quinta-feira, 3 de julho de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Num quarto repleto de fumaça)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Primeiro

      Num quarto repleto de fumaça de odor penetrante, dois homens grosseiros entram e vão se dedicar sem problema a seus afazeres; um terceiro, de organização mais refinada, há de mostrar uma perturbação incessante. Suas narinas não deixarão de aspirar ansiosamente o odor que aparentemente deveria tentar não sentir e que buscará, de cada vez, fazer aderir, por um conhecimento mais preciso, ao seu olfato incomodado. Daí decorre sem dúvida que uma viva preocupação impede que nos queixemos de uma dor de dentes. Quando a minha avó sofria desse modo, o suor escorria sobre sua vasta fronte cor-de-malva, aí colando mechas brancas do cabelo; e, se ela achasse que não estávamos no quarto, soltava gritos:

- Ah!, é horroroso! -  

     Mas, se se apercebia de minha mãe, empregava logo toda a energia para apagar do rosto os traços de sofrimento ou, ao contrário, repetia as mesmas queixas, acompanhando-as de explicações que davam retrospectivamente um outro sentido às que minha mãe pudera ouvir: 

- Ah, minha filha, é horrível ficar deitada com esse sol tão lindo, quando a gente gostaria de ir passear; choro de raiva contra essas prescrições de todos vocês.

     Mas não conseguia evitar os olhares queixosos, o suor da testa, o sobressalto convulsivo dos membros, logo reprimido.

- Não estou passando mal, só me queixo porque estou mal acomodada na cama, sinto os cabelos em desordem, tenho náuseas, e bati contra a parede.

     E minha mãe, à beira da cama, presa àquele sofrimento como se, à força de penetrar com os olhos aquela testa dolorosa, aquele corpo que escondia o mal, conseguisse enfim atingi-lo e carregá-lo, minha mãe dizia: 

- Não, mãezinha, não te deixaremos sofrer assim, vamos achar alguma coisa, tem paciência por um segundo; permite que te beije sem que precises te mexer? 

     E, inclinada sobre a cama, as pernas dobradas, meio de joelhos, como se, de tanta humildade, tivesse mais oportunidades de satisfazer o seu próprio dom apaixonado, inclinava para a minha avó toda a sua vida em seu rosto como em um cibório que lhe estendesse, decorado em relevos de covinhas e rugas tão apaixonadas, tão desoladas e tão doces, que não se sabia se tinham sido cinzeladas pelo buril de um beijo, de um soluço ou de um sorriso. Minha avó também procurava inclinar o rosto para mamãe.
     Mudara de tal forma que, se tivesse forças para sair, sem dúvida só a teriam reconhecido pela pluma do chapéu. Suas feições, como nas sessões de Modelagem, pareciam aplicar-se, num esforço que a desviava de tudo o mais, a conformá-la a um certo modelo que nós não conhecíamos. Esse trabalho de estatuária chegava ao fim e, se o rosto de minha avó havia diminuído, ela igualmente endurecera. As veias que a atravessavam pareciam não de mármore, mas as de uma pedra mais rugosa. Sempre inclinada para diante pela dificuldade de respirar, ao mesmo tempo que dobrada sobre si mesma pelo cansaço, sua fisionomia abatida, apequenada, atrozmente expressiva, parecia, numa primitiva escultura quase histórica, a figura rude, violácea, ruiva, desesperada de alguma selvagem guardiã de túmulo. Mas a obra não estava inteiramente acabada. A seguir era preciso quebrá-la e, depois, descê-la a esse mesmo túmulo, guardado tão penosamente e com tão dura contração.
     Num desses momentos em que, segundo a expressão popular, não se sabe mais a que santo apelar, como minha avó tossisse e espirrasse muito, seguiu-se o conselho de um parente que afirmava que, com o especialista X, a gente estava livre de perigo em três dias. As pessoas da sociedade falam isto de seu médico e são acreditadas, como Françoise acreditava nos anúncios dos jornais. O especialista veio com seu estojo coberto com o catarro de todos os seus clientes, como o odre de Éolo. Minha avó negou-se redondamente a se deixar examinar. E nós, constrangidos com o clínico, que se incomodara inutilmente, concordamos com o desejo que ele exprimiu de examinar nossos respectivos narizes, que todavia não tinham coisa alguma. Ele sustentava que sim e que, fosse enxaqueca ou cólica, enjoo ou diabete, tudo não passava de uma enfermidade do nariz mal resolvida. Disse a cada um de nós: 

