quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (12) - Às sete horas da noite

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

12.

     Às sete horas da noite o príncipe se preparava para ir ao parque quando, sem ser esperada, Lizavéta Prokófievna entrou sozinha pela varanda adentro.

- Não vá pensar - começou ela -, e lhe digo isso antes de mais nada, que lhe vim pedir perdão. Era só o que faltava. A culpa foi inteiramente sua. - o príncipe não respondeu uma única palavra - Foi, ou não foi?
- Tanto minha, como sua, muito embora nem eu nem a senhora tenhamos do que ser censurados. Amolei-me trasanteontem, mas hoje cheguei à conclusão de que não tinha razão nenhuma para isso. 
- Então é o que tem a dizer? Muito bem. Escute, mas escute sentado pois não pretendo ficar em pé.

     Sentaram-se ambos. 

- Em segundo lugar, nem sequer uma só palavra a respeito dos tais rapazes. Sentei-me apenas por uns dez minutos. Vim para colher informações. (E calculo já quanta coisa você não está imaginando.) E se você se referir, mesmo por alto, aos rapazes daquela noite, àqueles insolentes, eu me levanto, vou embora e rompo definitivamente com você. 
- Perfeitamente - respondeu o príncipe. 
- Permita que lhe pergunte uma coisa. Mandou você, há uns dois meses, ou mesmo dois meses e meio, aí pela Páscoa, uma carta para Agláia?
- Escrevi.
- Com que fim? Que dizia essa carta? Mostre-me essa carta!

     Os olhos de Lizavéta Prokófievna despediam chispas, toda ela se agitava com impaciência.

- Não está comigo. - o príncipe ficou zonzo e horrivelmente desapontado - Se ela não a pôs fora, está com ela, com Agláia Ivánovna. 
- Não finja! Que é que você escreveu?
- Não estou fingindo, não tenho de que ter medo. E não vejo razão alguma para não poder lhe ter escrito...
- Não dê com a língua nos dentes. Tem muito tempo para falar depois. Que dizia a carta? Por que é que você está ficando vermelho?

     O príncipe pensou um pouco. 

- Não estou compreendendo o que a senhora quer; apenas percebo que esse caso da carta a aborreceu. Mas deve concordar que eu posso recusar-me a responder a essa pergunta. Para lhe mostrar, porém, que não é a carta que me está embaraçando e que não me arrependo de a ter escrito e que absolutamente não estou vermelho por causa dela - Míchkin ficou mais vermelho ainda, no mínimo o dobro do que estava - vou lhe repetir a carta, pois acho que a sei de cor.

     Dito isso, o príncipe repetiu a carta, quase palavra por palavra, conforme a escrevera. 

- Mas que amontoado de asneiras? Qual a significação de todos esses disparates? Explique-me, já que os escreveu - perguntou Lizavéta Prokófievna, de um modo agudo, depois de ouvir com uma atenção extraordinária.
- Eu próprio não poderia explicar bem. Só sei que escrevi com sinceridade. Naquela ocasião eu tive momentos de intensa vivacidade e invulgares esperanças. 
- Esperanças? Quais? 
- É difícil explicar. Mas não é o que a senhora está pensando aí, talvez. Esperanças... Isto é... em uma palavra, esperanças quanto ao futuro! E alegria por não ser, talvez, um estranho em uma certa casa... Veio-me, de repente, um enternecimento pelas coisas do neu país. Certa manhã de sol peguei da pena e escrevi. Por que a ela, não sei. Quanta vez a gente espera contar com um amigo ao seu lado, compreende? E a impressão é que eu precisava de um amigo - acrescentou o príncipe, depois de uma pausa.
- Você está apaixonado?  
- Não. Eu... eu escrevi como se escrevesse a uma irmã. De fato, cheguei até a assinar “Seu irmão".
- Sim. Você sabia por quê. Estou compreendendo.
- É-me muito desagradável. Lizavéta Prokófievna, responder a essas perguntas.
- Eu sei que lhe é desagradável, mas que me importa que lhe seja desagradável? Escute, conte-me a verdade. Como se estivesse diante de Deus. Você me está mentindo, ou não?
- Não estou, não.
- Você está falando a verdade, ao dizer que não está apaixonado?
- Acho que é a pura verdade.
- Palavra de honra? Então você “acha”, hein? Foi o garoto quem levou a carta? 
- Pedi a Nikolái Ardaliónovitch...
- O garoto! O garoto! - e Lizavéta Prokófievna o interrompeu violentamente - Não conheço nenhum Nikolái Ardaliónovitch, só conheço o garoto. 
- Estou dizendo Nikolái Ardaliónovitch.
- O garoto, digo-lhe eu.
- Garoto, não. Nikolái Ardaliónovitch - respondeu o príncipe, teimando firmemente, embora de maneira delicada.
- Oh! Muito bem, meu caro, muito bem! Conservarei essa queixa contra você. - por um minuto dominou sua emoção e ficou calma - E que significa essa história de “pobre cavaleiro”? 
- Absolutamente não sei. Não tenho nada de ver com isso. Alguma brincadeira.
- Ouvir tudo isso, de uma vez, é agradável! Mas como poderia ela estar interessada em você? Como, se o chamou de alienado e de idiota? 
- A senhora não precisava me contar isso - observou o príncipe, em ar de reprimenda, mas em tom quase de sussurro.
- Não se zangue. Ela é uma moça estouvada, rebelde e maluca. Quando se interessa por alguém só sabe tratar assim, grosseiramente, confundindo a pessoa em pleno rosto. Com qualquer outro faria o mesmo. Mas é favor não ficar triunfante, meu caro amigo, ela não é sua. Não quero nem pensar nisso e nunca tal se dará. Escute uma coisa: jure-me que você não se casou com aquela mulher.
- Lizavéta Prokófievna, que é que a senhora está dizendo? Dou-lhe a minha palavra!

