terça-feira, 24 de dezembro de 2019

O Segundo Sexo - 55. Fatos e Mitos: Capítulo III (2)

Simone de Beauvoir



55. Fatos e Mitos




Capítulo III



continuando...


O fato é que ela se veria bastante embaraçada em decidir quem ela é; a pergunta não comporta resposta; mas não porque a verdade recôndita seja demasiado móvel para se deixar aprisionar: é porque nesse terreno não há verdade. Um existente não é senão o que faz; o possível não supera o real, a essência não precede a existência: em sua pura subjetividade o ser humano não é nada. Medem-no pelos seus atos. De uma camponesa pode-se dizer que se trata de uma boa ou má trabalhadora, de uma atriz que tem ou não talento; mas se se considera uma mulher em sua presença imanente, nada absolutamente se pode dizer, ela está aquém de qualquer qualificação. Ora, nas relações amorosas ou conjugais, em todas as relações em que a mulher é a vassala, o outro, é em sua imanência que é apreendida. É impressionante o fato de a companheira, a colega, a associada não terem mistério; em compensação, se o vassalo é masculino, se diante de um homem ou de uma mulher mais velhos do que ele, mais ricos, um rapaz se apresenta como o objeto inessencial, envolve-se ele também de mistério. E isso nos revela uma infra-estrutura do mistério feminino que é de ordem econômica. Um sentimento também não é nada. "No terreno dos sentimentos o real não se distingue do imaginário, diz Gide. E basta imaginar que se ama para amar, por isso basta dizer que se imagina amar, quando se ama, para amar um pouco menos..." Entre o imaginário e o real só há discriminação através das condutas. Detendo o homem neste mundo uma situação privilegiada, ele é que pode manifestar ativamente seu amor; muitas vezes sustenta a mulher ou a ajuda, Desposando-a, dá-lhe uma posição social; dá-lhe presentes; sua independência econômica e social permite-lhe iniciativas e invenções. Separado de Mme de Villeparisis, o Sr. de Norpois é quem fazia viagens de vinte e quatro horas para vê-la. Muitas vezes ele tem ocupações, ela não faz nada; o tempo que passa com Mme de Villeparisis ele o dá, ela o toma: com prazer, com paixão, ou simplesmente para se distrair? Aceita ela esses dons por amor ou por interesse? Ama o marido ou o casamento? Naturalmente as próprias provas que o homem dá são ambíguas: tal ou qual dom é feito por amor ou por piedade? Mas, enquanto normalmente a mulher encontra no comércio com o homem numerosas vantagens, o comércio com a mulher só beneficia o homem na medida em que ele a ama. Por isso, pelo conjunto de suas atitudes pode-se apreciar mais ou menos o grau de seu apego; ao passo que a mulher quase não tem meios de sondar o próprio coração; segundo seu temperamento, terá pontos de vista diferentes acerca de seus sentimentos, e enquanto os suportar passivamente nenhuma interpretação será mais verdadeira do que outra. Nos casos bastante raros em que ela detém os privilégios econômicos e sociais, o mistério inverte-se: o que demonstra que se liga não a este ou àquele sexo e sim a uma situação. Para grande número de mulheres os caminhos da transcendência estão barrados: como não fazem nada, não se podem fazer ser; perguntam-se indefinidamente o que poderiam vir a ser, o que as leva a indagar o que são: é uma interrogação vã; se o homem malogra em descobrir essa essência secreta é muito simplesmente porque ela não existe. Mantida à margem do mundo, a mulher não pode definir-se objetivamente através desse mundo e seu mistério cobre apenas um vazio.

Demais, acontece que, como todos os oprimidos, dissimula deliberadamente sua figura objetiva; o escravo, o criado, o indígena, todos os que dependem dos caprichos de um senhor aprenderam a opor-lhe um sorriso imutável ou uma impassibilidade enigmática; escondem cuidadosamente seus verdadeiros sentimentos, suas verdadeiras condutas. À mulher também ensinaram desde a adolescência a mentir aos homens, a trapacear, a usar de subterfúgios. Chega-se a eles com máscara: é prudente, hipócrita, comediante.