- Eis aí um pequeno corneto que bem gostaria de reexaminar. Não espere muito. Com algumas cauterizações ficará livre. -

     Claro que pensávamos em coisa bem diferente. No entanto, nos perguntávamos:

"Mas livre de quê?"

     Em breve todos estávamos doentes; ele só se enganara colocando a coisa no presente. Pois, desde o dia seguinte, seu exame e seu curativo provisório fizeram efeito. Todos nós tivemos catarro. E, como encontrasse na rua meu pai sacudido de violentos acessos de tosse, sorriu à ideia de que um ignorante pudesse imaginar que o mal provinha de sua intervenção. Ele nos examinara quando já estávamos doentes.
     A enfermidade de minha avó deu motivo a que diversas pessoas manifestassem um excesso ou uma insuficiência de simpatia que nos surpreenderam tanto como o tipo de acaso pelo qual umas e outras nos revelavam conexões de circunstâncias, ou mesmo de amizades, de que nunca suspeitáramos. E as demonstrações de interesse, dadas pelas pessoas que vinham incessantemente pedir notícias, revelavam-nos a gravidade de um mal que ainda não tínhamos suficientemente isolado, separado das mil impressões dolorosas sentidas junto de minha avó. Prevenidas por telegrama, suas irmãs não saíram de Combray. Tinham descoberto um artista que lhes proporcionava sessões de excelente música de câmara, e em cuja audição elas pensavam encontrar, mais do que à cabeceira da enferma, um recolhimento e uma elevação dolorosa, cuja forma não deixou de parecer insólita. A Sra. Sazerat escreveu a mamãe, mas como uma pessoa de quem nos separara o noivado bruscamente desfeito (a ruptura era o dreyfusismo). Em compensação, Bergotte veio todos os dias passar muitas horas comigo.
     Sempre gostara de fixar-se numa casa durante algum tempo, e onde não precisasse fazer despesas. Mas antigamente era para ali falar sem ser interrompido, e agora para manter silêncio por muito tempo, sem que lhe pedissem a palavra. Pois estava muito doente, diziam uns que de albuminúria, como minha avó. Segundo outros, tinha um tumor. Ia enfraquecendo; era com dificuldade que subia a nossa escada, e com mais dificuldade ainda que descia. Embora apoiado ao corrimão, tropeçava muitas vezes, e creio que ficaria em casa se não temesse perder totalmente o hábito e a possibilidade de sair, ele, o "homem da barbicha" que eu conhecera alerta, não fazia tanto tempo. Já não enxergava quase nada, e até suas palavras frequentemente se embaralhavam.
     Mas ao mesmo tempo, pelo contrário, suas obras, conhecidas apenas dos literatos à época em que a Sra. Swann patrocinava seus tímidos esforços de divulgação, agora engrandecidas e fortes aos olhos de todos, tinham adquirido enorme poder de expansão no grande público. Decerto ocorre que é somente após a sua morte que um escritor se torna célebre. Mas era ainda em vida e durante o seu longo trajeto para a morte, ainda não alcançada, que ele assistia ao caminhar de suas obras em direção à Fama. Pelo menos, um autor falecido se torna ilustre sem se cansar. O esplendor do seu nome detém-se ante a pedra de seu túmulo. Na surdez do sono eterno, ele não é mais importunado pela Glória. Mas para Bergotte a antítese não estava inteiramente finda. Ele ainda existia o bastante para que o tumulto o incomodasse. Movimentava se ainda, embora de modo penoso, enquanto suas obras, saltitantes como filhas muito amadas, mas cuja impetuosa juventude e ruidosos prazeres nos fatigam, arrastavam todos os dias admiradores novos para junto de seu leito.
     Mas ao mesmo tempo, pelo contrário, suas obras, conhecidas apenas dos literatos à época em que a Sra. Swann patrocinava seus tímidos esforços de divulgação, agora engrandecidas e fortes aos olhos de todos, tinham adquirido enorme poder de expansão no grande público. Decerto ocorre que é somente após a sua morte que um escritor se torna célebre. Mas era ainda em vida e durante o seu longo trajeto para a morte, ainda não alcançada, que ele assistia ao caminhar de suas obras em direção à Fama. Pelo menos, um autor falecido se torna ilustre sem se cansar. O esplendor do seu nome detém-se ante a pedra de seu túmulo. Na surdez do sono eterno, ele não é mais importunado pela Glória. Mas para Bergotte a antítese não estava inteiramente finda. Ele ainda existia o bastante para que o tumulto o incomodasse. Movimentava se ainda, embora de modo penoso, enquanto suas obras, saltitantes como filhas muito amadas, mas cuja impetuosa juventude e ruidosos prazeres nos fatigam, arrastavam todos os dias admiradores novos para junto de seu leito.
     As visitas que ele agora nos fazia chegavam-me com alguns anos de atraso, pois já não o admirava tanto. O que não estava em contradição com aquele aumento de sua fama. Raramente uma obra se torna inteiramente compreendida e vitoriosa sem que a de um outro escritor, obscuro ainda, não tenha começado, junto a alguns espíritos mais difíceis, a substituir por um novo culto aquele que quase acabou de impor-se. Nos livros de Bergotte, que eu relia muitas vezes, suas frases eram tão claras a meus olhos quanto as minhas próprias ideias, os móveis do meu quarto e os carros da rua. Todas as coisas ali se viam com facilidade, se não tais como eram sempre vistas, pelo menos tais como se tinha o hábito de vê-las agora. Ora, um novo escritor havia começado a publicar obras em que as relações entre as coisas eram tão diversas das que as ligavam para mim que eu não entendia quase nada do que ele escrevia. Dizia, por exemplo:

