segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (1c) - O príncipe

 O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte

1.

continuando...

     O príncipe instantaneamente notara, desde o começo, que Aleksándra não estava gostando da maneira um tanto jactanciosa. por que Evguénii Pávlovitch estava falando. Discorria ele sobre um assunto sério e parecia preso a isso, mas ao mesmo tempo se via que estava brincando.

- Estava eu sustentando, na hora mesmo em que o senhor chegou, príncipe - prosseguiu Evguénii Pávlovitch -, que os liberais sempre nos vieram de duas classes da sociedade: da classe dos antigos proprietários de terras, o que hoje é coisa de antanho, e de famílias clericais. E que como estas duas classes se foram transformando em castas, algo como coisa à parte da nação, e cada vez mais, assim, geração após geração; tudo quanto têm feito é absolutamente antinacional.
- O quê? Então tudo quanto tem sido feito é antinacional? - protestou o Príncipe Chtch...
- Antinacional. Conquanto seja russo, não é nacional. Entre nós, os liberais não são russos e os conservadores tampouco são russos quaisquer deles... E podem ficar certos de que a nação não aceitará nada do que tem sido feito pelos proprietários de terras e pelos estudantes eclesiásticos, nem agora, nem mais tarde.
- Bem, isso é demais! Como pode você manter tal paradoxo - se é que está falando sério!? Protesto contra tal interpretação disparatada sobre o proprietário de terras russo. Você mesmo é um latifundiário russo - objetou calorosamente o Príncipe Chtch... 
- Não estou falando do proprietário de terras russo no sentido em que você o está tomando. Essa é uma classe respeitabilíssima, e, não porque eu pertença a ela. Especialmente agora, desde que deixou de ser uma casta
- Então quer dizer que não tem havido nada de nacionalismo em literatura? - aparteou Aleksándra.
- Não sou nenhuma autoridade em literatura, mas até a literatura russa, na minha opinião, não é absolutamente russa, a não ser, talvez, Lomonóssov, Púchkin e Gógol. Esses são nacionais.
- Não está mal, como começo; e além disso, um desses foi camponês; os outros dois eram proprietários de terras - disse Adelaída, sorrindo. 
 - Justamente, mas não fique triunfante. Como, de todos os escritores russos, esses foram os únicos capazes de dizer algo de seu, algo não emprestado, eles, por tal fato, se tornaram nacionais. Qualquer russo que diga ou que escreva ou mesmo que faça algo seu, algo original, e não alheio, inevitavelmente se torna nacional, mesmo que não possa falar escorreitamente o russo. Eu encaro isso como um axioma. Mas, no começo, nós não estávamos falando de literatura. Falávamos dos socialistas, antes. Ora bem, continuo a sustentar que nós não temos um único socialista russo; não há nenhum, nem nunca houve, pois todos os nossos socialistas também são proprietários de terras ou estudantes canônicos. Todos os nossos conhecidos e declarados socialistas, tanto aqui como no estrangeiro, não são mais do que liberais da fidalguia agrária ou dos tempos dos donos de servos. Por que está rindo? Mostre-me os livros deles, mostre-me as teorias deles, as memórias deles. E muito embora eu não seja crítico literário, posso lhe escrever a crítica mais conveniente pela qual lhe mostrarei, tão claro como o dia, que cada página dos livros deles, panfletos ou reminiscências, foi escrita por proprietários de terras russos da velha escola. A raiva, a indignação, o talento, tudo é típico daquela classe, como se ainda se estivesse na fase pré-Fámussov. Seus arroubos, suas lágrimas, conquanto talvez reais e sinceras, são lágrimas de proprietários de terras e de estudantes de patrologia. A senhora está rindo, outra vez? E o senhor também, príncipe? Então não concordam ambos comigo?

     Estavam realmente todos rindo; e Míchkin também sorriu

- Não posso dizer, à queima-roupa, se concordo ou não - disse o príncipe, deixando logo de sorrir e ficando na atitude do colegial apanhado em falta -, mas eu lhe asseguro que o estou escutando com o maior prazer...

     Disse isso e quase que ficou sem ar, um suor frio a lhe escorrer pela testa. Estas eram as suas primeiras palavras, desde que estava ali, sentado; experimentou olhar para todo o grupo, mas não teve coragem; Evguénii Pávlovitch percebeu a atrapalhação dele e sorriu.

