Edgar Allan Poe - Contos
Um Homem na Lua
Título original: The Unparalleled Adventure of One Hans Pfaall
Publicado em 1835
Cheio o coração de delirantes fantasias
Que eu capitaneio,
Com uma lança de fogo e um cavalo de ar
Viajo através da imensidade.
— Canção de Tom O’Fedlan
continuando...
«Vejamos agora outro facto. Observa-se que o diâmetro real da parte nebulosa deste mesmo cometa se contrai rapidamente à medida que se aproxima do sol e se dilata com a mesma rapidez quando se aproxima do seu afélio. Não tinha eu razão para supor, com Valz, que esta aparente condensação de volume tinha a sua origem na compressão desse meio etéreo do qual falava há um momento, e cuja densidade é proporcional à proximidade solar?
«O fenômeno, que assume a forma lenticular e que se chama luz zodiacal, era também um ponto digno de atenção. Esta luz tão visível nos trópicos, e impossível de confundir com uma luz meteórica qualquer, eleva-se obliquamente do horizonte e segue em geral a linha do equador solar. A mim parecia-me provir de uma atmosfera rarefeita que se estendesse do sol até para além da órbita de Vénus pelo menos, e, segundo a minha opinião, muito mais longe ainda.
«Não podia supor que este meio estivesse limitado pela linha de percurso do cometa ou confinasse imediatamente com o Sol. Era, pelo contrário, bem sensato imaginar que invadia todas as regiões do nosso sistema planetário, condensando-se em volta dos planetas naquilo que chamamos atmosfera e modificando-se talvez em alguns por circunstâncias puramente geológicas. Quer dizer, modificado ou variado nas suas proporções ou na sua natureza essencial pelas matérias volatizadas que emanam dos seus respetivos globos.
«Tomando a questão sob este ponto de vista, já não havia que vacilar. Supondo que encontraria, ao passar, uma atmosfera essencialmente semelhante à que envolve a superfície da Terra, pensei que por meio do engenhosíssimo aparelho de Grimm poderia facilmente condensá-la em quantidade necessária para as necessidades respiratórias. Desta maneira vencia o principal obstáculo de uma viagem à Lua. Empreguei algum dinheiro e muito trabalho em adaptar o aparelho de Grimm a este fim, e tinha, portanto, completa confiança na sua aplicação, desde que pudesse efetuar a viagem num espaço de tempo suficientemente curto.
«Vejamos agora o assunto da velocidade. Toda a gente sabe que os balões, no primeiro período da sua ascensão, se elevam com uma velocidade relativamente moderada. A força de ascensão está na relação que existe entre o peso do ar e o do gás que contém o balão, e, à primeira vista, não parece muito provável nem verosímil que o balão, à medida que ganha em altura e chega sucessivamente a camadas atmosféricas de densidade decrescente, possa ganhar em rapidez e acelerar a sua velocidade primitiva. Por outro lado, não me recordava de ter lido, pelos resultados de nenhuma experiência anterior, que se comprovasse uma diminuição aparente na velocidade absoluta da ascensão, embora tal coisa pudesse suceder tendo em conta a fuga do gás através de um aeróstato mal confeccionado e geralmente coberto de verniz insuficiente. Parecia-me, portanto, que o efeito desta perda podia compensar apenas a aceleração adquirida pelo balão à medida que se afastasse do centro de gravidade.
«Pois bem: eu pensava que, desde que encontrasse na minha travessia o meio imaginado, e desde que fosse da mesma composição do que chamamos ar atmosférico, era pouco importante o seu grau de rarefação sob o ponto de vista da minha força ascensional, porque não só o gás do balão se via submetido à mesma rarefação, mas também porque, pela natureza das suas partes integrantes, devia ser especificamente mais leve que um composto qualquer de oxigênio e de azote. Havia, portanto, uma possibilidade e até uma forte probabilidade para que em nenhum momento da minha ascensão chegasse a um ponto em que os pesos retinidos do balão, do gás inconcebivelmente rarefeito que continha, da barquinha e de todo o resto, pudessem igualar o peso da atmosfera deslocada. Compreenderão assim Vossas Excelências que esta era a única condição capaz de me deter na minha fuga ascensional; mas, supondo que se desse este caso, ainda me ficava a faculdade de dispor do lastro e de outros pesos que somavam um total de 300 libras.
«Ao mesmo tempo, como a força centrípeta iria diminuindo em razão do quadrado das distâncias, chegaria, com uma velocidade prodigiosamente acelerada, às longínquas regiões onde a força de atração da terra seria substituída pela da Lua.
