O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Segunda Parte
12.
Às sete horas da noite o príncipe se preparava para ir ao parque quando, sem ser esperada, Lizavéta Prokófievna entrou sozinha pela varanda adentro.
- Não vá
pensar - começou ela -, e lhe digo isso antes de mais nada, que lhe vim pedir
perdão. Era só o que faltava. A culpa foi inteiramente sua. - o príncipe não
respondeu uma única palavra - Foi, ou não foi?
- Tanto minha, como sua, muito embora nem eu nem a senhora tenhamos do que
ser censurados. Amolei-me trasanteontem, mas hoje cheguei à conclusão de que
não tinha razão nenhuma para isso.
- Então é o que tem a dizer? Muito bem.
Escute, mas escute sentado pois não pretendo ficar em pé. Sentaram-se ambos.
- Em segundo lugar, nem sequer uma só palavra a respeito dos tais rapazes.
Sentei-me apenas por uns dez minutos. Vim para colher informações. (E calculo
já quanta coisa você não está imaginando.) E se você se referir, mesmo por alto,
aos rapazes daquela noite, àqueles insolentes, eu me levanto, vou embora e
rompo definitivamente com você.
- Perfeitamente - respondeu o príncipe.
-
Permita que lhe pergunte uma coisa. Mandou você, há uns dois meses, ou
mesmo dois meses e meio, aí pela Páscoa, uma carta para Agláia?
- Escrevi.
- Com que fim? Que dizia essa carta? Mostre-me essa carta!
Os olhos de Lizavéta
Prokófievna despediam chispas, toda ela se agitava com impaciência.
- Não está
comigo. - o príncipe ficou zonzo e horrivelmente desapontado - Se ela não a pôs
fora, está com ela, com Agláia Ivánovna.
- Não finja! Que é que você escreveu?
- Não estou fingindo, não tenho de que ter medo. E não vejo razão alguma para
não poder lhe ter escrito...
- Não dê com a língua nos dentes. Tem muito tempo para falar depois. Que dizia
a carta? Por que é que você está ficando vermelho?
O príncipe pensou um pouco.
- Não estou compreendendo o que a senhora quer; apenas percebo que
esse caso da carta a aborreceu. Mas deve concordar que eu posso recusar-me a
responder a essa pergunta. Para lhe mostrar, porém, que não é a carta que me
está embaraçando e que não me arrependo de a ter escrito e que absolutamente
não estou vermelho por causa dela - Míchkin ficou mais vermelho ainda, no
mínimo o dobro do que estava - vou lhe repetir a carta, pois acho que a sei de cor.
Dito isso, o príncipe repetiu a carta, quase palavra por palavra, conforme a
escrevera.
- Mas que amontoado de asneiras? Qual a significação de todos esses disparates?
Explique-me, já que os escreveu - perguntou Lizavéta Prokófievna, de um modo
agudo, depois de ouvir com uma atenção extraordinária.
- Eu próprio não poderia
explicar bem. Só sei que escrevi com sinceridade. Naquela ocasião eu tive
momentos de intensa vivacidade e invulgares esperanças.
- Esperanças? Quais?
- É difícil explicar. Mas não é o que a senhora está pensando aí, talvez.
Esperanças... Isto é... em uma palavra, esperanças quanto ao futuro! E alegria
por não ser, talvez, um estranho em uma certa casa... Veio-me, de repente, um
enternecimento pelas coisas do neu país. Certa manhã de sol peguei da pena e
escrevi. Por que a ela, não sei. Quanta vez a gente espera contar com um amigo
ao seu lado, compreende? E a impressão é que eu precisava de um amigo -
acrescentou o príncipe, depois de uma pausa.
- Você está apaixonado?
- Não. Eu... eu escrevi como se escrevesse a uma irmã. De fato, cheguei até a
assinar “Seu irmão".
- Sim. Você sabia por quê. Estou compreendendo.
- É-me muito desagradável.
Lizavéta Prokófievna, responder a essas perguntas.
- Eu sei que lhe é desagradável, mas que me importa que lhe seja desagradável?
Escute, conte-me a verdade. Como se estivesse diante de Deus. Você me está
mentindo, ou não?
- Não estou, não.
- Você está falando a verdade, ao dizer que não está apaixonado?
- Acho que é a
pura verdade.
- Palavra de honra? Então você “acha”, hein? Foi o garoto quem levou a carta?
- Pedi a Nikolái Ardaliónovitch...