"As mangueiras de irrigação admiravam a bela manutenção das estradas" (e isso era fácil, eu deslizava ao longo dessas estradas) "que partiam a cada cinco minutos de Briand e de Claudel". Então, já não compreendia nada, pois havia esperado um nome de cidade e me davam um nome de gente. Apenas, sentia que não se tratava de uma frase mal feita, mas eu é que não era bastante forte e ágil para ir até o fim. Retomava meu impulso, ajudando-me com os pés e as mãos para chegar ao local de onde veria as novas relações entre as coisas. De cada vez, tendo chegado quase à metade da frase, voltava a cair, como mais tarde no regimento durante o exercício chamado mastro. Nem por isso deixava de ter pelo novo escritor a admiração de um garoto canhestro, e a quem dão zero em ginástica, por um outro mais habilidoso.

     Desde então admirei menos a Bergotte, cuja clareza me pareceu insuficiência. Houve um tempo em que a gente reconhecia bem as coisas, quando era Fromentin quem as pintava, e não as reconhecia mais quando se tratava de Renoir. As pessoas de gosto nos dizem hoje que Renoir é um grande pintor do século XVIII. Mas, dizendo isso, esquecem o Tempo e que muito precisou decorrer, mesmo em pleno século XIX, para que Renoir fosse saudado como um grande artista. Para desse modo conseguirem ser reconhecidos, o pintor e o artista originais procedem à maneira de oculistas. O tratamento pela sua pintura, pela sua prosa, nem sempre é agradável. Quando está acabado, o clínico nos diz: 

"Olhe agora." 

