Becos sem saída - Manhãs...
baitasar
De uns
tempos para cá, meu dormido tem acabado pelos desconcertos da Cariciosa. Aliás,
não tenho dormido. A minha preta cismou para falar em sono, ou melhor, namorisca
em sonhos com palavras que não são dela - tenho certeza, eu conheço a guria -
até parece algum espírito estacionado nas carnes da minha preta — Vem cá, amor
da minha vida... me entra, ressuscita a tua preta!
Nestas
horas, o acaboclado acorda de vez, esfrego os olhos, subo as orelhas, coço
acima das sobrancelhas e fico em posição de espiar. Preciso ouvir um nome,
apenas um nome. A guria fica resmungando, não fala as claras. Parece querer
confessar sem coragem de dizer nas claridades do olhar. Já pensei que falta na
preta amadurecimento da vida, mas na dúvida e de qualquer feitio vou pedir pra
Avó um banho de fumaça. Uma defumação pelos cantos da casa há de fazer limpeza
do mau olhado ou encosto de algum espírito. E que assim seja: a luz dos olhos
da Cariciosa há de continuar trazendo a alegria do contentamento, junto com a
iluminação do Pai Verdadeiro tatuada em nosso espírito. Sinto vontade de gritar
para Nhãnderú, em meio a tanta algazarra, que me entenda a urgência
— Meu homem que eu amo demais e cada vez
mais e mais... — enquanto a escuridão da noite está se despedaçando, fico
atormentado, me mordendo. Prefiro as coisas no aberto, o que tiver que ser que
seja, sabe como é, para que a pintura e a peleja de longe se vejam
— Sinto muita vontade de dormir no teu
colo, ouve, vem meu amor... — não escuto o que preciso ouvir. Um nome, apenas
um nome. Estou sentado na cama, tenso, desmontado pelo ciúme. Tem sido assim,
desde que essa mulher se dispôs nos trabalhos de faxineira no mercadinho. Tenho
como coisa certa de segurança que lugar de mulher é em casa, mas ela, logo a minha
cara metade, me diz que não. Desafia meu jeito de macho. E agora, essa coisa de
ficar falando durante a soneira, virou meu marasmo
— Quero você esparramado por dentro... — tem
sido assim, quase todas as madrugadas. Já não durmo, fico esperando por ela nos
sonhos — Adoro lembrar a gente em tarde de chuva, enrolados na cama... quero te
viver. — Merda!
Grito em
voz muito baixa que não lembro de nada disso, não tenho na lembrança da memória
nenhuma tarde chuvosa com recolhimento na cama apaziguando as febres da carne.
Começo a ganhar certeza que a Cariciosa pisou na bola, mas logo, na vez
seguinte, trato de encontrar um álibi para a guria — Não lembro, mas não
importa... não deve ter acontecido.
Não sei
me entendem, mas não quero iniciar confusão, por tão pouco não é preciso
alardear para mais ninguém. Por ora, esse é o meu segredo, até por que a guria
não deve saber o que vem falando. Algum espírito desorientado se apoderou do
sono da minha preta. Isso tudo é meio assim, quando a gente dorme da carne fica
ali estendida e o espírito sai viajando feito passeante. Já vi muito disso. Nessa
hora se vive outra vida, a história dos sonhos. O Deus nos acuda é na volta,
quando o tonto se perde por gracejo. Fica perambulando de cama em cama, vira um
beija-flor colhendo a doçura dos cálices coloridos. Deve ser por isso que tem espírito
que não se abandona em imaginação, tem medo de ficar perdido pelo mundo dos
sonhos. É um dilema, se não dá para viver de sonhos, também, não é provável,
que se viva inteiramente sem eles.
O pior é
quando a preta silencia no sono e dorme calada. Não prego o olho na letargia e
viro de costas para a Cariciosa, não tenho coragem de mostrar-me finjindo que durmo.
Fico com os olhos estrelados e sem mexer um pedaço qualquer de mim mesmo, o
pensamento escorrendo pelo canto da boca, como um filete de baba — A água
silenciosa é a mais perigosa.
