em busca do tempo perdido
volume IIIO Caminho de Guermantes
Segunda Parte
Segunda Parte
Num quarto repleto de fumaça de odor penetrante, dois homens grosseiros entram e vão se dedicar sem problema a seus afazeres; um terceiro, de organização mais refinada, há de mostrar uma perturbação incessante. Suas narinas não deixarão de aspirar ansiosamente o odor que aparentemente deveria tentar não sentir e que buscará, de cada vez, fazer aderir, por um conhecimento mais preciso, ao seu olfato incomodado. Daí decorre sem dúvida que uma viva preocupação impede que nos queixemos de uma dor de dentes. Quando a minha avó sofria desse modo, o suor escorria sobre sua vasta fronte cor-de-malva, aí colando mechas brancas do cabelo; e, se ela achasse que não estávamos no quarto, soltava gritos:
- Ah!, é horroroso! -
Mas, se se apercebia de minha mãe, empregava logo toda a energia para apagar do rosto
os traços de sofrimento ou, ao contrário, repetia as mesmas queixas, acompanhando-as de
explicações que davam retrospectivamente um outro sentido às que minha mãe pudera ouvir:
- Ah, minha filha, é horrível ficar deitada com esse sol tão lindo, quando a gente gostaria de
ir passear; choro de raiva contra essas prescrições de todos vocês.
Mas não conseguia evitar os olhares queixosos, o suor da testa, o sobressalto convulsivo
dos membros, logo reprimido.
- Não estou passando mal, só me queixo porque estou mal acomodada na cama, sinto os
cabelos em desordem, tenho náuseas, e bati contra a parede.
E minha mãe, à beira da cama, presa àquele sofrimento como se, à força de penetrar com
os olhos aquela testa dolorosa, aquele corpo que escondia o mal, conseguisse enfim atingi-lo e
carregá-lo, minha mãe dizia:
- Não, mãezinha, não te deixaremos sofrer assim, vamos achar alguma coisa, tem
paciência por um segundo; permite que te beije sem que precises te mexer?
E, inclinada sobre a cama, as pernas dobradas, meio de joelhos, como se, de tanta
humildade, tivesse mais oportunidades de satisfazer o seu próprio dom apaixonado, inclinava para
a minha avó toda a sua vida em seu rosto como em um cibório que lhe estendesse, decorado em
relevos de covinhas e rugas tão apaixonadas, tão desoladas e tão doces, que não se sabia se
tinham sido cinzeladas pelo buril de um beijo, de um soluço ou de um sorriso. Minha avó também
procurava inclinar o rosto para mamãe.
Mudara de tal forma que, se tivesse forças para sair, sem dúvida só a teriam reconhecido
pela pluma do chapéu. Suas feições, como nas sessões de Modelagem, pareciam aplicar-se, num
esforço que a desviava de tudo o mais, a conformá-la a um certo modelo que nós não
conhecíamos. Esse trabalho de estatuária chegava ao fim e, se o rosto de minha avó havia
diminuído, ela igualmente endurecera. As veias que a atravessavam pareciam não de mármore,
mas as de uma pedra mais rugosa. Sempre inclinada para diante pela dificuldade de respirar, ao
mesmo tempo que dobrada sobre si mesma pelo cansaço, sua fisionomia abatida, apequenada,
atrozmente expressiva, parecia, numa primitiva escultura quase histórica, a figura rude, violácea,
ruiva, desesperada de alguma selvagem guardiã de túmulo. Mas a obra não estava inteiramente
acabada. A seguir era preciso quebrá-la e, depois, descê-la a esse mesmo túmulo, guardado tão
penosamente e com tão dura contração.
