em busca do tempo perdido
volume IIIO Caminho de Guermantes
Segunda Parte
Segunda Parte
Visita de Albertine.
Perspectiva de casamento rico para alguns amigos de Saint-Loup. -
O espírito dos Guermantes diante da princesa de Parma. -
Estranha visita ao Sr. de Charlus. -
Cada vez compreendo menos o seu caráter. -
Os sapatos vermelhos da duquesa.
Conquanto fosse apenas um domingo de outono, eu acabava de renascer, a existência
estava intacta à minha frente, pois de manhã, após uma série de dias temperados, houve um
nevoeiro frio que só se dissipara por volta do meio-dia. Ora, uma mudança de tempo é suficiente
para recriar o mundo e nós mesmos. Antigamente, quando o vento soprava na minha lareira, eu
escutava suas pancadas contra o alçapão de tal modo emocionado como se, iguais às famosas
pancadas de arco com que principia a Sinfonia em dó menor, fossem os irresistíveis apelos de um
destino misterioso. Toda mudança visível da natureza nos oferece uma transformação idêntica,
adaptando à nova forma de ser das coisas os nossos desejos harmonizados. Desde o despertar,
a bruma fizera de mim, em vez da criatura centrífuga que a gente é nos dias bonitos, um homem
voltado para si mesmo, que deseja um cantinho ao lado da lareira e um leito compartilhado, Adão
friorento à procura de uma Eva sedentária naquele mundo diferente.
Entre a cor cinza e suave de um campo matinal e o gosto de uma taça de chocolate, eu
introduzia toda a originalidade da vida física, intelectual e moral que havia levado cerca de um ano
antes a Doncieres, e que, brasonada com a forma oblonga de uma colina escalvada presente
sempre, mesmo quando estava invisível -, formava em mim uma série de prazeres totalmente
distintos de todos os outros, indizíveis aos amigos naquele sentido que as impressões ricamente
entretecidas umas nas outras que os orquestravam, bem mais os caracterizavam para mim, e à
minha revelia, do que os fatos que eu teria podido contar. Sob esse ponto de vista, o mundo novo
em que o nevoeiro daquela manhã me havia mergulhado era um mundo já conhecido de mim (o
que só o tomava mais verdadeiro) e esquecido fazia algum tempo (o que lhe devolvia todo o seu
frescor). E pude contemplar alguns dos quadros de bruma que minha memória adquirira,
notadamente diversos "Manhã em Doncieres", seja no primeiro dia no quartel, seja numa outra
ocasião, num castelo vizinho aonde Saint-Loup me levara para passar vinte e quatro horas: da
janela, cujas cortinas eu erguera de madrugada antes de voltar a deitar-me, no primeiro um
cavaleiro, no segundo (no estreito limite de um charco e de um bosque, de que todo o resto
estava mergulhado na uniforme doçura líqüida da bruma) um cocheiro no ato de brunir uma
correia, tinham me aparecido como essas personagens singulares, mal distintas para o olho
obrigado a adaptar-se ao vago misterioso das penumbras que emergem de um afresco apagado.
Era de minha cama que eu olhava hoje essas lembranças, pois voltara a deitar-me para
esperar o momento em que, aproveitando a ausência de meus pais, que tinham ido passar alguns
dias em Combray, contava ir naquela mesma noite ouvir uma pequena peça que se representava
em casa da Sra. de Villeparisis. Se eles estivessem de volta, talvez eu não ousasse fazê-lo; minha
mãe, nos escrúpulos de seu respeito pela recordação de minha avó, queria que as demonstrações
de pesar que lhe eram feitas o fossem livre e sinceramente; não teria me proibido aquela saída,
mas a desaprovaria. De Combray, ao contrário, consultada, só teria me respondido com um triste:
"Faze o que quiseres. Já és bastante grande para saberes o que deves fazer", mas
censurando-se por me haver deixado sozinho em Paris, e, julgando o meu desgosto pelo seu,
teria desejado para ele as distrações que recusava a si mesma e que se convencia que minha
avó, preocupada sobretudo com a minha saúde e o meu equilíbrio nervoso, me teria aconselhado.