«Por último, restava outra dificuldade não isenta de inquietação para mim. Tinha-se observado anteriormente que nas ascensões a uma altura considerável, além da dificuldade respiratória, se sente na cabeça e por todo o corpo um profundo mal-estar, acompanhado frequentemente de hemorragias nasais e de outros sintomas alarmantes, cada vez menos suportáveis à medida que se atinge maior altura. Não seria provável que esses fenômenos aumentassem até terminarem com a própria morte? No entanto, após madura reflexão, concluí que não.
«Era preciso procurar a origem disso na desaparição progressiva da pressão atmosférica, à qual está acostumada a superfície do nosso corpo, e na distensão inevitável dos vasos sanguíneos superficiais, mas não numa desorganização positiva do sistema animal como no caso da dificuldade respiratória, onde a densidade atmosférica é quimicamente insuficiente para a renovação regular do sangue no ventrículo do coração. Só no caso de faltar esta renovação havia motivo suficiente para que a vida não subsistisse, inclusive no vácuo, porque a expansão e a compressão do peito que se chama respiração não é mais que um ato puramente muscular. Não é a causa mas o efeito da respiração.
«Numa palavra: estava certo de que, habituando-se o corpo à ausência da pressão atmosférica, estas sensações dolorosas diminuiriam gradualmente e, para as suportar todo o tempo necessário, confiava na solidez férrea da minha constituição.
«Uma vez expostas algumas das considerações — não todas certamente — que me levaram a projetar uma viagem à Lua, vou agora, com permissão de Vossas Excelências, expor o resultado de uma tentativa tão audaz e sem precedentes nos anais da humanidade».
«Tendo alcançado a altura a que me referi anteriormente, ou seja três milhas e três quartos, deitei fora da barquinha algumas penas e vi que continuava subindo com bastante rapidez; não precisava, portanto, de deitar fora qualquer lastro. Isto satisfez-me, porque desejava conservar a maior quantidade de lastro possível pela sensata razão de que não tinha nenhum dado positivo sobre o poder de atração e sobre a densidade atmosférica da Lua. Sentia-me perfeitamente bem, sem nenhum mal-estar físico; respirava com inteira liberdade e não tinha a mais pequena dor de cabeça. A gata deitara-se solenemente sobre o meu capote colocado ao fundo da barquinha, e olhava para as pombas com ar desdenhoso. Estas, a que atara as patas para impedir que voassem, estavam muito entretidas em bicar alguns grãos de arroz que lhes deitara.
«Às seis e vinte o barômetro assinalava uma altura de 26400 pés, ou seja cinco milhas pouco mais ou menos. A perspetiva era ilimitada. Nada mais fácil, poi outro lado, que calcular com a ajuda da trigonometria esférica a extensão da superfície terrestre que os meus olhos dominavam. A superfície convexa de um segmento de esfera está para a superfície total da esfera como o seno-verso do segmento está para o diâmetro da esfera. Mas, no meu caso, o seno-verso, isto é, a espessura do segmento situado debaixo de mim, era pouco mais ou menos igual à minha elevação ou ao ponto de vista por cima da superfície. A proporção de cinco para oito milhas exprimiria, portanto, a extensão da superfície visível, quer dizer: via somente uma mil seiscentésima parte da superfície do globo terrestre.
«O mar parecia polido como um espelho, embora com a ajuda de um telescópio descobrisse que se encontrava em estado de violenta agitação. O navio já não era visível. Repentinamente, comecei a sentir uma forte dor de cabeça, que se repetia com intermitências, embora continuasse a respirar com toda a liberdade. A gata e as pombas não pareciam sentir o menor mal.
«Às sete menos vinte entrou o balão na região de uma enorme e espessa nuvem, o que me aborreceu muito. Avariou-se o aparelho condensador e eu fiquei molhado até aos ossos. Era de facto um encontro muito estranho, porque não era lógico que uma nuvem desta natureza pudesse elevar-se a semelhante altura. Atirei fora dois pedaços de lastro de cinco libras cada um; restavam-me, portanto, 165.
«Graças a esta operação, atravessei rapidamente o obstáculo e, em seguida, apercebi-me de que tinha ganho velocidade de uma maneira prodigiosa. Poucos segundos depois de ter abandonado a nuvem esta foi atravessada por um relâmpago que cegava, e que a incendiou totalmente, dando-lhe o aspeto de uma enorme massa carbonífera em ignição. Não se esqueçam de que isto aconteceu à plena luz da manhã. Imaginem o que seria, de sublime este fenômeno se se desenrolasse nas trevas da noite. Unicamente o inferno nos poderia dar imagem exata.