     E o príncipe quase deu um salto de espanto.

- Mas você esteve para se casar com ela, não esteve?
- Estive quase me casando - balbuciou o príncipe, abaixando a cabeça.
- Então você está apaixonado por ela? Foi por causa dessa outra que você apareceu por aqui? Foi por causa dela?
- Não vim para me casar - respondeu o príncipe.
- Tem você alguma coisa no mundo que considere como sagrada?
- Tenho, sim, senhora.  
- Jure, então, que não veio para se casar com ela. 
- Juro pelo que a senhora quiser.
- Acredito em você. Beije-me. Até que enfim posso respirar livremente: mas deixe que lhe diga: Agláia não ama você, fique avisado disso, e não se casará com você enquanto eu for viva; está ouvindo?
- Estou ouvindo, sim senhora...

     E o príncipe enrubesceu tanto que não pôde continuar olhando para Lizavéta Prokófievna.


- Preste bem atenção. Considerei a sua volta como minha Providência. (Você não vale isso!) Molhei muitas fronhas com as minhas lágrimas, à noite. Não por sua causa, meu caro, não precisa inquietar-se. Também eu tenho os meus tormentos... e bem diferentes, perpetuamente os mesmos. Eis por que andei esperando o seu regresso com tal impaciência. Ainda acredito que o próprio Deus me enviou você como um amigo e irmão. Não tenho mais ninguém. Exceto a Princesa Bielokónskaia; e essa mesma está longe e, além disso, é tão estúpida como um carneiro com aquela sua velhice. Agora me responda simplesmente: sim, ou não. Se sabe, ou se não sabe por que foi que ela deu aqueles gritos lá da carruagem trasanteontem.
- Dou-lhe a minha palavra de honra que não sei de nada referente a isso e que nem estou nessa história.
- Basta; acredito em você. Agora já tenho outras ideias a tal respeito. Ontem de manhã atirei toda a culpa sobre Evguénii Pávlovitch... após levar três dias a fazer ilações. Ficou perfeitamente evidente que ele foi ridicularizado como um imbecil, por alguma causa, por algum motivo, com algum fim. Seja como for, isso dá apreensões! E não fica bem! Mas Agláia não se casará com ele, digo-lhe desde já. Ele pode ser um homem esplêndido, mas é assim que as coisas são. Antes, ainda hesitei; mas agora me convenci da realidade. “Põe-me primeiro em um caixão, enterra-me depois, e então poderás casar tua filha”. Foi o que eu disse hoje sem titubear a Iván Fiódorovitch. Vê a confiança que deposito em você? Está vendo bem? 
- Vejo e compreendo.

     Lizavéta Prokófievna olhou penetrantemente para o príncipe. Decerto ela queria sorrateiramente descobrir que impressão essas notícias a respeito de Evguénii Pávlovitch causavam nele.