Desde a manhã, haviam acendido o novo calorífero a água. Seu ruído desagradável que
dava de vez em quando uma espécie de soluço não tinha qualquer relação com minhas
lembranças de Doncieres. Mas o seu encontro prolongado com estas dentro de mim, naquela
tarde, ia fazê-lo contrair com elas uma afinidade tal que, a cada vez que (um tanto) desabituado
dele ouvisse de novo o aquecimento central, ele me faria recordá-las.
Em casa só havia Françoise. A claridade acinzentada, caindo como uma chuva fina, tecia
sem parar filetes transparentes em que os passeantes dominicais pareciam argentar-se.
Eu havia jogado a meus pés o Fígaro, que todos os dias mandava comprar
conscienciosamente desde que lhe enviara um artigo que não fora publicado; apesar da ausência
de sol, a intensidade da luz indicava que ainda estávamos no meio da tarde. As cortinas de tule
da janela, vaporosas e fiáveis como o não seriam num dia bonito, tinham aquela mesma mescla
de doçura e fragilidade das asas das libélulas e dos vidros de Veneza. Pesava-me tanto mais
estar sozinho naquele domingo porque mandara de manhã uma carta à Srta. de Stermaria.
Robert de Saint-Loup, que sua mãe conseguira fazer romper com a amante após
dolorosas tentativas abortadas, e que desde essa época fora enviado a Marrocos para esquecer
aquela a quem já não amava fazia algum tempo, escrevera-me um bilhete, recebido na véspera,
em que me anunciara sua próxima chegada à França para uma licença bem curta. Como só
estaria de passagem em Paris (onde a família sem dúvida temia que reatasse com Rachel),
avisava-me, para mostrar que havia pensado em mim, que encontrara em Tânger a Srta., ou
melhor, a Sra. de Stermaria, pois ela se divorciara após três meses de casamento. E Robert,
lembrando-se do que lhe havia dito em Balbec, pedira de minha parte um encontro com a jovem
senhora. Ela jantaria de bom grado comigo, respondera-lhe, num dos dias em que, antes de
regressar à Bretanha passaria em Paris. Robert dizia-me que me apressasse em escrever à Sra.
de Stermaria, pois ela certamente já chegara. A carta de Saint-Loup não me deixara espantado,
embora eu não tivesse notícias dele desde a ocasião da doença de minha avó, quando me
acusara de perfídia e traição. Então eu percebera muito bem o que se passara. Rachel, que
gostava de provocar o seu ciúme tinha também motivos acessórios para me querer mal,
convencera o amante que eu havia feito tentativas sorrateiras para ter relações com ela durante a
ausência de Robert. É provável que ele continuasse a crer que aquilo era verdade, mas deixara
de se interessar por ela, de modo que, verdade ou não, era-lhe totalmente indiferente e só a
nossa amizade subsistia.
Quando, uma vez em que voltei a vê-lo, quis tentar falar-lhe de suas censuras, ele se
limitou a um sorriso bom e carinhoso com o qual dava a impressão de desculpar-se, e depois
mudou de assunto. Não que não devesse, mais tarde, rever Rachel às vezes em Paris. É raro que
as criaturas que desempenharam um papel importante em nossa vida saiam dela de repente de
modo definitivo. Voltam a pousar nela por instantes (a ponto de que alguns creem num recomeço
do amor) antes de deixá-la para sempre.
A ruptura de Saint-Loup com Rachel rapidamente se lhe tornara menos dolorosa graças ao
prazer tranquilizante que lhe davam os incessantes pedidos de dinheiro de sua amiga. O ciúme,
que prolonga o amor, não pode conter muito mais coisas que as outras formas de imaginação. Se
a gente leva, quando em viagem, três ou quatro imagens que aliás se perderão pelo caminho (os
lírios e as anêmonas de Ponte Vecchio, a igreja persa nas brumas, etc...), a mala já está bem
cheia. Quando abandonamos uma amante, bem que gostaríamos, até que a tenhamos esquecido
um pouco, que ela não se tornasse propriedade de três ou quatro protetores possíveis e que a
gente imagina, isto é, de quem nos sentimos enciumados: os que não imaginam não são coisa
nenhuma. Ora, os frequentes pedidos de dinheiro de uma amante abandonada não nos dariam
uma ideia perfeita da sua vida mais do que os gráficos de temperatura elevada o dariam de sua
doença. Mas, mesmo assim, estes últimos seriam um sinal de que ela está doente, e os primeiros
fornecem uma presunção, por certo bastante vaga, de que a abandonada ou abandonadora não
deve ter encontrado grande coisa em matéria de protetores abastados. Assim, cada pedido é
acolhido com a alegria que uma calmaria produz nas dores do ciumento, e seguido imediatamente
da remessa de dinheiro, pois desejamos que não lhe falte nada, menos amantes (um dos três
amantes que imaginamos), durante o tempo que a gente levar para se recobrar um pouco e poder
saber, sem desfalecimento, o nome do sucessor. Às vezes Rachel voltou, já tarde da noite, para
pedir ao antigo amante licença para dormir a seu lado até a manhã. Era uma grande doçura para
Robert, pois ele se dava conta do quanto tinham vivido intimamente juntos, apesar de tudo, só de
ver que, mesmo ocupando sozinho a maior parte da cama, não a incomodava em nada para
dormir. Compreendia que ela estava, junto de seu corpo, mais a cômodo que em qualquer outra
parte, que ela se encontrava a seu lado mesmo que fosse num hotel como num quarto conhecido
há muito, onde a gente tem nossos hábitos e onde dorme melhor. Sentia que seus ombros, suas
pernas, todo ele, eram para ela, ainda quando se mexia demais devido à insônia ou por ter
trabalho a fazer, dessas coisas tão perfeitamente usuais que não podem embaraçar e cuja
percepção aumenta mais a sensação de repouso.
Voltando para trás, tanto mais me havia perturbado a carta que Robert me escrevera de
Marrocos porque percebia, nas entrelinhas, aquilo que ele não ousara dizer mais explicitamente.
"Podes muito bem convidá-la para um gabinete reservado" dizia-me. "É uma jovem encantadora,
de temperamento agradável, vocês se entenderão perfeitamente e desde já estou certo de que
hás de passar uma bela noite."
Como meus pais voltavam no fim da semana, sábado ou domingo, e depois eu seria
forçado a jantar todas as noites em casa, escrevera logo à Sra. de Stermaria para lhe propor o dia
que ela desejasse, até sexta-feira. Responderam-me que receberia uma carta cerca das oito
horas, naquele mesmo dia. Eu atingiria bem depressa essa hora se tivesse tido uma visita durante
a tarde que me separava dela. Quando as horas se envolvem nas conversas, já não podemos
mais medi-las, nem sequer vê-las, elas se desvanecem e, de súbito, muito longe do ponto em que
nos havia fugido, é que reaparece diante da nossa atenção o tempo ágil e escamoteado. Mas, se
estamos sós, a preocupação, trazendo para diante de nós o momento ainda distante e aguardado
sem cessar, com a frequência e a uniformidade de um tique-taque, divide, ou antes, multiplica as
horas por todos os minutos que, entre amigos, não teríamos contado. E confrontada, pela
recorrência incessante do meu desejo, com o prazer ardente que eu desfrutaria em apenas alguns
dias, ai de mim, com a Sra. de Stermaria, aquela tarde, que eu iria acabar sozinho, parecia-me
bem vazia e melancólica.
Por momentos, eu ouvia o barulho do elevador que subia, mas que era seguido de um
segundo barulho, não o que eu esperava, o da parada no meu andar, mas um outro bem diferente
do que fazia para continuar o seu caminho rápido para os andares superiores e que, por significar
tantas vezes a deserção do meu quando eu esperava uma visita, ficou sendo para já não
desejava mais nenhum, um barulho mim, mais tarde, e até quando doloroso por si mesmo, em
que ressoava como que uma sentença de abanupado ainda por várias horas em sua tarefa dono.
Cansado, resignado, e imemorial, o dia cinzento fiava a sua apassamanaria de nácar, e eu me
entristecia ao pensar que ia ficar sozinho com ele, que não me conhecia mais que uma operária
que, instalada junto à janela para ver mais claro, fazendo o seu trabalho, não se ocupa de modo
algum com a pessoa presente na sala. De repente, sem que tivesse ouvido soar a campainha,
Françoise veio abrir a porta e introduziu Albertine, que entrou risonha, silenciosa, repleta,
contendo na plenitude de seu corpo, preparados para que continuasse a vivê-los, vindos em
minha direção, os dias passados naquela Balbec aonde eu jamais regressara. Por certo, de cada
vez que revemos uma pessoa com quem as relações por mais insignificantes que sejam já
mudaram dá-se como que uma confrontação de duas épocas. Para tanto, não há tempo que
venha visitar-nos como amiga, basta necessidade que uma antiga amada visita a Paris de alguém
que conhecemos no dia-a-dia de um certo gênero de vida, e que essa vida tenha cessado,
mesmo que tenha sido apenas há uma semana. Em cada traço risonho, interrogativo e
constrangido da fisionomia de Albertine, eu podia soletrar estas perguntas:
''E a Sra. de Villeparisis? E o professor de dança? E o confeiteiro?"