As desconfianças
com o tempo cicatrizam ou começam a meter medo na cama — Enfrentar ou fugir? — na
verdade, estou com assombro dos sonhos da Cariciosa. Assim, dei início ao ritual
repetitivo de fuga, deito tarde e acordo mais cedo que o mandado pelo
despertador. Explico melhor esta confusão, na hora do sono dou voltas e voltas
em mim mesmo, até decidir-me ir para a cama de marido. O pior é que a guria não
reclama, o sono de esposa é profundo, o meu é leve e aparente. Explico esse
abandono de interesse da minha preta, para mim mesmo, como parte do destino de
quem trabalha além do que deveria. Um dia depois do outro vamos deixando de
cuidar um do outro — A minha preta ta cansada? — Não é pouca coisa faxina em
mercado...
O meu
descuido da preguiça é ficar de cama com as orelhas em pé, além da hora da
moleza, parecendo vigia no quartel em prontidão, esperando mais um descuido da
preta na cama de sono profundo, até que lá se vem a lenga-lenga — Meu amor, continuo
me escorrendo... — escuto a sua falação de mulher deitada e acamada. Vejo minha
preta retorcendo a tanajura carnosa, atritando as coxas, gemendo enquanto as
mãos desaparecem nas virilhas. Mais desanimado, resmungo no entre dentes — Sou
um corno sonâmbulo.
As mãos da
dormida comem o que eu deveria estar abocanhando. Desde aquele acidente com o
ciclista chifrudo, venho pensando se o outro acidentado não desejou o mesmo pra
mim, no fim a cobra maior engole a menor — A gente tanto vê chifre na cabeça
dos outros que a galharada se volta contra e nos enfeita.
Sentado
na cama com as pernas cruzadas sou um índio usando na cabeça um cocar de galhos,
um guampudo manso com as mãos entrelaçadas sobre a barriga inchada e resignada.
Rezo aos espíritos e peço para que desapareçam as trevas de porco que cobiçam minha
preta — Ela me foi oferecida para o procriamento de uma nova raça de gente, uma
laia amorosa e alegre na missão de encorajar a esperança.
Seguro o
cajado entre as mãos, sei que é nele que devo me apoiar nesta longa jornada. A
criação de um novo mundo é difícil, precisa um passo de cada vez, primeiro
fazer a germinação dos rebentos, gente novinha brotando com jeito de gostar das
pessoas, com o coração em Deus. A recriação da vida, o amor profundo e o
coração grande dos espíritos é preciso para falar e ouvir. E de nada adianta só
ter precisão de falar, é preciso fechar a matraca para se permitir ficar de
orelha em pé. A Cariciosa continua seus pedidos — Quero trepar forte, como pela
manhã... — Chega! — grito comigo mesmo.
Isso
homem de Deus, reaja, a falta de um grito morre um burro no atoleiro. É hora de
levantar e acabar com esses sonos tolos. Reúno toda coragem de homem amadurado,
mas vacilo, penso que não é o caso de perguntar se tem algum galo com esporão
mais firme que o meu, não tenho que agitar a guria de por o olho no galinheiro
do vizinho — Por quem você está se escorrendo toda?
E ela,
sem ouvir. Fingida. As mulheres são ótimas em fingir, fazem de conta que não
ouvem e continuam uivando sua dança lasciva de quadris e gemidos — Não quero
perder você na luz do dia... — não consigo mais continuar com isso. Faço empenho
de abrir os olhos. Preciso acordar — Acorda... acorda!
A fantasia escandalosa acabou. O Manualdo está de olhos
abertos. Esbugalhados. Abriu os olhares do sono na frente do televisor. Essa
máquina é uma armadilha astuciosa. Cilada preparada para maravilhar sem causa
aparente. Não tem resistência. É como água por morro abaixo e fogo por morro
acima. Engole e devora. Dormiu deitado no chão do televisor. A máquina ligada
produzindo pequenos chuviscos. Está fora do ar. A novelista das oito já se foi,
mas os enredos de traição ficaram na cabeça do Manualdo. Desliga a televisora
preta e branca. Lembra que precisa ir para cama. Levanta e dá alguns passos entre
as crianças. Dormem o sono solto dos anjos. Produz o menor dos barulhos enquanto
cochicha para os gêmeos — Amo vocês, mais que possam confiar.
