sábado, 12 de janeiro de 2019

Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Tesoura Inglesa (XIV)

Livro I 

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XIV

A TESOURA INGLESA

Uma jovem de dezesseis anos tinha uma pele rósea, e cobria-se de ruge. 

POLIDORI






QUANTO A JULIEN, a oferta de Fouqué lhe havia de fato tirado todo sossego: ele não conseguia decidir-se por nada. Ai! Talvez me falte caráter, eu teria sido um mau soldado de Napoleão! Pelo menos, acrescentou, meu pequeno namoro com a dona da casa irá distrair-me um pouco. 

Felizmente para ele, mesmo nesse pequeno incidente subalterno, o íntimo de sua alma correspondia mal à sua linguagem inconveniente. Ele tinha medo da sra. de Rênal por causa de seu vestido tão bonito. Esse vestido significava para ele a vanguarda de Paris. Seu orgulho nada quis deixar ao acaso e à inspiração do momento. Baseado nas confidências de Fouqué e no pouco que lera sobre o amor em sua Bíblia, elaborou um plano de campanha bastante detalhado. E como, sem que o admitisse, estava muito agitado, escreveu esse plano. 

Na manhã seguinte, na sala, a sra. de Rênal ficou um instante a sós com ele. 

– Não tem um outro nome além de Julien? ela perguntou. 

A essa pergunta tão lisonjeira, nosso herói não soube o que responder. Tal circunstância não estava prevista em seu plano. Sem essa tolice de fazer um plano, o espírito vivo de Julien teria se saído bem, a surpresa apenas acrescentaria vivacidade a suas ideias. 

Ficou desajeitado e exagerou sua falta de jeito, o que a sra. de Rênal prontamente lhe perdoou. Viu nisso o efeito de uma candura encantadora. E o que para ela faltava nesse homem, no qual viam tanto gênio, era precisamente o ar de candura. 

– Teu preceptorzinho inspira-me muita desconfiança, dizia-lhe às vezes a sra. Derville. Dá-me a impressão de estar sempre pensando em alguma coisa e de só agir com política. É um dissimulado. 

Julien sentiu-se profundamente humilhado por não ter sabido o que responder à sra. de Rênal. 

Um homem como eu deve reparar esse fracasso, e, aproveitando o momento em que passavam de uma peça para outra, julgou ser seu dever dar um beijo na sra. de Rênal. 

Nada menos natural, nada menos agradável tanto para ele quanto para ela, nada mais imprudente. Por pouco não foram vistos. A sra. de Rênal achou que ele endoidecera. Ficou assustada e principalmente chocada. Essa tolice lembrou-lhe o sr. Valenod

Que teria acontecido, pensou, se eu estivesse sozinha com ele? Toda a sua virtude voltou, porque o amor se eclipsava. 

Deu um jeito para que um dos filhos ficasse sempre junto dela. 

A jornada foi aborrecida para Julien, ele a passou inteiramente a executar com inabilidade seu plano de sedução. Não olhou uma única vez para a sra. de Rênal sem que esse olhar não tivesse uma intenção; contudo, não era tão tolo para não perceber que não conseguia ser amável e muito menos sedutor. 

A sra. de Rênal não se refazia do espanto de achá-lo tão inábil e ao mesmo tempo tão ousado. É a timidez do amor num homem de espírito!, ela pensou, por fim, com uma alegria inexprimível. É possível que ele jamais tenha sido amado por minha rival! 

Depois do almoço, a sra. de Rênal voltou à sala para receber a visita do sr. Charcot de Maugiron, o subprefeito de Bray. Ela ocupava-se com um trabalho de tapeçaria muito delicado. A sra. Derville estava a seu lado. Foi nessa situação, e em pleno dia, que nosso herói achou conveniente avançar sua bota e pressionar o pé encantador da sra. de Rênal, cuja meia rendada e o sapatinho de Paris atraíam evidentemente os olhares do galante sub​prefeito. 

A sra. de Rênal sentiu um medo extremo; deixou cair sua tesoura, seu novelo de lã, suas agulhas, e o movimento de Julien pôde parecer uma tentativa canhestra de impedir a queda da tesoura, que ele vira escorregar. Felizmente, essa tesoura de aço inglês partiu-se, e a sra. de Rênal não deixou de lamentar que Julien não estivesse mais perto dela. 

– O senhor teria percebido a queda antes de mim e seu zelo a teria evitado, sem que precisasse dar-me um pontapé. 

O subprefeito deixou-se enganar por tais palavras, mas não a sra. Derville. Esse moço tem uns modos muito tolos!, ela pensou; a boa educação de uma capital de província não perdoa faltas desse tipo. A sra. de Rênal encontrou o momento de dizer a Julien: 

– Seja prudente, ordeno-lhe. 

Julien percebia sua inabilidade e estava irritado. Deliberou por muito tempo consigo mesmo para saber se devia zangar-se com a frase: Ordeno-lhe. Foi bastante tolo para pensar: ela poderia dizer-me ordeno-lhe se fosse algo relativo à educação das crianças; mas, corres​pondendo ao meu amor, ela deve supor uma igualdade. Não se pode amar sem igualdade...; e seu espírito perdia-se em lugares-comuns sobre a igualdade. Ele repetia com raiva o verso de Corneille que a sra. Derville lhe dissera alguns dias antes: 


....................................... L´amour
Fait les égalités et ne les cherche pas
.
4


4 O amor faz a igualdade sem buscá-la. (N.T.)



Obstinando-se em desempenhar o papel de um Don Juan, sem nunca na vida ter tido amante, Julien portou-se o dia inteiro como um tolo. Só teve uma ideia justa; aborrecido consigo mesmo e com a sra. de Rênal, ele via com pavor chegar a noite, quando estaria sentado no jardim, ao lado dela e na escuridão. Disse ao sr. de Rênal que iria a Verrières ver o cura; partiu depois da janta e só voltou muito tarde. 

Em Verrières, Julien encontrou o sr. Chélan ocupado em mudar-se; fora finalmente destituído, o vigário Maslon o substituía. Julien ajudou o bom cura e teve a ideia de escrever a Fouqué que a vocação irresistível que sentia pelo santo ministério o impedira inicialmente de aceitar suas gentis ofertas, mas que acabava de ver tal exemplo de injustiça que talvez fosse mais vantajoso à sua salvação não entrar para as ordens sagradas. 

Julien felicitou-se por sua astúcia em tirar partido da destituição do cura de Verrières para deixar uma porta aberta e voltar ao comércio, se em seu espírito a triste prudência prevalecesse sobre o heroísmo.





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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.

Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



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Leia também:

Livro I:
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma pequena cidade (I)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Prefeito (II)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Bem dos Pobres (III)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Pai e um Filho (IV)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Negociação (V)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Constrangimento (VI)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: As Afinidadades Eletivas (VII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pequenos Acontecimentos (VIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Noite no Campo (IX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Grande Coração e Uma Pequena Fortuna (X)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Noite (XI)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Viagem (XII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: As meias rendadas (XIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Tesoura Inglesa (XIV)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Canto do Galo (XV)

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