- Você não sabe de nada, quanto a Gavríl Ardaliónovitch?
- Ao contrário... Sei muita coisa. 
- Você soube, ou não soube, que ele... reatou relações com Agláia? 
- Absolutamente não soube - disse o príncipe, surpreendido e mesmo atarantado - A senhora diz que Gavríl Ardaliónovitch mantém intimidade com Agláia Ivánovna? Impossível!
- Sim, ultimamente, sim. A irmã esteve preparando o caminho aqui para ele, todo o inverno. Trabalhando como um rato, indo e vindo.
- Não acredito - repetiu o príncipe, firmemente, depois de certa reflexão, muito perturbado - Se isso se tivesse dado, certamente que eu teria sabido.
- Acha que ele viria espontaneamente fazer-lhe uma lacrimosa confissão, reclinado sobre o seu peito? Ah! Você é um simplório! Um simplório! Todo o mundo faz de você o que quer... Não tem vergonha de confiar nele? Pois não vê que ele lhe está armando um embuste? 
- Eu sei muito bem que ele me decepciona muitas vezes - considerou o príncipe, com relutância, em voz baixa - E ele sabe muito bem que eu sei... - e o príncipe se calou.
- Você sabe mas continua confiando nele! Isso é o cúmulo! Mas também que se havia de esperar de você? Não tenho do que ficar surpreendida. Senhor Deus! Você sempre será o mesmo homem! Irra!... E sabe que esse Gánia, ou essa Vária, a puseram em correspondência com Nastássia Filíppovna?
- Puseram quem? 
- Agláía.
- Não acredito! É impossível! Com que fim? - ergueu-se da cadeira.
- Também eu não acreditava, mas há provas. É uma rapariga voluntariosa, caprichosa, doida! Perversa, perversa, perversa! Digo e repetirei durante mil anos - ela é uma rapariga ruim! Todas o são, mesmo essa insossa franguinha Aleksándra; mas Agláia ultrapassa todos os limites. Chego até a não acreditar! Talvez porque não me convenha acreditar! - ajuntou, como que para si só - Por que você não nos veio ver? - virou-se prontamente para o príncipe - Por que levou três dias sem aparecer? - gritou com ar impaciente. 

     O príncipe pôs-se a dar os motivos, mas novamente ela o interrompeu:

- Todos a consideram um maluco e não acreditam em você! Foi ontem à cidade? Aposto como foi implorar de joelhos àquele tratante que aceitasse o seu dinheiro, os seus dez mil rublos!
- Absolutamente; isso nem me passou pela cabeça. Não fui vê-lo: de mais a mais ele não é um tratante! Mandou-me uma carta.
- Mostre-a!  

     O príncipe tirou uma folha da sua carteira e a estendeu a Lizavéta Prokófievna. Dizia assim:

Caro Senhor. - Não tenho, perante olhos alheios, o menor direito a qualquer orgulho. Na opinião do mundo sou demasiado insignificante para ter tal luxo. Mas isso é perante os olhos de outros e não perante os seus. Estou perfeitamente persuadido, caro senhor, de que é melhor do que os outros homens. Não concordo com Doktorénko e rompi com ele por causa desta divergência. Nunca receberei dinheiro, por menor que seja, do senhor: mas ajudou minha mãe e portanto tenho de lhe ser grato, mesmo que isso seja uma prova de fraqueza. Em todo o caso já agora o considero de modo diferente, e me acho no dever de lhe dizer. E em conformidade com isso me parece que não pode haver mais relações de qualquer ordem entre nós. 
Antíp Burdóvskii 
P.S. Os duzentos rublos que faltam lhe hão de ser pagos corretamente assim que for possível. 

- Quanta asneira e bobagem! - comentou Lizavéta Prokófievna, atirando- lhe com o papel de volta - Nem merece leitura. Por que você está se arreganhando?
- Confesse que ficou contente com o que leu! E bastante.
- Quê? Com este amontoado de besteiras tresandando a vaidade? Ora, mas você não está vendo que todos eles estão giras, com orgulho e vaidade?
- Sim, mas ele próprio se confessa em erro, rompeu com Doktorénko e, por ser vaidoso, isso lhe deve ter custado ainda mais. Oh! A senhora não passa de uma criança. Lizavéta Prokófievna! Quer, no fim de tudo, que eu esbofeteie você?
- Não, de modo algum. Mas por que quer a senhora fingir que não ficou satisfeita com a carta? Está envergonhada dos seus sentimentos? Em tudo a senhora é assim!
- Não se atreva mais a dar um passo para ir me ver - gritou Lizavéta Prokófievna, ficando em pé e se tornando pálida de tanta raiva - Não quero nunca mais lhe pôr os olhos em cima!
- Dentro de três dias a senhora virá por sua espontânea vontade convidar- me. Ora, diga, não se sente envergonhada? Pois se esses seus sentimentos são dos melhores! A senhora bem sabe que com isso está apenas se afligindo. 
- Nunca o convidarei, nem que esteja morrendo por isso. Esquecerei o seu nome! Até já o esqueci!