Cobre-os com uma manta leve e se vai com a ponta dos
pés para o seu encontro de homem com mulher. Deita lentamente, enquanto olha
para aquela dona de beleza que atordoa os seus olhares de cobiça. Depois dos
nascimentos, Manualdo arde ainda mais em apetites depravados, aquelas ancas
arredondadas são o centro do seu mundo. Ele fica crescido em calibre. Chega sem
um gemido. Cariciosa sente seu comparecimento — Onde tu tava, bugre?
— Aqui,
olhando a minha preta com recheio de sonhos. — ela se vira e os olhos do desejo
o tocam, é assim mesmo o encantamento que entra pelos olhos, abismam os
esconderijos e tudo revela dos segredos e mistérios do bem-querer. Os dedos do
homem espicham e se arrastam de um instante para outro, deslizam de um lugar
para outro e se molham afogados na coragem entusiasmada. Ficam nervosos e
querem aparentar comedimento, por isso se demoram naqueles pelos crespos e
ralos, enrolando e desenrolando, enredando e desdobrando... até que somem — To
com saudades, minha preta...
— Meu
bugre... minhas mãos são tuas, minha boca é tua, meus olhos são teus... — Estou
sempre contigo.
— Sou tua
porque te amo. — os dois se abraçam. Namoram
— Vivo
com saudades, sofro com tua vaga de marido desocupada... te amo.
— Eu
também, minha preta. — ele se deixa desaparecer dentro dela. Ela lhe abre as
portas do gosto e do cheiro. Todos dormem. Eles sonham com a carne aferrada ao
outro.
Quando acorda não tem clareza se foi sonho da novelista
ou a sua Cariciosa dormindo, mas gostou do alvoroço amoroso que trás na
memória. Ainda carrega os perfumes reservados da sua carinhosa pelo bigode e o
gosto pelos cantos da boca. Adora os cheiros de fêmea da sua preta — Meu
amorzinho...
— O que foi
minha preta?
— Adoro
os nossos pedaços de vida.
— Eu
também, minha preta... eu também.
Depois de sair da cama, vai até o pequeno pátio,
conserva o hábito do café daquelas horas, com Ogum e Memória. Vai assobiando em murmúrio. Ouve
vozes na cozinha do cafezeiro, imagina que eles já estão nos serviços tomar e
servir. Leva as mãos à tramela que gira ao redor do prego e abre a porta.
O jovem Supimpa conversa com a mãe,
explica um pedacinho do que vem fazendo das ordens do delegado Calçacurta. A
mãe se põe de ouvidos atentos. As mãos estão entrelaçadas sobre o colo. Fala do
orgulho que sente do filho ter alcançado jeito de chefe em tão pouco tempo de
trabalho — Mãe... estou no controle desses agentes que se infiltram no meio do
povo. — É?
— Essa
gente quer fazer baderna, provocar o desacerto. — o filho fala e anuncia o seu
jeito de mandar e desmandar. Com ele não tem muito choro. Pediu indicação para
ficar sob os custos do manco — Quem é esse?
— O
chefe dos chefes... — o guri está tão imprensionado que já não esconde o seu próprio
andar mancado. Imita o homem que manda, ele agora tem a voz e o aleijume do Calçacurta.
Na verdade, deixa de camuflar o seu mancar por gosto de se mostrar um mancador.
Ogum se espreme na conversa, sabe que a
quem quer não faltam meios e, lá na frente, as obras mostram o que cada um é.
Coitada da Maria — Rapaz, tu tá a serviço dessa gente bandida.
