domingo, 15 de dezembro de 2019

Pedagogia do Oprimido - Ninguém Educa Ninguém (3)

Paulo Freire








“educação como prática da liberdade”:

alfabetizar é conscientizar 



AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



2. A concepção «bancária» da educação como instrumento da opressão. Seus pressupostos, sua crítica



Ninguém Educa Ninguém, NINGUÉM
Educa a Si Mesmo, os homens se educam entre si,
mediatizados pelo MUNDO (3)





Em verdade, não seria possível à educação problematizadora, que rompe com os esquemas verticais característicos da educação bancária, realizar- se como prática da liberdade, sem superar a contradição entre o educador e os educandos. Como também não lhe seria possível fazê-lo fora do diálogo.

É através deste que se opera a superação de que resulta um termo novo: não mais educador do educando do educador, mas educador-educando com educando -educador.

Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já, não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas.

Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática “bancária”, são possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos.

Esta prática, que a tudo dicotomiza, distingue, na ação do educador, dois momentos. O primeiro, em que ele, na sua biblioteca ou no seu laboratório, exerce um ato cognoscente frente ao objeto cognoscível, enquanto se prepara para suas aulas. O segundo, em que, frente aos educandos, narra ou disserta a respeito do objeto sobre o qual exerceu o seu ato cognoscente.

O papel que cabe a estes, como salientamos nas páginas precedentes, é apenas o de arquivarem a narração ou os depósitos que lhes faz o educador. Desta forma, em nome da “preservação da cultura e do conhecimento”, não há conhecimento, nem cultura verdadeiros.

Não pode haver conhecimento pois os educandos não são chamados a conhecer, mas a memorizar o conteúdo narrado pelo educador. Não realizam nenhum ato cognoscitivo, uma vez que o objeto que deveria ser posto como incidência de seu ato cognoscente é posse do educador e não mediatizador da reflexão critica de ambos.

A prática problematizadora, pelo contrário, não distingue estes momentos no quefazer do educador-educando.

Não é sujeito cognoscente em um, e sujeito narrador do conteúdo conhecido em outro. 

É sempre um sujeito cognoscente, quer quando se prepara, quer quando se encontra dialogicamente com os educandos.

O objeto cognoscível, de que o educador bancário se apropria, deixa de ser, para ele, uma propriedade sua, para ser a incidência da reflexão sua e dos educandos.

Deste modo, o educador problematizador re -faz, constantemente, seu ato cognoscente, na cognoscibilidade dos educandos. Estes, em lugar de serem recipientes dóceis de depósitos, são agora
investigadores críticos, em diálogo com o educador, investigador crítico, também.

Na medida em que o educador apresenta aos educandos, como objeto de sua “ad-miração”, o conteúdo, qualquer que ele seja, do estudo a ser feito, “re -admira” a “ad-miração” que antes fez, na “ad- miração” que fazem os educandos.

Pelo fato mesmo de esta prática educativa constituir-se em uma situação gnosiológica, o papel do educador problematizador é proporcionar, com os educandos, as condições em que se dê a superação do conhecimento no nível da “doxa” pelo verdadeiro conhecimento, o que se dá, no nível do “logos”.

Assim é que, enquanto a prática bancária, como enfatizamos, implica numa espécie de anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica num constante ato de desvelamento da realidade. A primeira pretende manter a imersão; a segunda, pelo contrário, busca a emersão das consciências, de que resulte sua inserção crítica na realidade.

Quanto mais se problematizam os educandos, como seres no mundo e com o mundo, tanto mais se sentirão desafiados. Tão mais desafiados, quanto mais obrigados a responder ao desafio. Desafiados, compreendem o desafio na própria aço de captá-lo. Mas, precisamente porque captam o desafio como um problema em suas conexões com outros, num plano de totalidade e não como algo petrificado, a compreensão resultante tende a tornar- se crescentemente crítica, por isto, cada vez mais desalienada.

Através dela, que provoca novas compreensões de novos desafios, que vão surgindo no processo da resposta, se vão reconhecendo, mais e mais, como compromisso. Assim é que se dá, o reconhecimento que engaja.

A educação como prática da liberdade, ao contrário naquela que é prática da dominação, implica na negaço do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também na negaço do mundo como uma realidade ausente dos homens.

A reflexão que propõe, por ser autêntica, não é sobre este homem abstração nem sobre este mundo sem homem, mas sobre os homens em suas relações com o mundo. Relações em que consciência e mundo se dão simultaneamente. Não há uma consciência antes e um mundo depois e vice-versa.