Mas o Mistério feminino tal qual o reconhece o pensamento mítico é uma realidade mais profunda. Em verdade, acha-se ele implicado imediatamente na mitologia do Outro absoluto. Se se admite que a consciência inessencial é, ela também, uma subjetividade translúcida, capaz de operar o Cogito, admite-se que é, na verdade, soberana e retorna ao essencial. Para que toda reciprocidade se apresente como impossível, é preciso que o Outro seja para si um outro, que sua subjetividade mesma seja afetada pela alteridade. Essa consciência que seria alienada enquanto consciência, em sua pura presença imanente, seria evidentemente Mistério; seria Mistério em si pelo fato de que o seria para si; seria o Mistério absoluto. Assim é que há, para além do segredo que sua dissimulação cria um mistério do Preto, do Amarelo, enquanto considerados absolutamente como o Outro inessencial. Deve-se observar que o cidadão norte-americano, que desnorteia profundamente o europeu médio, não é entretanto considerado "misterioso": mais modestamente asseguram que não o entendem; do mesmo modo, a mulher nem sempre "compreende" o homem, mas não há mistério masculino; é que a América rica e o homem estão do lado do Senhor, e o Mistério é propriedade do escravo.

Bem entendido, não se pode senão sonhar nos crepúsculos da má-fé acerca da realidade positiva do Mistério; como certas alucinações marginais, dissipa-se logo que se tenta fixá-lo. A literatura malogra sempre ao pintar mulheres "misteriosas". Elas podem somente surgir no início de um romance como estranhas, enigmáticas; mas, a menos que a história permaneça inacabada, terminam por revelar seu segredo e são então personagens coerentes e translúcidos. Por exemplo, o herói dos livros de Peter Cheney não cessa de se espantar com os imprevisíveis caprichos das mulheres: nunca se pode adivinhar como vão conduzir-se, fazem abortar todos os cálculos; na verdade, logo que os motivos de seus atos são desvendados ao leitor, elas se apresentam como mecanismos muito simples: uma era espiã, outra ladra; por hábil que seja a intriga, há sempre uma chave e não poderia ser de outro modo, ainda que o autor tivesse todo o talento e toda a imaginação do mundo. O mistério nunca passa de uma miragem, dissipa-se quando se tenta apreendê-lo.

Vemos assim que o mito se explica em grande parte pelo uso que dele faz o homem. O mito da mulher é um luxo. Só pode surgir se o homem escapa à urgente imposição de suas necessidades; quanto mais as relações são concretamente vividas, menos se idealizam. O felá do antigo Egito, o camponês beduíno, o artesão da Idade Média, o operário contemporâneo, têm, nas necessidades do trabalho e da pobreza, relações demasiado definidas com a mulher singular que é sua companheira para enfeitá-la como uma aura fasta ou nefasta. São as épocas e as classes a que se concedem os lazeres do sonho que erguem as estátuas negras ou brancas da feminilidade. Mas o luxo tem também uma utilidade. Tais sonhos são imperiosamente dirigidos por interesses. Por certo, em sua maior parte, os mitos têm raízes na atitude espontânea do homem para com sua própria existência e o mundo que o cerca: mas a superação da experiência em direção à Ideia transcendente foi deliberadamente operada pela sociedade patriarcal para fins de auto justificação; através dos mitos, ela impunha aos indivíduos suas leis e costumes de maneira sensível e por imagens; sob uma forma mítica é que o imperativo coletivo se insinuava em cada consciência. Por intermédio das religiões, das tradições, da linguagem, dos contos, das canções, do cinema, os mitos penetram até nas existências mais duramente jungidas às realidades materiais. Todos podem encontrar nesses mitos uma sublimação de suas modestas experiências: enganado por uma mulher amada, um declara que ela é uma matriz danada; outro, obcecado pela impotência viril, encara a mulher como a fêmea do louva-a-deus; outro ainda compraz-se em companhia de sua mulher e ei-la Harmonia, Repouso, Terra nutriz. O gosto a uma eternidade barata, a um absoluto de bolso, que se depara na maioria dos homens, satisfaz-se com mito. A menor emoção, uma contrariedade, tomam o reflexo de uma Ideia não temporal; essa ilusão lisonjeia agradavelmente a vaidade.

