Fiódor Dostoiévski
34.
10 de setembro
Meu querido Makar Alexeievitch:
A sua felicidade causou-me indizível alegria e sei avaliar bem o valor do auxílio do seu superior. Deste modo, o meu bom amigo poderá, finalmente, respirar e descansar das suas preocupações. Agora, por amor de Deus, não gaste mais dinheiro em coisas inúteis, suplico-lhe! Leve uma vida calma e ordenada, o mais econômica possível, e principie, a partir de hoje, a pôr todos os dias alguma coisa de lado, a fim de não tornar a ver-se em tais dificuldades. A falar verdade, não precisa de se preocupar connosco. Nós cá nos arranjaremos. Porque nos mandou tanto dinheiro, Makar Alexeievitch? De fato, não precisamos dele. O que vamos ganhando é-nos suficiente. É certo que daqui a pouco tempo necessitaremos de algum para a mudança; mas a Fédora conta que lhe paguem, até então, uma dívida antiga. Entretanto, fico com vinte rublos para o que der e vier, e devolvo-lhe o restante. Não julgue o dinheiro uma coisa supérflua, Makar Alexeievitch, peço-lhe!
Adeus, meu amigo. Desejo que continue tranquilo e se conserve de saúde e cheio de alegria.
Por minha vontade, escreveria uma carta mais extensa; mas sinto-me muito cansada. Ontem estive de cama durante todo o dia. Fiquei muito contente com a promessa da sua visita. Não demore, Makar Alexeievitch. Olhe que estou à sua espera.
Sua
B. D.
11 de setembro
Minha querida Bárbara Alexeievna:
Rogo-lhe, meu anjo, que se não esqueça de que agora sou completamente feliz e tudo corre à medida dos meus desejos. Não faça caso da Fédora, minha querida! Prometo fazer-lhe tudo o que a minha boa amiga quiser. De futuro, hei de comportar-me bem, de maneira digna e decente, quando por outro motivo não fosse, em atenção a sua excelência. Recomeçaremos a troca de cartas alegres; confiaremos um ao outro os nossos pensamentos e também as nossas alegrias e preocupações, se é que havemos de ter estas últimas; voltaremos de novo a viver uma vida feliz e em boa harmonia... Dedicar-nos-emos à literatura. Agora, tudo na minha vida tende a melhorar, anjo do meu coração! A minha patroa já conversa comigo. A Teresa tornou-se mais atenciosa e até Faldoni me é mais prestável. Fiz as pazes com Ratazaiev. A alegria que me ia na alma impeliu-me para ele outra vez. Realmente, é um bom rapaz, querida Bárbara, e tudo o que de mal disseram dele não passa de pura mentira e disparate; tive agora oportunidade de verificar que se tratava de uma odiosa calúnia. Nunca lhe passou pela cabeça escrever qualquer sátira a nosso respeito; isso era mentira. Foi ele próprio que me afirmou, e até me leu a sua última obra. E quanto a ter-me posto a alcunha de Don Juan... isso não me traz mal algum, nem tal denominação tem nada de ofensivo. Explicou-me o que queria dizer. É um termo estrangeiro, que significa, mais ou menos, rapaz esperto, ou, exprimindo-me em linguagem mais polida, isto é, mais literária, cavalheiro galante. E é tudo. Assim, tratava-se, como vê, simplesmente de um gracejo inofensivo, meu anjo! Sou tão ignorante, que o havia tomado por uma ofensa, pelo que já hoje lhe apresentei as minhas desculpas...
Que bonito dia está hoje, querida Bárbara! É certo que de manhã havia alguma neve; mas isso não importa: torna o ar mais fresco. Fui comprar umas botas, e adquiri um par esplêndido, absolutamente irrepreensível... Em seguida dei um passeio pela Nevski e depois li o jornal. Sim, e com isto esquecia-me de lhe contar o mais importante!
É isto, ora ouça:
Que bonito dia está hoje, querida Bárbara! É certo que de manhã havia alguma neve; mas isso não importa: torna o ar mais fresco. Fui comprar umas botas, e adquiri um par esplêndido, absolutamente irrepreensível... Em seguida dei um passeio pela Nevski e depois li o jornal. Sim, e com isto esquecia-me de lhe contar o mais importante!