“A consciência e o mundo, diz Sartre, se dão ao mesmo tempo: exterior por essência à consciência, o mundo é, por essência, relativo a ela” [1].



[1] Jean Paul Sartre, El hombre y las Cosas, Buenos Aires, Losada S.A., 1965, pp. 25-6.


Por isto é que, certa vez, num dos “círculos de cultura”. do trabalho que se realiza no Chile, um camponês a quem a concepção bancária classificaria de “ignorante absoluto”, declarou, enquanto discutia, através de uma “codificação”, o conceito antropológico de cultura: “Descubro agora que não há mundo sem homem”. E quando o educador lhe disse: – “Admitamos, absurdamente, que todos os homens do mundo morressem, mas ficasse a terra, ficassem as árvores, os pássaros, os animais, os rios, o mar, as estrelas, não seria tudo isto mundo?”

“Não! respondeu enfático, faltaria quem dissesse: Isto é mundo”. O camponês quis dizer, exatamente, que faltaria a consciência do mundo que, necessariamente, implica no mundo da consciência.

Na verdade, não há eu que se constitua sem um não-eu. Por sua vez, o não-eu constituinte do eu se constitui na constituição do eu constituído. Desta forma, o mundo constituinte da consciência se torna mundo da consciência, um percebido objetivo seu, ao qual se intenciona. Daí, a afirmação de Sartre, anteriormente citada: “consciência e mundo se dão ao mesmo tempo”.

Na medida em que os homens, simultaneamente refletindo sobre si e sobre o mundo, vão aumentando o campo de sua percepção, vão também dirigindo sua “mirada” a “percebidos” que, até então, ainda que presentes ao que Husserl chama de “visões de fundo” [2], não se destacavam, “não estavam postos por si”. 


[2] Edmund Husserl, I D E A S – General Introduction to Pure Phenomenology, 3ª ed., Londres, Collier Books, 1969, pp. 103- 6.


Desta forma, nas suas “visões de fundo”, vão destacando percebidos e voltando sua reflexão sobre eles.

O que antes já existia como objetividade, mas não era percebido em suas implicações mais profundas e, às vezes, nem sequer era percebido, se “destaca” e assume o caráter de problema, portanto, de desafio.

A partir deste momento, o “percebido destacado” já é objeto da “admiração” dos homens, e, como tal, de sua aço e de seu conhecimento.

Enquanto, na concepção “bancária” – permita-se-nos a repetição insistente – o educador vai “enchendo” os educandos de falso saber, que são os conteúdos impostos, na prática problematizadora, vão os educandos desenvolvendo o seu poder de captação e de compreensão do mundo que lhes aparece, em suas relações com ele, não mais como uma realidade estática, mas como uma realidade em transformação, em processo.

A tendência, então, do educador- educando como dos educandos-educadores é estabelecerem uma forma autêntica de pensar e atuar. Pensar-se a si mesmos e ao mundo, simultaneamente, sem dicotomizar este pensar da aço.

A educação problematizadora se faz, assim, um esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e em que se acham.

Se, de fato, não é possível entendê-los fora de suas relações dialéticas com o mundo, se estas existem independentemente de se eles as percebem ou não, e independentemente de como as percebem, é verdade também que a sua forma de atuar, sendo esta ou aquela, é função, em grande parte, de como se percebam no mundo.

Mais uma vez se antagonizam as duas concepções e as duas práticas que estamos analisando. A “bancária”, por óbvios motivos, insiste em manter ocultas certas razões que explicam a maneira como estão sendo os homens no mundo e, para isto, mistifica a realidade. A problematizadora, comprometida com a libertação, se empenha na desmitificação. Por isto, a primeira nega o diálogo, enquanto a segunda tem nele a indispensável relação ao ato cognoscente, desvelador da realidade.

A primeira “assistencializa”; a segunda, criticiza. A primeira, na medida em que, servindo à dominação, inibe a criatividade e, ainda que não podendo matar a intencionalidade da consciência como um desprender-se ao mundo, a “domestica”, nega os homens na sua vocação ontológica e histórica de humanizar- se. A segunda, na medida em que, servindo à libertação, se funda na criatividade e estimula a reflexão e a aço verdadeiras dos homens sobre a realidade, responde à sua vocação, como seres que não podem autenticar-se fora da busca e ria transformação criadora.





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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)


Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série
CDD-374.012
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido


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