     E eis que o mundo (que não foi criado só uma vez, mas tantas vezes quantas apareceu um artista original) nos surge inteiramente diverso do antigo, mas perfeitamente claro. Mulheres passam pela rua, diferentes das de outrora, visto que lidamos com Renoirs, esses Renoirs onde nos recusávamos antigamente a ver mulheres. As carruagens também são Renoirs, assim como a água e o céu: temos vontade de passear pela floresta idêntica à que no primeiro dia nos parecia tudo, menos uma floresta, e como, por exemplo, uma tapeçaria de numerosos matizes, mas onde faltavam justamente os matizes próprios às florestas. Tal é o universo novo e perecível que acaba de ser criado. Há de durar até a próxima catástrofe geológica que um novo pintor ou um novo escritor originais desencadearão. Este que para mim substituíra Bergotte me cansava, não pela incoerência, mas pela novidade, perfeitamente coerente, de relações que eu não tinha o hábito de seguir. 
     O ponto, sempre o mesmo, em que eu me sentia cair, indicava a identidade de cada esforço que teria de fazer. Além do mais, quando, uma vez em mil, eu podia seguir o escritor até o final de sua frase, o que eu via era sempre de uma graça, de uma veracidade, de um encanto, análogos aos que encontrara antigamente na leitura de Bergotte, porém mais deliciosos. Lembrava que não fazia assim tantos anos que uma semelhante renovação do mundo, parecida à que esperava de seu sucessor, fora Bergotte quem me trouxera. E chegava a me perguntar se haveria alguma verdade nessa distinção que fazemos sempre entre a arte, que não é mais avançada que nos tempos de Homero, e a ciência em progresso contínuo. Ao contrário, talvez a arte se assemelhasse nisso à ciência; todo novo escritor original parecia-me estar progredindo sobre aquele que o havia precedido; e quem sabe se dali a vinte anos, quando eu soubesse acompanhar sem fadiga o novo de hoje, não surgiria um outro, diante de quem o atual iria se juntar a Bergotte? Falei a este último do novo escritor. Desgostou-me dele menos ao afirmar que sua arte era empolada, fácil e vazia do que ao contar-me que o tinha visto, e que se parecia com Bloch, a ponto de provocar confusão. Esta imagem se alinhou, daí em diante, sobre as páginas escritas, e eu já não me julguei obrigado ao trabalho de compreendê-lo. Se Bergotte me falara mal dele, creio que era menos por ciúme do seu sucesso do que por ignorância de sua obra. Não lia quase nada. 
     A maior parte do seu pensamento já passara do cérebro para os livros. Havia emagrecido como se tivesse sofrido uma operação dos mesmos. Seu instinto reprodutor já não o induzia à atividade, agora que pusera para fora quase tudo o que pensava. Levava uma vida vegetativa de convalescente, de uma parturiente; seus belos olhos permaneciam imóveis, vagamente ofuscados, como os de um homem estendido à beira-mar que, num vago devaneio, se limita a olhar cada pequenina onda. Aliás, se eu tinha menos interesse em conversar com ele do que outrora, não sentia remorsos por isso. Era Bergotte de tal modo um homem de hábitos, tanto simples como luxuosos, que uma vez que os adquiria tornavam-se-lhe indispensáveis durante algum tempo. Não sei o que o fez nos visitar da primeira vez, mas, a seguir, aparecia todos os dias pelo motivo por que tinha vindo na véspera. Chegava como se tivesse ido ao café, para que não conversassem com ele, para que pudesse bem raramente -falar, de modo que, afinal, não seria possível encontrar um indício de que se emocionasse com o nosso desgosto ou que lhe fosse agradável encontrar-se na minha companhia, se se quisesse deduzir alguma coisa de tal assiduidade. Esta não era indiferente à minha mãe, sensível a tudo o que podia ser considerado homenagem à sua doente. E todos os dias ela me dizia: 

- Principalmente não te esqueças de lhe agradecer.  

