quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa: XXXVII Os Benefícios da Lua

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa



XXXVII

OS BENEFÍCIOS DA LUA 


A Lua, que é a personificação do capricho, olhou pela janela, enquanto dormias no teu berço, e disse consigo: — Gosto desta criança. 

Desceu preguiçosamente a escada de nuvens e passou de mansinho pelas vidraças. 

Depois, estendeu-se em cima de ti com a ternura macia de uma mãe e coloriu o teu rosto. 

Tuas pupilas ficaram verdes e tuas faces extraordinariamente pálidas. Foi ao contemplar essa visitante que os teus olhos aumentaram de um modo tão estranho. E foi tal a ternura com que apertou tua garganta que ficaste para sempre com vontade de chorar. 

Na expansão de sua alegria, a Lua enchia todo o quarto como uma atmosfera fosfórica, como um luminoso veneno. E toda aquela luz viva pensava e dizia: — Sofrerás eternamente a influência do meu beijo. Serás bela à minha maneira. 

Amarás o que eu amo e o que me ama: a água, as nuvens, o silêncio e a noite; o mar verde e imenso; a água informe e multiforme; o lugar onde não estiveres; o amante que não conheceres; as flores monstruosas; os perfumes que fazem delirar; os gatos pasmados em cima dos pianos e gemendo como mulheres, com uma voz rouca e macia. Serás amada por meus amantes, cortejada por meus cortesãos. Serás a rainha dos homens de olhos verdes, cuja garganta eu também apertei nas minhas carícias noturnas; daqueles que amam o mar, o mar imenso, tumultuoso e verde, a água informe e multiforme, o lugar onde não estão, a mulher que não conhecem, as flores sinistras que parecem incensórios de uma religião desconhecida, os perfumes que perturbam a vontade, e os voluptuosos animais selvagens que simbolizam a loucura desses homens É por isso, maldita e querida enfant gatée, que eu agora estou deitado aos teus pés, procurando em toda a tua pessoa o reflexo da temível Divindade, da fatídica madrinha, da ama que envenena os lunáticos.



XXXVIII

QUAL É A VERDADEIRA?



Conheci uma certa Benedita que enchia a atmosfera de ideal e cujos olhos difundiam o desejo da grandeza, da beleza, da glória e de tudo o que faz acreditar na imortalidade. 

A maravilhosa rapariga era, porém, demasiado bela para viver muito tempo: morreu alguns dias depois que a conheci e eu mesmo a enterrei, num dia em que a primavera agitava o seu incensório até nos cemitérios. Fui eu que a enterrei, bem fechada dentro de um tufo perfumado e incorruptível como os cofres da Índia. 

Quando os meus olhos se fixaram no lugar onde estava escondido o meu tesouro, surgiu diante de mim um pequeno vulto singularmente parecido coma defunta e que, batendo os pés na terra fresca com uma violência histérica e estranha, me disse soltando uma gargalhada: — Sou eu a verdadeira Benedita! Sou eu a famosa canalha! E, como castigo da tua loucura e de tua cegueira, hás de amar-me tal e qual eu sou! Furioso, respondi-lhe: — Não, não e não! E, para melhor acentuar minha recusa, bati o pé no chão com tanta violência que minha perna afundou até ao joelho na fofa sepultura, e agora, como um lobo pegado no laço, devo ficar, talvez para sempre, ligado à cova do ideal.



XXXIX

UM CAVALO DE RAÇA


É bastante feia. Mas, é deliciosa! O Tempo e o Amor marcaram-na com suas garras e lhe ensinaram o que cada minuto e cada beijo encerram de juventude e frescor. 

É mesmo feia: formiga, aranha, e até esqueleto, se quiserem. Mas é bebida, magistério, feitiço! Em suma, é esquisita. 

O Tempo não pôde quebrar-lhe a crepitante harmonia do andar, nem a elegância indestrutível do porte. O Amor não lhe alterou a suavidade do hálito de criança. Nada lhe tirou o Tempo da farta cabeleira que exala, em selváticos perfumes, toda a endiabrada vitalidade do Meio-dia francês: Nimes, Aix, Arles, Avignon, Narbonne, Toulose, cidades abençoadas de sol, encantadoras e amorosas! O Tempo e o Amor morderam-na em vão com seus grandes dentes: nada diminuíram o encanto vago, mas eterno, do seu colo de moça. 

Gasta, talvez, mas não fatigada, e sempre heroica, ela faz pensar nesses cavalos puro-sangue que os olhos do verdadeiro amador reconhecem, mesmo quando atrelados a um carro de aluguel ou a uma pesada carroça. 

Além disso, como é delicada e ardente! Ama como se ama no outono: dir-se-ia que a aproximação do inverno lhe acende no coração um fogo novo, e a servil idade de sua ternura nada tem de fatigante.


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Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 — Paris, 31 de agosto de 1867) foi um poeta boémio ou dandy ou flâneur e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.
Nasceu em Paris a 9 de abril de 1821. Estudou no Colégio Real de Lyon e Lycée Louis-le-Grand (de onde foi expulso por não querer mostrar um bilhete que lhe foi passado por um colega).
Em 1840 foi enviado pelo padrasto, preocupado com sua vida desregrada, à Índia, mas nunca chegou ao destino. Pára na ilha da Reunião e retorna a Paris. Atingindo a maioridade, ganha posse da herança do pai. Por dois anos vive entre drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval. Em 1844 sua mãe entra na justiça, acusando-o de pródigo, e então sua fortuna torna-se controlada por um notário.
Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O autor do livro é acusado, no mesmo ano, pela justiça, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos, pagando de multa o escritor 300 francos e a editora 100 francos.
Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreve seis novos poemas, "mais belos que os suprimidos", segundo ele.
Mesmo depois disso, Baudelaire tenta ingressar na Academia Francesa. Há divergência, entre os estudiosos, sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem que foi para se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que ele recebia da burguesia.
Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse, em Paris.

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