«Aquele espetáculo eriçou-me os cabelos, e, no entanto, não podia deixar de mergulhar o olhar nos ígneos abismos daquele fogo espantoso e sinistro.
«Tinha escapado de boa. Se o balão tivesse permanecido um minuto mais na nuvem, isto é, se o mal-estar sentido não me tivesse obrigado a deitar lastro fora, a minha destruição teria sido imediata. Essa espécie de perigos são os maiores que podem correr os aeronautas. Não obstante tinha alcançado já uma altura tal que podia conservar-me tranquilo.
«Às sete o barômetro assinalava nove milhas e meia. Eu começava a sentir uma grande dificuldade respiratória. Doía-me a cabeça terrivelmente. Notando umidade nas faces levei as mãos até elas, e vi-as tintas com sangue que brotava dos ouvidos. Não me inquietava menos o aspeto dos meus olhos. Ao tocar-lhes com a mão, parecia-me que tinham saído das órbitas de uma maneira inconcebível; todos os objetos da barquinha, inclusive o próprio balão, apresentavam-se à minha vista sob um aspeto monstruoso.
«Como todos esses sintomas excediam o que eu havia suposto, cheguei a alarmar-me seriamente e cometi a imprudência de deitar fora da barquinha mais quinze libras de lastro. A velocidade aceleradíssima da ascensão levou-me rapidamente e sem gradações sucessivas a uma camada atmosférica singularmente rarefeita, o que esteve quase a fazer terminar fatalmente a minha expedição e a minha vida.
«Sofri um espasmo que durou mais de cinco minutos, e ainda depois deste terminar não podia respirar senão depois de longos intervalos e de uma maneira convulsiva, sangrando copiosamente pelo nariz, pelos ouvidos, e até, um pouco, pelos olhos. As pombas pareciam presas de uma angústia excessiva e debatiam-se, procurando fugir, enquanto a gata miava lamentosamente, tremendo, retorcendo-se como sob a influência de um veneno poderoso.
«Dei conta demasiado tarde da imensa imprudência que cometera atirando fora aquelas quinze libras de lastro. Aguardava a morte, e o enorme sofrimento físico contribuía para inutilizar qualquer esforço para salvar a vida. Tinha perdido, inclusivamente, a faculdade de refletir, e a violência da dor de cabeça aumentava de minuto a minuto.
«No preciso momento em que pude aperceber-me instintivamente de que ia perdei o conhecimento, e quando empunhava uma das cordas da válvula de escape, lembrei-me da partida que tinha pregado aos meus três credores, e o temor das consequências que poderiam resultar do meu regresso à terra fizeram-me mudar de opinião. Deixei-me cair no fundo da barquinha, e procurando, com um esforço enorme, recobraras minhas ideias, lembrei-me de fazer a mim próprio uma sangria. Mas, como não tinha lanceta, vi-me obrigado a abrir uma das veias do braço esquerdo com uma navalha. Mal tinha começado a correr o sangue comecei a experimentar grande alívio, e, vertida uma regular porção, desapareceram quase por completo os perigosos sintomas.
«Não me parecia, no entanto, prudente pôr-me de pé; assim, pois, liguei o braço o melhor que pude e permaneci imóvel um quarto de hora, aproximadamente. Ao cabo desse tempo, levantei-me e sentei-me quase livre de todo o mal.
«Mas a dificuldade de respiração não diminuíra senão muito ligeiramente, e compreendi a urgência de utilizar o condensador.
«Ao passar a vista em torno de mim, vi que, comodamente instalada de novo sobre o meu capote, a gata considerara oportuno, durante a minha indisposição, dar à luz cinco gatinhos. Claro está que eu não podia esperar esse suplemento de passageiros; mas no meio da minha aventura, tal acontecimento fez-me rir. Fornecia-me, além disso, ocasião para comprovar uma das minhas conjeturas, aquela que mais me decidiu à expedição.
«Supusera eu que o hábito da pressão atmosférica na superfície da terra causava, em grande parte, as dores que atacam a vida animal a determinada altura dessa superfície. Se os gatinhos sentissem o mal-estar no mesmo grau que a mãe, era falsa a minha teoria; mas, em caso contrário, confirmaria que eu tinha razão.
continua...
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (01)
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (02)
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (04)
continua...
______________________
Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense.[1][2] Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica.[3] Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.
____________________
Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
_____________________
Leia também:
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (02)
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (04)
Nenhum comentário:
Postar um comentário