Num desses momentos em que, segundo a expressão popular, não se sabe mais a que
santo apelar, como minha avó tossisse e espirrasse muito, seguiu-se o conselho de um parente
que afirmava que, com o especialista X, a gente estava livre de perigo em três dias. As pessoas
da sociedade falam isto de seu médico e são acreditadas, como Françoise acreditava nos
anúncios dos jornais. O especialista veio com seu estojo coberto com o catarro de todos os seus
clientes, como o odre de Éolo. Minha avó negou-se redondamente a se deixar examinar. E nós,
constrangidos com o clínico, que se incomodara inutilmente, concordamos com o desejo que ele
exprimiu de examinar nossos respectivos narizes, que todavia não tinham coisa alguma. Ele
sustentava que sim e que, fosse enxaqueca ou cólica, enjoo ou diabete, tudo não passava de uma
enfermidade do nariz mal resolvida. Disse a cada um de nós:
- Eis aí um pequeno corneto que bem gostaria de reexaminar. Não espere muito. Com
algumas cauterizações ficará livre. -
Claro que pensávamos em coisa bem diferente. No entanto, nos perguntávamos:
"Mas livre de quê?"
Em breve todos estávamos doentes; ele só se enganara colocando a coisa no presente.
Pois, desde o dia seguinte, seu exame e seu curativo provisório fizeram efeito. Todos nós tivemos
catarro. E, como encontrasse na rua meu pai sacudido de violentos acessos de tosse, sorriu à
ideia de que um ignorante pudesse imaginar que o mal provinha de sua intervenção. Ele nos
examinara quando já estávamos doentes.
A enfermidade de minha avó deu motivo a que diversas pessoas manifestassem um
excesso ou uma insuficiência de simpatia que nos surpreenderam tanto como o tipo de acaso pelo
qual umas e outras nos revelavam conexões de circunstâncias, ou mesmo de amizades, de que
nunca suspeitáramos. E as demonstrações de interesse, dadas pelas pessoas que vinham
incessantemente pedir notícias, revelavam-nos a gravidade de um mal que ainda não tínhamos
suficientemente isolado, separado das mil impressões dolorosas sentidas junto de minha avó.
Prevenidas por telegrama, suas irmãs não saíram de Combray. Tinham descoberto um artista que
lhes proporcionava sessões de excelente música de câmara, e em cuja audição elas pensavam
encontrar, mais do que à cabeceira da enferma, um recolhimento e uma elevação dolorosa, cuja
forma não deixou de parecer insólita. A Sra. Sazerat escreveu a mamãe, mas como uma pessoa
de quem nos separara o noivado bruscamente desfeito (a ruptura era o dreyfusismo). Em
compensação, Bergotte veio todos os dias passar muitas horas comigo.
Sempre gostara de fixar-se numa casa durante algum tempo, e onde não precisasse fazer
despesas. Mas antigamente era para ali falar sem ser interrompido, e agora para manter silêncio
por muito tempo, sem que lhe pedissem a palavra. Pois estava muito doente, diziam uns que de
albuminúria, como minha avó. Segundo outros, tinha um tumor. Ia enfraquecendo; era com
dificuldade que subia a nossa escada, e com mais dificuldade ainda que descia. Embora apoiado
ao corrimão, tropeçava muitas vezes, e creio que ficaria em casa se não temesse perder
totalmente o hábito e a possibilidade de sair, ele, o "homem da barbicha" que eu conhecera alerta,
não fazia tanto tempo. Já não enxergava quase nada, e até suas palavras frequentemente se
embaralhavam.
Mas ao mesmo tempo, pelo contrário, suas obras, conhecidas apenas dos literatos à
época em que a Sra. Swann patrocinava seus tímidos esforços de divulgação, agora
engrandecidas e fortes aos olhos de todos, tinham adquirido enorme poder de expansão no
grande público. Decerto ocorre que é somente após a sua morte que um escritor se torna célebre.
Mas era ainda em vida e durante o seu longo trajeto para a morte, ainda não alcançada, que ele
assistia ao caminhar de suas obras em direção à Fama. Pelo menos, um autor falecido se torna
ilustre sem se cansar. O esplendor do seu nome detém-se ante a pedra de seu túmulo. Na surdez
do sono eterno, ele não é mais importunado pela Glória. Mas para Bergotte a antítese não estava
inteiramente finda. Ele ainda existia o bastante para que o tumulto o incomodasse. Movimentava
se ainda, embora de modo penoso, enquanto suas obras, saltitantes como filhas muito amadas,
mas cuja impetuosa juventude e ruidosos prazeres nos fatigam, arrastavam todos os dias
admiradores novos para junto de seu leito.