É isto, ora ouça:
Hoje de manhã estive à conversa com Emelia Ivanovitch e Aksenti Michaelovitch, e falamos de sua excelência. É verdade, querida Bárbara; não foi só para comigo que sua excelência teve gestos de bondade. A sua caridade tem-se estendido também a outras pessoas e toda a gente conhece bem os tesouros do seu coração. São muitos, mesmo muitos os indivíduos que exaltam as suas bondosas qualidades e vertem lágrimas de sincero agradecimento pelo bem que ele lhes fez. Sua excelência tomou conta de uma órfã e educou-a em sua casa, e depois casou-a com um empregado dos que trabalham diretamente sob as suas ordens; e não contente com isso, ainda lhe destinou um bom dote. Além disso, sua excelência colocou numa chancelaria o filho de uma pobre viúva. E muitos outros atos de generosidade se lhe podem apontar. Achei que era meu dever, querida, entrar na conversa, e pus em destaque o que ele fizera por mim; contei tudo, sem omitir a mínima particularidade, e fi-lo desassombradamente. Tratando-se de um gesto de tão grande alcance, pus de lado toda a timidez e toda a circunspeção e referi o caso em voz alta, para que todos ouvissem. Sim, muito alto, a fim de tornar bem conhecidas as nobres ações de sua excelência. Falei com calor e entusiasmo e fi-lo sem corar, antes, pelo contrário, sentia-me orgulhoso por poder contar semelhante episódio.
No meu relato, apenas omiti, felizmente, o que se relaciona consigo, minha querida; essa circunstância, passei-a em claro, muito discretamente. Mas o respeitante à patroa, a Faldoni, a Ratazaiev, a Markov e às minhas botas, foi tudo contado pormenorizadamente... Alguns riram-se de mim um pouco, ou, melhor dizendo, todos fizeram caçoada... Mas ao menos todo riam! Pelo visto sempre encontraram em mim algum motivo de riso. Talvez se rissem só das minhas botas! No entanto, creio que não o faziam com má intenção, pois são incapazes disso. O mais certo é aqueles risos serem devidos à juventude dos colegas que me ouviam, ou então ao fato de não terem falta de dinheiro. Porém, repito, não devia existir má intenção ou sentido hostil nos risos que com as minhas palavras provoquei. Sim, pois não creio que fosse de sua excelência... Não; de sua excelência nunca se atreveriam a fazer pouco... Não lhe parece, querida Bárbara?
Foram bem tristes aqueles dias, querida Bárbara! Mas não vale a pena recordá-los, uma vez que já passaram!... À medida que os anos forem andando, poderemos falar desses tempos. Não evoco com tanta saudade a minha infância? No entanto, o que eu sofri então! Às vezes não dispunha de um único kopek. Passava frio e fome; mas senti-me sempre contente.
De manhã ia até Nevski, deparava-se-me uma cara bonita... e lá se iam os sofrimentos por aquele dia. Bons tempos, maravilhosos tempos aqueles, apesar de tudo, meu amor! Dá gosto viver neste mundo, querida Bárbara! Sobretudo em S. Petersburgo. Ontem fiz ato de contrição diante de Deus, com lágrimas nos olhos, para que me perdoe todos os pecados que nessa dolorosa época cometi: maus pensamentos, embriaguez e jogo. E também me lembrei de si nas minhas orações. Foi a minha única consolação, meu anjo, a única pessoa que me deu bons conselhos e me ajudou a vencer todas as dificuldades. Isso, meu amor, jamais o esquecerei! Hoje beijei as suas cartas, uma a uma, meu anjo! Mas, com isto, adeus!
Ouvi dizer que há por aqui perto quem venda um fato. É que também quero melhorar o meu exterior. Mais uma vez adeus, meu anjo; Deus lhe dê saúde e até à vista.
Seu de alma e coração
Makar Dievuchkin
Makar Dievuchkin
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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.
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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com
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