O mito é uma dessas armadilhas da falsa objetividade em que se lança temerariamente o espírito de gravidade. Trata-se mais uma vez, de substituir a experiência vivida e os livres julgamentos que ela reclama por um ídolo imoto. A uma relação autêntica com um existente autônomo, o mito da Mulher substitui a contemplação imóvel de uma miragem. "Miragem! Miragem! É preciso matá-las porque não podemos apanhá-las; ou então tranquiliza-las, informá-las, dissipar-lhe o gosto pelas jóias, fazer delas nossas companheiras iguais, nossas amigas íntimas, associadas neste mundo, vesti-las de outro modo, cortar-lhes os cabelos, dizer-lhes tudo...", exclama Laforgue. O homem nada teria a perder, muito pelo contrário, se renunciasse a fantasiar a mulher de símbolo. Os sonhos, quando são coletivos e dirigidos, são bem pobres e monótonos ao lado da realidade viva: para o verdadeiro sonhador, para o poeta, a realidade viva é uma fonte muito mais fecunda do que um maravilhoso puído. As épocas que mais amaram as mulheres não foram a do feudalismo cortês nem o galante século XIX: foram as épocas em que — como no século XVIII — os homens encararam as mulheres como semelhantes; é então que se apresentam como verdadeiramente romanescas: basta ler Les Liaisons dangereuses, Le Rouge et le Noir, Adeus às Armas, para percebê-lo. As heroínas de Laclos, Stendhal, Hemingway não têm mistério; nem por isso são menos atraentes. Reconhecer um ser humano na mulher não é empobrecer a experiência do homem: esta nada perderia de sua diversidade, de sua riqueza, de sua intensidade, se se assumisse em sua intersubjetividade; recusar os mitos não é destruir toda relação dramática entre os sexos, não é negar as significações que se revelam autenticamente ao homem através da realidade feminina; não é suprimir a poesia, o amor, a aventura, a felicidade, o sonho: é somente pedir que as condutas, os sentimentos, as paixões assentem na verdade (1).

(1) Laforgue diz ainda a propósito da mulher: "Como a deixaram na escravidão, na ociosidade, sem outra ocupação nem arma senão o sexo, ela o hipertrofiou e tornou-se o Feminino.. . nós a deixamos hipertrofiar-se; ela está no mundo para n ó s . . . Pois bem! Tudo isso é falso... Com a mulher brincamos até agora de boneca. Isso já durou demais!. . ."

"A mulher se perde. Onde estão as mulheres? As mulheres de hoje não são mulheres", viu-se qual o sentido desses slogans misteriosos. Aos olhos dos homens — e da legião de mulheres que vêem por esses olhos — não basta ter um corpo de mulher, nem assumir como amante, como mãe, a função de fêmea para ser "uma mulher de verdade"; através da sexualidade e da maternidade, o sujeito pode reivindicar sua autonomia; "a verdadeira mulher" é a que se aceita como Outro. Há na atitude dos homens de hoje uma duplicidade que cria na mulher um dilaceramento doloroso; eles aceitam em grande medida que a mulher seja um semelhante, uma igual; e, no entanto, continuam a exigir que ela permaneça o inessencial; para ela, esses dois destinos não são conciliáveis; ela hesita entre um e outro sem se adaptar exatamente a nenhum e daí sua falta de equilíbrio. No homem não há nenhum hiato entre a vida pública e a vida privada: quanto mais ele se afirma seu domínio do mundo pela ação e pelo trabalho, mais revela viril; nele, os valores humanos e os valores vitais se confundem; ao passo que os êxitos autônomos da mulher estão em contradição com sua feminilidade, porquanto se exige da "verdadeira mulher" que se torne objeto, que seja o Outro. É muito possível que, neste ponto, a sensibilidade e até a sexualidade do homem se modifiquem. Uma nova estética já nasceu. Se a moda dos bustos chatos e das ancas magras — da mulher-efebo — durou pouco, não se voltou contudo ao ideal opulento dos séculos passados. Pede-se ao corpo feminino que seja carne, mas discretamente; deve ser esbelto e não empapado de banha; com músculos, flexível e robusto é preciso que indique a transcendência; preferem-no, não branco como uma planta de estufa, mas tendo enfrentado o sol universal, tostado como um torso de trabalhador. Tornando-se prático, o vestido da mulher não a fez parecer assexuada: ao contrário, as saias curtas valorizaram mais do que outrora as pernas e as coxas. Não se compreende por que o trabalho a privaria de sua atração erótica. Possuir a mulher ao mesmo tempo como personagem social e como presa carnal pode ser perturbador: em uma séria de desenhos de Peynet publicados recentemente (2), via-se um jovem noivo abandonar a noiva porque era seduzido pela bonita prefeita que se dispunha a celebrar o casamento. O fato de uma mulher exercer um "ofício viril" e ser ao mesmo tempo desejável foi durante muito tempo um tema de piadas mais ou menos livres. Pouco a pouco, o escândalo e a ironia se embotaram e parece que nova forma de erotismo está nascendo: talvez venha a engendrar novos mitos.