- O garoto! O garoto! - e Lizavéta Prokófievna o interrompeu violentamente - Não conheço nenhum Nikolái Ardaliónovitch, só conheço o garoto.
- Estou
dizendo Nikolái Ardaliónovitch.
- O garoto, digo-lhe eu.
- Garoto, não. Nikolái Ardaliónovitch - respondeu o príncipe, teimando
firmemente, embora de maneira delicada.
- Oh! Muito bem, meu caro, muito
bem! Conservarei essa queixa contra você. - por um minuto dominou sua emoção e ficou calma - E que significa essa
história de “pobre cavaleiro”?
- Absolutamente não sei. Não tenho nada de ver
com isso. Alguma brincadeira.
- Ouvir tudo isso, de uma vez, é agradável! Mas como poderia ela estar
interessada em você? Como, se o chamou de alienado e de idiota?
- A senhora
não precisava me contar isso - observou o príncipe, em ar de reprimenda, mas
em tom quase de sussurro.
- Não se zangue. Ela é uma moça estouvada, rebelde
e maluca. Quando se interessa por alguém só sabe tratar assim, grosseiramente,
confundindo a pessoa em pleno rosto. Com qualquer outro faria o mesmo. Mas é
favor não ficar triunfante, meu caro amigo, ela não é sua. Não quero nem pensar
nisso e nunca tal se dará. Escute uma coisa: jure-me que você não se casou com
aquela mulher.
- Lizavéta Prokófievna, que é que a senhora está dizendo? Dou-lhe a minha
palavra!
E o príncipe quase deu um salto de espanto.
- Mas você esteve para se casar com
ela, não esteve?
- Estive quase me casando - balbuciou o príncipe, abaixando a
cabeça.
- Então você está apaixonado por ela? Foi por causa dessa outra que você
apareceu por aqui? Foi por causa dela?
- Não vim para me casar - respondeu o príncipe.
- Tem você alguma coisa no
mundo que considere como sagrada?
- Tenho, sim, senhora.
- Jure, então, que não veio para se casar com ela.
- Juro pelo que a senhora
quiser.
- Acredito em você. Beije-me. Até que enfim posso respirar livremente:
mas deixe que lhe diga: Agláia não ama você, fique avisado disso, e não se
casará com você enquanto eu for viva; está ouvindo?
- Estou ouvindo, sim
senhora...
E o príncipe enrubesceu tanto que não pôde continuar olhando para
Lizavéta Prokófievna.
- Preste bem atenção. Considerei a sua volta como minha
Providência. (Você não vale isso!) Molhei muitas fronhas com as minhas
lágrimas, à noite. Não por sua causa, meu caro, não precisa inquietar-se.
Também eu tenho os meus tormentos... e bem diferentes, perpetuamente os
mesmos. Eis por que andei esperando o seu regresso com tal impaciência. Ainda
acredito que o próprio Deus me enviou você como um amigo e irmão. Não tenho
mais ninguém. Exceto a Princesa Bielokónskaia; e essa mesma está longe e, além
disso, é tão estúpida como um carneiro com aquela sua velhice. Agora me
responda simplesmente: sim, ou não. Se sabe, ou se não sabe por que foi que ela
deu aqueles gritos lá da carruagem trasanteontem.
- Dou-lhe a minha palavra de
honra que não sei de nada referente a isso e que nem estou nessa história.
- Basta; acredito em você. Agora já tenho outras ideias a tal respeito. Ontem de
manhã atirei toda a culpa sobre Evguénii Pávlovitch... após levar três dias a fazer
ilações. Ficou perfeitamente evidente que ele foi ridicularizado como um
imbecil, por alguma causa, por algum motivo, com algum fim. Seja como for,
isso dá apreensões! E não fica bem! Mas Agláia não se casará com ele, digo-lhe
desde já. Ele pode ser um homem esplêndido, mas é assim que as coisas são.
Antes, ainda hesitei; mas agora me convenci da realidade. “Põe-me primeiro em
um caixão, enterra-me depois, e então poderás casar tua filha”. Foi o que eu
disse hoje sem titubear a Iván Fiódorovitch. Vê a confiança que deposito em
você? Está vendo bem?
- Vejo e compreendo.
Lizavéta Prokófievna olhou penetrantemente para o príncipe. Decerto ela queria
sorrateiramente descobrir que impressão essas notícias a respeito de Evguénii
Pávlovitch causavam nele.
- Você não sabe de nada, quanto a Gavríl Ardaliónovitch?
- Ao contrário... Sei
muita coisa.
- Você soube, ou não soube, que ele... reatou relações com Agláia?
-
Absolutamente não soube - disse o príncipe, surpreendido e mesmo atarantado - A senhora diz que Gavríl Ardaliónovitch mantém intimidade com Agláia
Ivánovna? Impossível!
- Sim, ultimamente, sim. A irmã esteve preparando o caminho aqui para ele, todo
o inverno. Trabalhando como um rato, indo e vindo.
- Não acredito - repetiu o
príncipe, firmemente, depois de certa reflexão, muito perturbado - Se isso se tivesse dado, certamente que eu teria sabido.
- Acha que ele viria
espontaneamente fazer-lhe uma lacrimosa confissão, reclinado sobre o seu peito?
Ah! Você é um simplório! Um simplório! Todo o mundo faz de você o que quer...
Não tem vergonha de confiar nele? Pois não vê que ele lhe está armando um
embuste?
- Eu sei muito bem que ele me decepciona muitas vezes - considerou o príncipe,
com relutância, em voz baixa - E ele sabe muito bem que eu sei... - e o príncipe
se calou.
- Você sabe mas continua confiando nele! Isso é o cúmulo! Mas também que se
havia de esperar de você? Não tenho do que ficar surpreendida. Senhor Deus!
Você sempre será o mesmo homem! Irra!... E sabe que esse Gánia, ou essa
Vária, a puseram em correspondência com Nastássia Filíppovna?
- Puseram
quem?
- Agláía.
- Não acredito! É impossível! Com que fim? - ergueu-se da cadeira.
- Também
eu não acreditava, mas há provas. É uma rapariga voluntariosa, caprichosa,
doida! Perversa, perversa, perversa! Digo e repetirei durante mil anos - ela é
uma rapariga ruim! Todas o são, mesmo essa insossa franguinha Aleksándra;
mas Agláia ultrapassa todos os limites. Chego até a não acreditar! Talvez porque
não me convenha acreditar! - ajuntou, como que para si só - Por que você não
nos veio ver? - virou-se prontamente para o príncipe - Por que levou três dias
sem aparecer? - gritou com ar impaciente.
O príncipe pôs-se a dar os motivos,
mas novamente ela o interrompeu:
- Todos a consideram um maluco e não
acreditam em você! Foi ontem à cidade? Aposto como foi implorar de joelhos
àquele tratante que aceitasse o seu dinheiro, os seus dez mil rublos!
- Absolutamente; isso nem me passou pela cabeça. Não fui vê-lo: de mais a mais
ele não é um tratante! Mandou-me uma carta.
- Mostre-a!
O príncipe tirou uma folha da sua carteira e a estendeu a Lizavéta Prokófievna.
Dizia assim:
Caro Senhor. - Não tenho, perante olhos alheios, o menor direito a qualquer
orgulho. Na opinião do mundo sou demasiado insignificante para ter tal luxo. Mas
isso
é perante os olhos de outros e não perante os seus. Estou perfeitamente
persuadido, caro
senhor, de que é melhor do que os outros homens. Não concordo com Doktorénko
e
rompi com ele por causa desta divergência. Nunca receberei dinheiro, por menor
que
seja, do senhor: mas ajudou minha mãe e portanto tenho de lhe ser grato, mesmo
que
isso seja uma prova de fraqueza. Em todo o caso já agora o considero de modo
diferente,
e me acho no dever de lhe dizer. E em conformidade com isso me parece que não
pode
haver mais relações de qualquer ordem entre nós.
Antíp Burdóvskii
P.S. Os duzentos rublos que faltam lhe hão de ser pagos corretamente assim que
for possível.
- Quanta asneira e bobagem! - comentou Lizavéta Prokófievna, atirando- lhe
com o papel de volta - Nem merece leitura. Por que você está se arreganhando?
- Confesse que ficou
contente com o que leu! E bastante.
- Quê? Com este amontoado de besteiras
tresandando a vaidade? Ora, mas você não está vendo que todos eles estão giras,
com orgulho e vaidade?
- Sim, mas ele próprio se confessa em erro, rompeu
com Doktorénko e, por ser vaidoso, isso lhe deve ter custado ainda mais. Oh! A
senhora não passa de uma criança. Lizavéta Prokófievna! Quer, no fim de tudo,
que eu esbofeteie você?
- Não, de modo algum. Mas por que quer a senhora fingir que não ficou satisfeita
com a carta? Está envergonhada dos seus sentimentos? Em tudo a senhora é
assim!
- Não se atreva mais a dar um passo para ir me ver - gritou Lizavéta
Prokófievna, ficando em pé e se tornando pálida de tanta raiva - Não quero
nunca mais lhe pôr os olhos em cima!
- Dentro de três dias a senhora virá por sua espontânea vontade convidar- me.
Ora, diga, não se sente envergonhada? Pois se esses seus sentimentos são dos
melhores! A senhora bem sabe que com isso está apenas se afligindo.
- Nunca o
convidarei, nem que esteja morrendo por isso. Esquecerei o seu nome! Até já o
esqueci!
Afastou-se de perto do príncipe.
- Não é preciso a senhora me proibir. Já me proibiram! - disse o príncipe,
seguindo-a.
- O... quê? Quem o proibiu? - virou-se como um relâmpago, como se uma
agulha a tivesse picado.
O príncipe, hesitou em responder; sentiu que tinha dado
uma escorregadela em falso.
Lizavéta Prokófievna refletiu um pouco; depois avançou para o príncipe, tomou-o
pela mão e o arrastou atrás de si escadas abaixo.
- Vamos. Imediatamente! Tem
de ser já, agora mesmo! - gritou, em um acesso de extraordinária excitação e
impaciência - Quem foi que o proibiu? - gritou Lizavéta Prokófievna,
violentamente.
- Agláia Ivánovna.
- Quando? Fale, homem!
- Mandou-me dizer, esta manhã, que não me atrevesse a ir vê-las outra vez.
Lizavéta Prokófievna ficou como que petrificada, mas se pôs a refletir.
- Mandou
como? Mandou quem? Pelo garoto? Um recado verbal? - perguntou mais uma
vez.
- Eu tenho o bilhete.
- Onde? Dê-me isso. Já!
Míchkin pensou um minuto: por fim tirou do bolso do colete um pedaço de papel
enxovalhado onde estava escrito:
Príncipe Liév Nikoláievitch! - Se, depois de tudo quanto aconteceu, conta
surpreender-me com a sua visita à nossa vila, saiba desde já que não me
encontrará
entre os que se comprazerão em vê-lo.
Agláia Epantchiná
Lizavéta Prokófievna refletiu um pouco; depois avançou para o príncipe, tomou-o
pela mão e o arrastou atrás de si escadas abaixo.
- Vamos. Imediatamente! Tem
de ser já, agora mesmo! - gritou, em um acesso de extraordinária excitação e
impaciência.
- Mas a senhora está me expondo a...
- A quê? Inocente! Palerma! Você nem parece homem! Ainda bem que vou ver
isso tudo eu mesma, com os meus olhos.
- Mas deixe ao menos que eu pegue o
meu chapéu...
- Pronto, está aqui o seu horroroso chapéu! Vamos! Não sabe nem escolher
as suas coisas com gosto!... Há! Então ela lhe escreveu isso... depois do que se
passou!? Birra, veneta: ou acesso?!... - murmurou Lizavéta Prokófievna,
arrastando o príncipe por ali fora e sem lhe soltar a mão - Ainda hoje o
defendeu lá em casa e disse alto que era um bobo em não vir ver-nos... Mas
justamente por isso ela não lhe devia ter escrito um bilhete tão insensato! Um
bilhete impróprio! Indigno de uma menina distinta, bem-educada e sensata!
Ah!... Já sei! Já sei!... Ela ficou ansiosa com o fato de você não aparecer lá em casa! Mas fez muito
mal em escrever nestes termos a um idiota, porque em lugar de entender o que
ela queria, você tomou a carta ao pé da letra, como uma proibição... Está
gostando de me ouvir, não é? Feche esses ouvidos! - gritou, toda inflamada, ao
perceber que falara demais - Ela precisa de alguém, como você... para se rir.
Desde muito que ela procura um fantoche, eis por que o chamou. E agora estou
satisfeita, satisfeitíssima... pois minha filha acabou achando um bufão!
Estou satisfeitíssima. É para o que você serve! E ela sabe como deve manobrá-lo. Oh, se sabe! E bem!...
continua página 291...
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Segunda Parte
O Idiota: Segunda Parte (12) - Às sete horas da noite
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Nota do Tradutor:
- A expressão “quebrar cadeiras” foi empregada por Gógol na peça
O
Inspetor-Geral. Um professor de História é censurado por se exaltar a ponto de
quebrar
cadeiras” quando fala de Alexandre o Grande. Assim, quando se quer exprimir
com
despropositado dispêndio de energia, emprega-se tal expressão.
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