Mas ao mesmo tempo, pelo contrário, suas obras, conhecidas apenas dos literatos à
época em que a Sra. Swann patrocinava seus tímidos esforços de divulgação, agora
engrandecidas e fortes aos olhos de todos, tinham adquirido enorme poder de expansão no
grande público. Decerto ocorre que é somente após a sua morte que um escritor se torna célebre.
Mas era ainda em vida e durante o seu longo trajeto para a morte, ainda não alcançada, que ele
assistia ao caminhar de suas obras em direção à Fama. Pelo menos, um autor falecido se torna
ilustre sem se cansar. O esplendor do seu nome detém-se ante a pedra de seu túmulo. Na surdez
do sono eterno, ele não é mais importunado pela Glória. Mas para Bergotte a antítese não estava
inteiramente finda. Ele ainda existia o bastante para que o tumulto o incomodasse. Movimentava
se ainda, embora de modo penoso, enquanto suas obras, saltitantes como filhas muito amadas,
mas cuja impetuosa juventude e ruidosos prazeres nos fatigam, arrastavam todos os dias
admiradores novos para junto de seu leito.
As visitas que ele agora nos fazia chegavam-me com alguns anos de atraso, pois já não o
admirava tanto. O que não estava em contradição com aquele aumento de sua fama. Raramente
uma obra se torna inteiramente compreendida e vitoriosa sem que a de um outro escritor, obscuro
ainda, não tenha começado, junto a alguns espíritos mais difíceis, a substituir por um novo culto
aquele que quase acabou de impor-se. Nos livros de Bergotte, que eu relia muitas vezes, suas
frases eram tão claras a meus olhos quanto as minhas próprias ideias, os móveis do meu quarto e
os carros da rua. Todas as coisas ali se viam com facilidade, se não tais como eram sempre
vistas, pelo menos tais como se tinha o hábito de vê-las agora. Ora, um novo escritor havia
começado a publicar obras em que as relações entre as coisas eram tão diversas das que as
ligavam para mim que eu não entendia quase nada do que ele escrevia. Dizia, por exemplo:
"As mangueiras de irrigação admiravam a bela manutenção das estradas" (e isso era fácil,
eu deslizava ao longo dessas estradas) "que partiam a cada cinco minutos de Briand e de
Claudel". Então, já não compreendia nada, pois havia esperado um nome de cidade e me davam
um nome de gente. Apenas, sentia que não se tratava de uma frase mal feita, mas eu é que não
era bastante forte e ágil para ir até o fim. Retomava meu impulso, ajudando-me com os pés e as
mãos para chegar ao local de onde veria as novas relações entre as coisas. De cada vez, tendo
chegado quase à metade da frase, voltava a cair, como mais tarde no regimento durante o
exercício chamado mastro. Nem por isso deixava de ter pelo novo escritor a admiração de um
garoto canhestro, e a quem dão zero em ginástica, por um outro mais habilidoso.
Desde então admirei menos a Bergotte, cuja clareza me pareceu insuficiência. Houve um
tempo em que a gente reconhecia bem as coisas, quando era Fromentin quem as pintava, e não
as reconhecia mais quando se tratava de Renoir. As pessoas de gosto nos dizem hoje que Renoir
é um grande pintor do século XVIII. Mas, dizendo isso, esquecem o Tempo e que muito precisou
decorrer, mesmo em pleno século XIX, para que Renoir fosse saudado como um grande artista.
Para desse modo conseguirem ser reconhecidos, o pintor e o artista originais procedem à maneira
de oculistas. O tratamento pela sua pintura, pela sua prosa, nem sempre é agradável. Quando
está acabado, o clínico nos diz:
"Olhe agora."
E eis que o mundo (que não foi criado só uma vez, mas tantas vezes quantas apareceu um
artista original) nos surge inteiramente diverso do antigo, mas perfeitamente claro. Mulheres
passam pela rua, diferentes das de outrora, visto que lidamos com Renoirs, esses Renoirs onde
nos recusávamos antigamente a ver mulheres. As carruagens também são Renoirs, assim como a
água e o céu: temos vontade de passear pela floresta idêntica à que no primeiro dia nos parecia
tudo, menos uma floresta, e como, por exemplo, uma tapeçaria de numerosos matizes, mas onde
faltavam justamente os matizes próprios às florestas. Tal é o universo novo e perecível que acaba
de ser criado. Há de durar até a próxima catástrofe geológica que um novo pintor ou um novo
escritor originais desencadearão. Este que para mim substituíra Bergotte me cansava, não pela
incoerência, mas pela novidade, perfeitamente coerente, de relações que eu não tinha o hábito de
seguir.