     Afastou-se de perto do príncipe. 

- Não é preciso a senhora me proibir. Já me proibiram! - disse o príncipe, seguindo-a. 
- O... quê? Quem o proibiu? - virou-se como um relâmpago, como se uma agulha a tivesse picado. 

     O príncipe, hesitou em responder; sentiu que tinha dado uma escorregadela em falso. Lizavéta Prokófievna refletiu um pouco; depois avançou para o príncipe, tomou-o pela mão e o arrastou atrás de si escadas abaixo.

- Vamos. Imediatamente! Tem de ser já, agora mesmo! - gritou, em um acesso de extraordinária excitação e impaciência - Quem foi que o proibiu? - gritou Lizavéta Prokófievna, violentamente. 
- Agláia Ivánovna. 
- Quando? Fale, homem! 
- Mandou-me dizer, esta manhã, que não me atrevesse a ir vê-las outra vez.  

     Lizavéta Prokófievna ficou como que petrificada, mas se pôs a refletir.

- Mandou como? Mandou quem? Pelo garoto? Um recado verbal? - perguntou mais uma vez. 
- Eu tenho o bilhete. 
- Onde? Dê-me isso. Já!

     Míchkin pensou um minuto: por fim tirou do bolso do colete um pedaço de papel enxovalhado onde estava escrito:

Príncipe Liév Nikoláievitch! - Se, depois de tudo quanto aconteceu, conta surpreender-me com a sua visita à nossa vila, saiba desde já que não me encontrará entre os que se comprazerão em vê-lo. 
Agláia Epantchiná 
     
      Lizavéta Prokófievna refletiu um pouco; depois avançou para o príncipe, tomou-o pela mão e o arrastou atrás de si escadas abaixo.

- Vamos. Imediatamente! Tem de ser já, agora mesmo! - gritou, em um acesso de extraordinária excitação e impaciência. 
- Mas a senhora está me expondo a... 
- A quê? Inocente! Palerma! Você nem parece homem! Ainda bem que vou ver isso tudo eu mesma, com os meus olhos. 
- Mas deixe ao menos que eu pegue o meu chapéu... 
- Pronto, está aqui o seu horroroso chapéu! Vamos! Não sabe nem escolher as suas coisas com gosto!... Há! Então ela lhe escreveu isso... depois do que se passou!? Birra, veneta: ou acesso?!... - murmurou Lizavéta Prokófievna, arrastando o príncipe por ali fora e sem lhe soltar a mão - Ainda hoje o defendeu lá em casa e disse alto que era um bobo em não vir ver-nos... Mas justamente por isso ela não lhe devia ter escrito um bilhete tão insensato! Um bilhete impróprio! Indigno de uma menina distinta, bem-educada e sensata! Ah!... Já sei! Já sei!... Ela ficou ansiosa com o fato de você não aparecer lá em casa! Mas fez muito mal em escrever nestes termos a um idiota, porque em lugar de entender o que ela queria, você tomou a carta ao pé da letra, como uma proibição... Está gostando de me ouvir, não é? Feche esses ouvidos! - gritou, toda inflamada, ao perceber que falara demais - Ela precisa de alguém, como você... para se rir. Desde muito que ela procura um fantoche, eis por que o chamou. E agora estou satisfeita, satisfeitíssima... pois minha filha acabou achando um bufão! Estou satisfeitíssima. É para o que você serve! E ela sabe como deve manobrá-lo. Oh, se sabe! E bem!...

O Idiota: Segunda Parte (12) - Às sete horas da noite
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Nota do Tradutor: 
- A expressão “quebrar cadeiras” foi empregada por Gógol na peça O Inspetor-Geral. Um professor de História é censurado por se exaltar a ponto de quebrar cadeiras” quando fala de Alexandre o Grande. Assim, quando se quer exprimir com despropositado dispêndio de energia, emprega-se tal expressão.

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