baitasar
O dormente está revestido de botas nos pés, não para invadir ou destruir com as suas passadas e pisadas a vida brotada por todos os lados, mas para protegê-lo nas suas incursões pelos capões da ilha. Seguia comigo em uma das mãos e a água da térmica em uma sacola às costas, percorria o mato atrás de uma timbaúva: árvore que se presta para a fabricação de canoa. Perseguia pista mencionada por um caboclo pardo de estrada
—        Está tombada lá... por forte temporal!
Encontrada a árvore e feita a canoa pudemos seguir viagem pela hidrografia extraordinária da ilha. Sabe que sonha, tem consciência que não está acordado, viaja sobre as águas da ilha de mato e corvo. Plasma que circula por seu coração, artérias, vasos e capilares. Mantém-se acompanhando de olhos fechados seu corpo parado. Dormindo. Reconhece seu hálito, ele também é uma ilha de capões e corvos. Espanta-se com o som rouco que se espalha da sua boca produzindo estrondos regulares, Então é verdade, pensa, enquanto dá ouvido para si mesmo — Eu ronco! Pareço-me com uma bexiga cheia de ar que tem estrondos toda vez que o ar lhe escapa. — ri e caçoa de si mesmo, reconhecendo a maneira ruidosa e arrogante do seu sono.
Embaraçado, conforta-se com o inevitável. Maravilha-se com a enormidade de seu tamanho e com a sua pouca beleza, nenhuma boniteza... se fosse mais duro e cru consigo — Como consegui sobreviver?
Ao mesmo tempo, Manualdo leva as mãos em oração de afeto aos cabelos adormecidos. Experimenta a sensação física de acariciar os pêlos da cabeça, cortados bem longos. Mantidos invioláveis na sua negritude, como uma marca posta na aferição do seu tempo ordinário de vida — Sou grande, feio e o meu tempo escorre entre as lágrimas e os gemidos do não vivido, tenho menos tempo de vida que o já vivido. — tenho ganas de lhe gritar que se quase tudo foi vivido pela metade e o vivido inteiro ficou fora do lugar no tempo: nada de extraordinário porque outras gentes têm desvivido em outros tempos e lugares. Grande porcaria a vida se extinguindo aos poucos, com medo.
Roça brandamente a própria face adormecida como se estivesse enxugando um pequeno pingo, um tudo e nada, vindo lá do olho. Sente falta de olhar em seus próprios olhos. Um brilhante, como uma estrela pela limpeza e energia, o outro apagado, nadando em lágrimas, parecendo refletir melhor a sua tristeza: todos têm um olho-estrela. Ou um corvo manco e adulador, ou vozes hipócritas, mas nem todos fazem viagens de barco - cunhado na timbaúva, árvore tombada pelo forte temporal - em águas vivas e brilhantes. Os homens e as mulheres também tombam por fortes temporais, mas têm o desejo que vem depois do vendaval. Então, precisam decidir se continuam tombadas até serem cunhadas para sempre ou se indignadas levantam a mão para discordar.
Manualdo até tentou, mas ele não sabe se irá demorar-se inclinado até deitar ao chão ou indignado permanecerá erguido, com a mão no alto. Tantas coisas que não sabe - tem medo de saber? - sinto impulsos de avisar: — Corra! Você é veloz, Manualdo!
Todos têm que apertar o freio da pressa e domesticar o medo. Correr riscos e amansar a vida aos poucos.
—        Cegante ignorância vos ilude, ó miseráveis mortais... abri os olhos, estais enganados!
Um senhor feudal é o chefe administrativo daquela gente ilhada que parece nunca se livrou de construir quartos de dormir, deveriam erguer bibliotecas além de morar, irem além da pensão. Um pequeno hotel especializado em deliciosos bolinhos de arroz, banhados no óleo fervente dos enfermos, jogados dentro da enorme bacia de uso comum dos banhos de assento da proprietária. Senhora gostosa que ao passar dos anos se tornara pesada e mal nutrida. Ao sentar no bacio, afundava todas as partes impudicas que permaneciam cobertas, desde muito tempo, cobertas de medo. Grávidas de pecados. E só nessa hora de lavagem se mostravam em nudez completa. Mas, enfim, aquilo que os olhos não vêem, o coração não sente e a barriga se enche satisfeita. A bacia dos banhos de assento acertava no gosto a fritura dos bolinhos. A nossa gula é insaciável. Faz parte das lendas que onde existiram capões e mato, o piadístico popular sobre seus governantes era repetido de geração para geração — Que mau cheiro... — exclama com nojo o barbeiro
—        O quê? — pergunta o senhor feudal
—        O senhor ta sentindo esse cheiro?
—        Só por dentro...
A gente simplória não resistiu e como qualquer senhora muito pesada foi comida com pequenas mordidas ou empurrões de desamor até o estrangulamento. Asfixiadas com as mãos e os dedos que se uniam em prece, descoradas como garras que se oferecem para proteger. As manitas do giz ignoram suas mortes, engolidas pelo currículo o suicídio pedagógico foi sua resposta. Não existiu colheita além do uso que deram à senhora gorda e ilha farta. O ânus de uma ventou com força, enquanto a outra soltou com alarde pela boca o ar do estômago. Ninguém se atreveu ficar próximo nem ficar de longe
—        É o fim, senhor prefeito...
—        Nunca termina, Mormaço.
—        Cus-de-galinha.
A vida nos torturados é instintual e é solitária. Quero gritar para aqueles dois que usem os seus instintos para sobreviver a esse pavor. Precisam resistir mais que os torturadores. Sabotar a desumanidade cruenta, perversa e domesticada. Humanidade caolha. Os torturadores carregam a carga em procissão de fé até a beirada do despenhadeiro. Provocam as desesperanças até que os mais fracos pulam ao abismo. Finalmente, usam a marreta na cabeça dos resistentes e jogam as cinzas espalhando. Estão escondidos sob as ordens, embaixo dos sapatos daqueles velhacos infames, estes que olham ao pobre não como gente, mas como gado que se engorda e mata para o próprio sustento. Tudo muito bem camuflado e dito sob uma oratória esperta e cansada. A promiscuidade misturada de maneira desordenada e confusa - rezar e comungar nas missas dominicais, O Corpo de Cristo... Amém - não precisam nenhum perdão querem um álibi. Os filhos juram que os seus paris carinhosos não socam ninguém até quebrar e rachar
—        Cegante ignorância vos ilude, ó miseráveis mortais... abri os olhos!
Homens treinados: ensinados para machucar. Domesticados. Selvagens até que o corpo quebrado relaxa: falta luz para os choques — Lá isso é hora pra faltar luz... — alguém grita para enfiar no pau de arara — Se não morreu ainda... — ainda bem, os choques já tinham sido muitos, em qualquer parte, os fios atados no pé, na mão, no ouvido, na orelha, no mamilo, no ânus — Agora é no cu! — são as palavras brutais que incomodam, elas provocam mais dor que os tampões das mãos nas orelhas — A luz... por onde anda? — o farol reacende e mais choques. Quase morrendo — Chama o doutor! — cuidados para resistir, para apanhar mais, a torturada não tem como desistir! Nunca é suficiente até esquecer quem se é — Ela se aguenta mais um pouco. — a Memória apaga, se torna clandestina até ser refeita das próprias cinzas: chega o dia em que o esquecimento é vergonha!

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