O ponto, sempre o mesmo, em que eu me sentia cair, indicava a identidade de cada
esforço que teria de fazer. Além do mais, quando, uma vez em mil, eu podia seguir o escritor até o
final de sua frase, o que eu via era sempre de uma graça, de uma veracidade, de um encanto,
análogos aos que encontrara antigamente na leitura de Bergotte, porém mais deliciosos.
Lembrava que não fazia assim tantos anos que uma semelhante renovação do mundo, parecida à
que esperava de seu sucessor, fora Bergotte quem me trouxera. E chegava a me perguntar se
haveria alguma verdade nessa distinção que fazemos sempre entre a arte, que não é mais
avançada que nos tempos de Homero, e a ciência em progresso contínuo. Ao contrário, talvez a
arte se assemelhasse nisso à ciência; todo novo escritor original parecia-me estar progredindo
sobre aquele que o havia precedido; e quem sabe se dali a vinte anos, quando eu soubesse
acompanhar sem fadiga o novo de hoje, não surgiria um outro, diante de quem o atual iria se
juntar a Bergotte? Falei a este último do novo escritor. Desgostou-me dele menos ao afirmar que
sua arte era empolada, fácil e vazia do que ao contar-me que o tinha visto, e que se parecia com
Bloch, a ponto de provocar confusão. Esta imagem se alinhou, daí em diante, sobre as páginas
escritas, e eu já não me julguei obrigado ao trabalho de compreendê-lo. Se Bergotte me falara mal
dele, creio que era menos por ciúme do seu sucesso do que por ignorância de sua obra. Não lia
quase nada.
A maior parte do seu pensamento já passara do cérebro para os livros. Havia emagrecido
como se tivesse sofrido uma operação dos mesmos. Seu instinto reprodutor já não o induzia à
atividade, agora que pusera para fora quase tudo o que pensava. Levava uma vida vegetativa de
convalescente, de uma parturiente; seus belos olhos permaneciam imóveis, vagamente
ofuscados, como os de um homem estendido à beira-mar que, num vago devaneio, se limita a
olhar cada pequenina onda. Aliás, se eu tinha menos interesse em conversar com ele do que
outrora, não sentia remorsos por isso. Era Bergotte de tal modo um homem de hábitos, tanto
simples como luxuosos, que uma vez que os adquiria tornavam-se-lhe indispensáveis durante
algum tempo. Não sei o que o fez nos visitar da primeira vez, mas, a seguir, aparecia todos os
dias pelo motivo por que tinha vindo na véspera. Chegava como se tivesse ido ao café, para que
não conversassem com ele, para que pudesse bem raramente -falar, de modo que, afinal, não
seria possível encontrar um indício de que se emocionasse com o nosso desgosto ou que lhe
fosse agradável encontrar-se na minha companhia, se se quisesse deduzir alguma coisa de tal
assiduidade. Esta não era indiferente à minha mãe, sensível a tudo o que podia ser considerado
homenagem à sua doente. E todos os dias ela me dizia:
- Principalmente não te esqueças de lhe agradecer.
Tivemos discreta atenção de mulher, como a merenda que nos serve entre duas sessões
de pose a companheira de um pintor -, suplemento a título gracioso das que nos fazia o seu
marido, a visita da Sra. Cottard. Vinha oferecer-nos o seu camareiro, caso preferíssemos o serviço
de um homem, pois ia "enterrar-se no campo"; e, diante de nossa recusa, disse que pelo menos
esperava que aquilo não fosse uma "desfeita" da nossa parte, palavra que em seu mundo
significava um falso pretexto para não aceitar um convite. Assegurou-nos que o professor, que em
casa jamais falava de seus clientes, estava tão triste como se se tratasse dela própria. Veremos
mais tarde que, mesmo se isso fosse verdade, seria a um tempo muito pouco e demais, vindo da
parte do mais infiel e agradecido dos maridos.