     Tivemos discreta atenção de mulher, como a merenda que nos serve entre duas sessões de pose a companheira de um pintor -, suplemento a título gracioso das que nos fazia o seu marido, a visita da Sra. Cottard. Vinha oferecer-nos o seu camareiro, caso preferíssemos o serviço de um homem, pois ia "enterrar-se no campo"; e, diante de nossa recusa, disse que pelo menos esperava que aquilo não fosse uma "desfeita" da nossa parte, palavra que em seu mundo significava um falso pretexto para não aceitar um convite. Assegurou-nos que o professor, que em casa jamais falava de seus clientes, estava tão triste como se se tratasse dela própria. Veremos mais tarde que, mesmo se isso fosse verdade, seria a um tempo muito pouco e demais, vindo da parte do mais infiel e agradecido dos maridos.
     Oferecimentos tão úteis e infinitamente mais tocantes pela sua maneira (que era uma mistura da mais alta inteligência, do coração mais generoso e de uma rara felicidade de expressão) me foram dirigidos pelo grão-duque herdeiro de Luxemburgo. Conhecera-o em Balbec, aonde fora visitar uma de suas tias, a princesa de Luxemburgo, enquanto ele ainda era apenas conde de Nassau. Poucos meses depois, casara-se com a deslumbrante filha de uma outra princesa de Luxemburgo, excessivamente rica, pois era a filha única de um príncipe a quem pertencia um imenso negócio de farinhas. Em vista disso, o grão-duque de Luxemburgo, que não tinha filhos e adorava o sobrinho Nassau, fizera aprovar pela Câmara que este fosse declarado grão-duque herdeiro. Como em todos os casamentos desse gênero, a origem da fortuna é o obstáculo, como o é também a causa eficiente. Eu me lembrava desse conde de Nassau como de um dos mais notáveis rapazes que já encontrara, já devorado então pelo sombrio e extraordinário amor à noiva. Fiquei bastante comovido com as cartas que não deixou de me escrever durante a doença de minha avó, e mamãe, ela mesma comovida, repetia tristemente uma frase de sua mãe: 

- Sévigné não teria dito melhor.

     No sexto dia, mamãe, para ceder aos rogos de minha avó, teve de deixá-la por um momento e fingir que ia deitar-se. Para que minha avó adormecesse, eu preferiria que Françoise não saísse do quarto. Apesar das minhas súplicas, ela saiu; amava a minha avó; com sua clarividência e seu pessimismo, julgava-a perdida. Portanto, desejaria lhe proporcionar todos os cuidados possíveis. Mas acabavam de dizer que havia chegado um operário eletricista, muito antigo no seu estabelecimento, cunhado do patrão, estimado no nosso prédio, onde vinha trabalhar desde muitos anos, e especialmente estimado por Jupien. Haviam mandado chamar esse operário antes que minha avó caísse enferma. Parecia-me que podiam mandá-lo embora ou deixar que esperasse. Mas o protocolo de Françoise não o permitia, seria falta de delicadeza dela para com aquele bom homem, o estado de saúde de minha avó já não contava. Quando, ao cabo de um quarto de hora, exasperado, fui buscá-la na cozinha, encontrei-a conversando com ele no patamar da escada de serviço, cuja porta estava aberta, procedimento que tinha a vantagem de permitir, caso um de nós chegasse, que se julgasse que estavam se despedindo, porém o inconveniente de produzir terríveis correntes de ar. Então Françoise deixou o operário, não sem antes lhe gritar ainda alguns cumprimentos, que esquecera, para a sua mulher e seu cunhado. Preocupação típica de Combray, essa de não ser indelicado, que Françoise transportava até a política externa. Os simples de espírito imaginam que as amplas dimensões dos fenômenos sociais são uma excelente ocasião de penetrar mais na alma humana; ao contrário, deveriam compreender que é descendo em profundidade em um indivíduo que teriam chances de compreender esses fenômenos. Françoise repetira mil vezes ao jardineiro de Combray que a guerra é o mais insensato dos crimes e que o que importa é viver. Ora, quando rebentou a guerra russo-japonesa, sentiu-se constrangida, em face do czar, pelo fato de não termos ido à guerra para ajudar "os pobres russos", "visto sermos aliados", dizia. Não achava isso delicado quanto a Nicolau II, que sempre tivera "tão boas palavras para conosco"; era um efeito do mesmo código que a impediria de recusar um copinho de Jupien, que bem sabia iria "contrariar sua digestão", e que, tão perto da morte de minha avó, lhe dava a ideia de que, se não se desculpasse pessoalmente com esse bom eletricista que tivera tanto incômodo, cometeria a mesma descortesia de que julgava culpada a França por permanecer neutra relativamente ao Japão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário