segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - O avô e o neto / VII - História de saias

Victor Hugo - Os Miseráveis

Terceira Parte - Mário

Livro Segundo — O velho burguês

     VII - História de saias
     
          O lanceiro de quem mais atrás falamos era um terceiro sobrinho de Gillenormand por parte do pai, que vivia a vida de soldado longe da família e do lar doméstico.
     O tenente Teodulo Gillenormand possuía todos os requisitos necessários para ser tido em conta de um belo oficial. Tinha «uma cinta de mulher», um modo donairoso de arrastar a espada, um bigode cuidadosamente penteado. Raras eram as vezes que vinha a Paris, tão raras, que Mário nunca o vira. Conheciam-se, pois, os dois primos apenas de nome. Teodulo, como julgamos ter já dito, era o favorito da a Gillenormand, que o preferia, porque o não tratava de perto. Não sermos tratados de perto dá azo a suporem-nos todas as perfeições possíveis.
     Uma manhã, a filha mais velha de Gillenormand recolheu-se ao seu quarto em tão grande estado de excitação quanto o permitia a sua placidez ordinária. Mário acabava de pedir mais uma vez licença a seu avô para fazer uma pequena excursão, tendo acrescentado que desejava partir na tarde desse mesmo dia. 

— Pode ir! — respondera Gillenormand, e acrescentara à parte, encrespando desmesuradamente as sobrancelhas: — Já é muito dormir fora de casa!

     Quanto à filha de Gillenormand, essa recolhera-se ao quarto sobremodo impressionada, lançando das escadas este ponto de admiração: 

— É de mais! — E este outro de interrogação: — Mas onde é que ele irá?

     Ela entrevia alguma aventura amorosa mais ou menos ilícita, uma mulher na penumbra, uma entrevista, um mistério, que não desgostaria de ver por entre os vidros dos seus óculos. Saborear um mistério é como um prazer de escândalo que às boas almas não desagrada, porque no beatério existe certo recôndito sentimento de curiosidade por tudo quanto cheira a escândalo.
     À tia de Mário, pois, dominava-a o vago apetite de saber uma história.
     Para distrair-se desta curiosidade, que a agitava de um modo menos conforme com os seus hábitos, buscara refúgio no exercício das prendas que sabia, pondo-se a trabalhar num desses bordados do tempo do império e da restauração, abundantes de certos lavores parecidos com rodas de sege. Serviço impertinente que se coadunava com o gênio áspero de quem dele lançava mão.
     Havia já algumas horas que ela estava sentada na sua cadeira, quando a porta se abriu. Levantou o nariz, e ao ver diante de si o tenente Teodulo, fazendo-lhe a continência militar, não pôde conter um grito de prazer. Ser velha, ser invencioneira, ser beata, ser a, não obsta a que qualquer mulher goste sempre de ver entrar um lanceiro no seu quarto. 

— Tu por aqui, Teodulo? — exclamou ela. 
— De passagem, minha tia. 
— Dá cá um abraço! 
— Pois não! — disse Teodulo.

     E o mancebo abraçou-a. A tia dirigiu-se à sua secretária e abriu-a. 

— Mas demoras-te ao menos até ao fim da semana? 
— Não, minha tia, vou hoje mesmo embora. 
— Não é possível! 
— É como lhe digo. 
— Fica, meu Theodulinho; peço-te que fiques. 
— O coração diz que fique, mas as ordens mandam que parta. O caso é simples. Nós estamos de guarnição em Melun, porém recebemos ordem de marchar para Gaillon, onde também ficaremos de guarnição. Ora, como um dos pontos do nosso itinerário é Paris, disse cá comigo: «Já que aqui estou, vou visitar minha tia». 
— Toma lá então pelo teu trabalho disse-lhe ela, metendo-lhe na mão dez luíses. — Pelo prazer de a ver, é que deve dizer, minha a — respondeu Teodulo, abraçando-a segunda vez, o que lhe proporcionou o prazer de sentir roçarem-lhe no pescoço os alamares da farda do mancebo. 
— Tu acompanhas o teu regimento a cavalo? — perguntou-lhe ela. 
— Não, minha tia. Como desejava vir vê-la, pedi uma licença especial para fazer a viagem em diligência e um camarada leva-me o cavalo. É verdade, deixe-me perguntar lhe uma coisa. 
— Que coisa? 
— Meu primo, Mário Pontmercy, pelo que vejo, também viaja? 
— Como sabes tu isso? — exclamou a tia, subitamente ferida na parte mais sensível da sua curiosidade. 
— Quando cheguei, dirigi-me logo ao escritório da diligência para tomar um lugar no coupé. 
— E daí? 
— Antes de mim, tinha vindo tomar um lugar na imperial outro viajante, cujo nome vi escrito na lista. 
— E que nome era? 
— Mário Pontmercy. 
— Que estroina! — exclamou a tia. 
— Se ele fosse um rapaz bem comportado como tu, não passava assim uma noite numa diligência! 
— Também eu vou passá-la. 
— Pois sim, mas tu é por dever, enquanto que ele é por estroinice. 
— Safa! — disse Teodulo.

     Neste ponto, a tia de Mário teve uma ideia que, se ela fosse homem, fá-la-ia bater na testa. 

— Sabes que teu primo não te conhece? — disse ela para Teodulo. 
— Sei. Quanto a mim já o vi, mas quanto a ele, nem sequer se dignou fazer reparo na minha pessoa. 
— Visto o que tu contas, fareis a viagem juntos? 
— Ele na imperial e eu no coupé. 
— Para onde vai a diligência? 
— Para Andelys. 
— Então Mário vai para lá? 
— A não se dar o caso que fique em algum ponto intermediário do caminho, como eu. Eu tenho de apear-me em Vernon para tomar a mala-posta de GailIon. Lá do itinerário de Mário não sei nada. 
— Mário! Que nome tão feio! Quem seria o da lembrança de lhe pôr o nome de Mário? Ao menos tu chamas-te Teodulo. 
— Antes queria chamar-me Alfredo — disse o oficial. 
— Ouve cá, Teodulo. 
— Diga, minha tia. 
— Repara. 
— Bem vejo. 
— Toma bem sentido. 
— Diga. 
— Pois bem. Mário ausenta-se de vez em quando. 
— Ah! 
— Vai viajar. 
— Eh! Eh! 
— Dorme lá por fora. 
— Oh! 
— Nós ainda desejávamos saber o que ele anda por lá a fazer.

     Teodulo respondeu com a serenidade de um homem de bronze: 

— Alguma história de saias.

     E acrescentou com esse sorriso intimamente certo do que afirma: 

— Algum namorico. 
— Isto com toda a certeza — exclamou a tia, que se persuadiu de que tinha ouvido Gillenormand e que sentiu sair-lhe irresistivelmente a convicção daquela palavra namorico, acentuada do mesmo modo pelo tio e pelo sobrinho. Continuou, pois: 

— Faz-nos um favor. Vê se consegues pescar alguma coisa a respeito de Mário. Como ele não te conhece, não podes ter nisso grande dificuldade. Uma vez que temos namorico, olha se avistas a menina. E depois escreve-nos a contar o caso, para fazer rir o avô.

     Teodulo nem por isso gostava muito do o cio de espião, mas como estava sobremodo comovido com os dez luíses, aos quais se lhe afigurava ver a possibilidade de uma continuação, aceitou a comissão, dizendo: 

— Farei o que deseja, minha tia.

     E acrescentou, falando para consigo: 

— Ora aí estou eu feito aia! 
— Tu é que não eras capaz de fazer semelhantes estroinices! — disse a tia, abraçando o. — Obedeces à disciplina, és escravo das ordens militares, és um homem escrupuloso no cumprimento dos teus deveres, nem serias capaz de deixar a tua família para ir ver uma dessas criaturas.

     O lanceiro fez a careta de satisfação de um Cartuxo louvado pela sua probidade.
     Mário, na tarde que se seguiu a este diálogo, entrou na diligência sem suspeitar que tinha quem lhe vigiasse os passos. Quanto ao encarregado de os vigiar, a primeira coisa que fez foi dormir. Foi um sonho completo e consciencioso. Argus dormiu toda a noite.
     De madrugada, o condutor da diligência gritou: 

— Vernon! Estação de Vernon! Os passageiros que ficam em Vernon!

     O tenente Teodulo acordou. 

— Bem — tartamudeou ele, meio acordado meio a dormir — eu fico aqui.

     Depois, foi-se-lhe pouco a pouco aclarando a memória, varrendo dela as nuvens do sono, e lembrou-se então de sua tia, dos dez luíses, do encargo que tomara de dar conta dos atos e gestos de Mário, e tudo isto o fez rir. 

— Decerto já não vem na diligência — disse ele consigo, ao mesmo tempo que apertava a farda dos dias ordinários. — Talvez ficasse em Poissy, ou talvez em Triel; se não se apeou em Meulan, talvez se apeasse em Mantes, a não ser que ficasse em Rolleboise, ou em Pacy, carregando sobre a esquerda para Evreux, ou tomando à direita para Laroche-Guyon. Corre atrás dele agora, minha a. Que diabo hei-de eu escrever à pobre velha?

     Neste momento roçavam pela vidraça do coupé as calças pretas de um indivíduo que descia. 

— Será Mário? — disse consigo o tenente.
     
     Era ele com efeito.
     Junto da carruagem, de envolta com cavalos e postilhões, estava uma rapariga de campo, oferecendo flores aos passageiros: 

— Comprem flores, para as senhoras! — gritava ela.

     Mário aproximou-se da rapariga e comprou-lhe as mais belas flores do seu açafate. 

— Agora também eu tenho vontade de saber o que isto é. A quem diabo vai ele levar aquelas flores? É necessário ser linda mulher para merecer um tal ramalhete. Quero vê-la.

     E, não para satisfazer a incumbência da sua tia, mas por curiosidade pessoal, como os cães que caçam por sua conta, começou a seguir Mário.
     Este não prestava a mínima atenção a Teodulo. Da carruagem apearam-se algumas mulheres elegantes: mas ele nem as via. Parecia não reparar em coisa alguma. 

— Está apaixonado! — pensou Teodulo.

     Mário dirigiu-se para a igreja. 

— Não tem que ver! — disse consigo Teodulo. — As entrevistas amorosas temperadas com um tanto ou quanto de missa são as melhores. Não há nada mais mimoso do que uma olhadela que passa por cima de Deus.

     Chegando à igreja, Mário não entrou e, contornando-a, desapareceu pela parte de trás. 

— O ponto de reunião é fora da igreja — pensou Teodulo. — Vejamos a pequena. E avançou nos bicos dos pés para o ângulo por onde Mário tinha voltado.

     Apenas, porém, a dobrou, parou estupefato.
     Mário, com a fronte oculta entre ambas as mãos, estava ajoelhado na erva, sobre uma sepultura, onde tinha desfolhado o seu ramalhete. Na extremidade da sepultura, numa elevação que determinava o lugar da cabeça, havia uma cruz de madeira preta com este nome em letras brancas: CORONEL BARÃO DE PONTMERCY. Mário soluçava.
     A sua amante era uma sepultura.

continua na página 482...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - VII - História de saias
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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