(2) Em novembro de 1948.

O que é certo é que hoje é muito difícil às mulheres assumirem concomitantemente sua condição de indivíduo autônomo e seu destino feminino; aí está a fonte dessas inépcias, dessas incompreensões que as levam, por vezes, a se considerar como um "sexo perdido". E, sem dúvida, é mais confortável suportar uma escravidão cega que trabalhar para se libertar: os mortos também estão mais bem adaptados à terra do que os vivos. Como quer que seja, uma volta ao passado não é mais possível nem desejável. O que se deve esperar é que, por seu lado, os homens assumam sem reserva a situação que se vem criando; somente então a mulher poderá viver sem tragédia. Então poderá ver-se realizado o voto de Laforgue: "Ó moças, quando sereis nossos irmãos, nossos irmãos íntimos sem segunda intenção de exploração? Quando nos daremos o verdadeiro aperto de mãos?" Então "Mélusine não mais sob o peso da fatalidade desencadeada sobre ela pelo homem só, Mélusine libertada..." reencontrará seu "equilíbrio humano (3)". Então ela será plenamente um ser humano "quando se quebrar a escravidão infinita da mulher, quando ela viver por ela e para ela, o homem — até hoje abominável — tendo-lhe dado a alforria (4)".

(3) Breton, Arcane 17.

(4) Rimbaud, Lettre à P. Demeny, 15 raai 1872.




Índice



INTRODUÇÃO

PRIMEIRA PARTE



DESTINO

CAPÍTULO I — Os dados da biologia

CAPÍTULO II — O ponto de vista psicanalítico

CAPÍTULO I I I — O ponto de vista do materialismo histórico


SEGUNDA PARTE

HISTÓRIA


II 

III 

IV 




TERCEIRA PARTE


OS MITOS

CAPÍTULO I

CAPÍTULO II

I — Montherlant ou o pão do nojo

II — D. H. Lawrence ou o orgulho fálico 

I I I — Claudel e a serva do Senhor 

IV — Breton ou a poesia 

V — Stendhal ou o romanesco do verdadeiro 

VI — 

CAPÍTULO III —





Fim




Na boca do homem o epíteto "fêmea" soa como um insulto; no entanto, ele mesmo na se envergonha da sua animalidade, sente-se antes orgulhoso se lhe chamam "macho". Por que o Segundo Sexo parece desprezível ao homem? Que circunstâncias restringem a liberdade da mulher e quais pode ela superar sem se trair? Como então pode realizar-se um ser humano dentro da condição feminina?



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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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Leia também:



Um comentário:

  1. Demais, acontece que, como todos os oprimidos, dissimula deliberadamente sua figura objetiva; o escravo, o criado, o indígena, todos os que dependem dos caprichos de um senhor aprenderam a opor-lhe um sorriso imutável ou uma impassibilidade enigmática; escondem cuidadosamente seus verdadeiros sentimentos, suas verdadeiras condutas. À mulher também ensinaram desde a adolescência a mentir aos homens, a trapacear, a usar de subterfúgios. Chega-se a eles com máscara: é prudente, hipócrita, comediante.

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