— As
ordens são pra aborrecer os baderneiros. — param a conversa entre si, atentos
aos movimentos do Manualdo, quando ele entra na cozinha
— O
assunto chegou? — pergunta provocador o recém chegado — Deixa de bobagem. — é a
resposta da Memória.
O intruso puxa um banco e senta. A mulher
lhe estende uma xícara e serve o seu café preto, não usa combinação de
leite. Fatia um pedaço de pão, não aproveita mistura no pão amanhecido. Segue
sentindo apenas um gosto doce antes do almoço, o encanto do gozo da sua
Cariciosa.
Manualdo
faz um aceno para que continuem, mas o rapaz se sente constrangido. Está
contrafeito com aquela invasão. As pessoas valem pelo que podem falar e ele já
estava falando demais. Não podia ficar relatando confidências da Adega — O que é isso de Adega?
— É um jeito de falar, Manualdo.
— Meu filho, deixa de despistar como um
bêbado e responde direito. — as mães parecem que têm um direito universal sobre
seus filhos, mas não podem com a cegueira daquilo que não querem ver — É um
prédio de alguns andares e uma garagem no porão.
— E...
— É ali que fazemos a interrogação dos
suspeitos.
Os mais
velhos se olham desconfiados, enquanto a Memória mantém os olhos cravados no
guri, a catarata do amor lhe deixa ver apenas o que seu coração espremido consegue suportar, mas os ouvidos decentes perseguem além das palavras comedidas e
raciocinadas muito tempo antes. Quando os versos são muito planejados, ela
tem medo do que podem estar escondendo. Sente vontade de colocar o seu menino
no colo e cantar cantigas de ninar, enquanto lhe faz conselhos de mãe: aqui se faz
e aqui se paga — Filho... tem certeza que quer fazer isso?
— Ali, a gente luta contra a insinuação
dos bolcheviques! É trabalho de utilidade...
— Num porão?
— Esses comunistas estão por toda parte...
já entraram nos sindicatos!
Manualdo
mantinha o seu café esfriando na xícara e a atenção no aprendiz de polícia: Supimpa.
A mãe e Ogum também não desgrudavam os olhos e ouvidos do agente investigador.
Tinham se mantido longe dessa porcaria de milicos, comunistas, por anos a fio, e
agora, esse menino Supimpa joga tudo em cima da mesa. Numa conversa de família
— Mãe, eu tenho a obrigação pessoal de vigiar um preso, não posso revelar o
nome, mas o cara é muito esquisito.
— Por quê?
— Eu tenho que cuidar que ele não se mate.
— Meu Deus! Por quê?
— Sei lá, os caras perdem o rumo depois de
muita porrada.
— Meu filho...
— Mãe... é preciso dar uma pressão, ninguém
fala por vontade de falar.
— Supimpa!
— Mãe... não se preocupe, a missão
de dar porrada não é comigo.
— Meu filho, não gosto dessa coisa de
bater e sei lá mais o quê.
— Mãe... estamos em guerra!
— Guerra!
— Isso mesmo, mãe... uma guerra! O lado do
bem e o outro lado, os comunistas! Essa gente não respeita Deus, nem a família,
comem as nossas crianças pelas ideias.
O bugre toma o seu café frio em um só gole e sai para as despedidas com a Cariciosa. Diz
um bom dia murcho e confuso aos parentes. Quando desaparece para os
empilhamentos deixa sua mulher desperta com as obrigações de se erguer com
as crianças e sair para o mercadinho. Ogum levanta da mesa e termina seus
preparativos para ir ao trabalho. Tem um olhar acabrunhado e amolado. Parece
querer dizer algo, mas cala. Pensa que o menino não sabe no que foi se meter —
Mulher, esse caminho não tem fronteira.
— Não me assusta Ogum...
— Conversa com ele, tenta saber mais.
— Vou tentar.
— Vou indo...
Encontra
com Manualdo e os dois saem. O mais novo pedalando. Ogum na carona.
Silencioso.
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Leia também:
30 - Sim, senhor! Meu senhor!
32 - Giovana grita por Beijamim
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