Quando ela se sentou suas costas pareciam dizer-me:
Quando ela se sentou suas costas pareciam dizer-me:
"Droga, não há falésias aqui, permite-me como teria feito em Balbec?", eu me sentei
mesmo assim perto dela, que parecia uma feiticeira que me apresentasse um espelho do tempo.
Nisso eram pessoas que revemos raramente, mas que outrora semelhante a todas as pessoas
que conviveram mais intimidade conosco. Mas, quanto a Albertine, havia mais nos nossos
encontros diários, do que isso. Certamente, mesmo em Balbec, de tão cotidiana que ela era. Mas
eu sempre me surpreendia ao avistá-la, idas do vapor róseo que as banhava, agora mal se podia
reconhecê-la. Depois era outro rosto, brotado como de uma estátua. Suas feições haviam
mudado; seu corpo se desenvolvera. Já não era, ou melhor, por fim já se apresentara; restava
quase nada da bainha em que estivera envolvida e em cuja superfície mal se desenhava, em
Balbec, a forma futura.
Desta vez Albertine voltava a Paris mais cedo que de costume. De ordinário só chegava na
primavera, de modo que eu, já perturbado há algumas semanas pelas tempestades sobre as
primeiras flores, não separava, no prazer que sentia, a volta de Albertine e a da boa estação.
Bastava que me dissessem que ela se achava em Paris e que passara em minha casa para que a
revisse como uma rosa à beira-mar. Não sei bem se era o desejo de Balbec ou o desejo por ela
que então se apoderava de mim, e talvez mesmo o desejo por ela fosse uma forma indolente,
preguiçosa e incompleta de possuir Balbec, como se possuir materialmente uma coisa, fixar
residência numa cidade, equivalesse a possuí-la espiritualmente. E de resto, mesmo
materialmente, quando já não era embalada pela minha imaginação diante do horizonte marinho,
mas imóvel junto a mim, ela seguidamente me parecia uma rosa bem pobre, diante da qual
gostaria muito de fechar os olhos para não ver certo defeito das pétalas e para acreditar que
respirava na praia.
Posso dizê-lo aqui, muito embora não soubesse então o que só devia ocorrer mais adiante.
Decerto é mais razoável sacrificar a vida às mulheres que aos selos do correio, às velhas
caixas de rapé, e até aos quadros e às estátuas. Apenas, o exemplo das outras coleções nos
deveria advertir que trocássemos, que não tivéssemos somente uma mulher, porém várias. Essas
misturas encantadoras que uma jovem faz com uma praia, com a cabeleira trançada de uma
estátua de igreja, com uma estampa, com tudo aquilo pelo qual se ama em uma delas um quadro
encantador a cada vez que ela aparece, tais misturas não são muito estáveis. Vivei
completamente com uma mulher e não vereis mais coisa alguma do que vos fez amá-la;
certamente se os dois elementos se desunem, o ciúme pode juntá-los de novo. Se, depois de um
longo tempo de vida em comum, eu devesse acabar por ver em Albertine apenas uma mulher
ordinária, alguma intriga dela com uma criatura a quem tivesse amado em Balbec seria talvez o
bastante para que nela se incorporasse e amalgamasse a praia e o rebentar das ondas.
Unicamente, tais misturas secundárias já não deslumbram nossos olhos; é ao nosso coração que
elas são sensíveis e funestas. Não se pode achar desejável o renovar do milagre sob uma forma
tão perigosa. Mas estou antecipando os anos. E aqui devo apenas lamentar não ter permanecido
bastante sábio para ter simplesmente minha coleção de mulheres, como se tem binóculos antigos,
nunca suficientemente numerosos por trás da vitrine, onde sempre um lugar vazio espera um
binóculo novo e mais raro.
continua na página 157...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Visita de Albertine)
Volume 7
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