Oferecimentos tão úteis e infinitamente mais tocantes pela sua maneira (que era uma
mistura da mais alta inteligência, do coração mais generoso e de uma rara felicidade de
expressão) me foram dirigidos pelo grão-duque herdeiro de Luxemburgo. Conhecera-o em Balbec,
aonde fora visitar uma de suas tias, a princesa de Luxemburgo, enquanto ele ainda era apenas
conde de Nassau. Poucos meses depois, casara-se com a deslumbrante filha de uma outra
princesa de Luxemburgo, excessivamente rica, pois era a filha única de um príncipe a quem
pertencia um imenso negócio de farinhas. Em vista disso, o grão-duque de Luxemburgo, que não
tinha filhos e adorava o sobrinho Nassau, fizera aprovar pela Câmara que este fosse declarado
grão-duque herdeiro. Como em todos os casamentos desse gênero, a origem da fortuna é o
obstáculo, como o é também a causa eficiente. Eu me lembrava desse conde de Nassau como de
um dos mais notáveis rapazes que já encontrara, já devorado então pelo sombrio e extraordinário
amor à noiva. Fiquei bastante comovido com as cartas que não deixou de me escrever durante a
doença de minha avó, e mamãe, ela mesma comovida, repetia tristemente uma frase de sua mãe:
- Sévigné não teria dito melhor.
No sexto dia, mamãe, para ceder aos rogos de minha avó, teve de deixá-la por um
momento e fingir que ia deitar-se. Para que minha avó adormecesse, eu preferiria que Françoise
não saísse do quarto. Apesar das minhas súplicas, ela saiu; amava a minha avó; com sua
clarividência e seu pessimismo, julgava-a perdida. Portanto, desejaria lhe proporcionar todos os
cuidados possíveis. Mas acabavam de dizer que havia chegado um operário eletricista, muito
antigo no seu estabelecimento, cunhado do patrão, estimado no nosso prédio, onde vinha
trabalhar desde muitos anos, e especialmente estimado por Jupien. Haviam mandado chamar
esse operário antes que minha avó caísse enferma. Parecia-me que podiam mandá-lo embora ou
deixar que esperasse. Mas o protocolo de Françoise não o permitia, seria falta de delicadeza dela
para com aquele bom homem, o estado de saúde de minha avó já não contava. Quando, ao cabo
de um quarto de hora, exasperado, fui buscá-la na cozinha, encontrei-a conversando com ele no
patamar da escada de serviço, cuja porta estava aberta, procedimento que tinha a vantagem de
permitir, caso um de nós chegasse, que se julgasse que estavam se despedindo, porém o
inconveniente de produzir terríveis correntes de ar. Então Françoise deixou o operário, não sem
antes lhe gritar ainda alguns cumprimentos, que esquecera, para a sua mulher e seu cunhado.
Preocupação típica de Combray, essa de não ser indelicado, que Françoise transportava até a
política externa. Os simples de espírito imaginam que as amplas dimensões dos fenômenos
sociais são uma excelente ocasião de penetrar mais na alma humana; ao contrário, deveriam
compreender que é descendo em profundidade em um indivíduo que teriam chances de
compreender esses fenômenos. Françoise repetira mil vezes ao jardineiro de Combray que a
guerra é o mais insensato dos crimes e que o que importa é viver. Ora, quando rebentou a guerra
russo-japonesa, sentiu-se constrangida, em face do czar, pelo fato de não termos ido à guerra
para ajudar "os pobres russos", "visto sermos aliados", dizia. Não achava isso delicado quanto a
Nicolau II, que sempre tivera "tão boas palavras para conosco"; era um efeito do mesmo código
que a impediria de recusar um copinho de Jupien, que bem sabia iria "contrariar sua digestão", e
que, tão perto da morte de minha avó, lhe dava a ideia de que, se não se desculpasse
pessoalmente com esse bom eletricista que tivera tanto incômodo, cometeria a mesma
descortesia de que julgava culpada a França por permanecer neutra relativamente ao Japão.
continua na página 148...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
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Volume 7
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