- Vou dizer-lhes uma coisa, senhores - prosseguiu ele no mesmo tom de antes, com extraordinária bonomia e vivacidade, mas ao mesmo tempo quase não podendo conter a vontade de rir, provavelmente de suas próprias palavras - uma coisa cuja descoberta e observação tenho a honra de adjudicar a mim mesmo somente; nada foi ainda dito ou escrito sobre ela, garanto. E essa coisa, ou melhor, esse fato exprime toda a essência do liberalismo russo de cuja espécie estou tratando. Em primeiro lugar, que é o liberalismo, falando de um modo geral, senão um ataque (se judicioso ou errôneo, já é outra questão) à ordem estabelecida de coisas? É assim, ou não? Ora bem, o meu fato é que o liberalismo russo não é um ataque contra a ordem existente das coisas, mas um ataque contra a essência mesma das coisas, das coisas em si, não meramente contra a ordem das coisas; não contra o regime russo, mas contra a própria Rússia, isto é, detesta e espanca a própria mãe. Todo e qualquer fato desastroso e infeliz na Rússia excita a sua gargalhada e quase o seu contentamento. Detesta hábitos nacionais, a história russa, tudo. Se alguma justificação há para ele é que não sabe o que está fazendo e toma esse ódio pela Rússia como sendo liberalismo da mais viçosa espécie. (Oh! muitas vezes, entre nós, se encontram liberais que são aplaudidos por todos e que no fundo são os mais absurdos, os mais estúpidos e mais perigosos conservadores e que não se dão conta disso, eles mesmos.) Este ódio pela Rússia chegou até, ultimamente, a ser tomado por alguns dos nossos liberais como um sincero amor por seu país. Proclamavam que sabiam melhor do que os outros como esse amor devia ser mostrado; agora, porém, se tornaram mais cândidos e se sentem envergonhados com aquela ideia de “amar alguém a sua pátria. Baniram a própria concepção dela, como trivial e perniciosa. Isto é um fato. Insisto sobre isto... e a verdade será dita mais cedo ou mais tarde, inteira, simples e francamente. Mas se trata de um fato que nunca foi ouvido e que nunca existiu em nenhum outro povo desde que o mundo começou, portanto se trata de um fenômeno acidental e não deverá ser permanente, cuido eu. Não pode haver em mais parte alguma um liberal que odeie o seu próprio país. Como poderemos explicar isso entre nós? Ora, pelo mesmo fato de antes, que o russo liberal até aqui não tem sido russo, nenhuma outra coisa mais explica isso, a meu pensar.
- Tomo tudo quanto você disse como brincadeira, Evguénii Pávlovitch - replicou o Príncipe Chtch... seriamente.
- Ainda não vi um liberal, portanto não me abalanço a julgar - disse Aleksándra. - Mas ouvi, indignada, as suas ideias; o senhor tomou um caso individual e através dele generalizou; logo, não foi senão injusto.
- Um caso individual? Ah! Essa era a palavra esperada! - esgrimiu Evguénii Pávlovitch - Príncipe, que pensa disso? Será que eu tomei um caso individual, ou não?
- Devo dizer, também eu, que pouco tenho estado com liberais, só tendo visto um ou outro - disse o príncipe - mas me parece que parcialmente o senhor tem razão e que essa espécie de liberalismo russo de que o senhor está falando realmente está disposta a odiar a Rússia, e não apenas as suas instituições. Naturalmente isso só é verídico em parte... Naturalmente que não é verídico no todo.

     E, confuso, parou. A despeito de sua excitação, estava grandemente interessado na conversação. Uma das mais impressionantes características do príncipe era a extraordinária ingenuidade de sua atenção, a forma com que se punha sempre a escutar o que o interessava e as respostas que dava quando alguém lhe fazia perguntas. O seu rosto, e mesmo a sua atitude, de modo suigeneris refletiam essa ingenuidade, essa boa-fé sem desconfiança de zombaria ou humor alheio. Mas, conquanto Evguénii Pávlovitch desde antes se comportasse para com ele com certa ironia, ao lhe ouvir agora essa resposta, ficou a olhá-lo gravemente como se não tivesse esperado isso dele.

- Mas... como o amigo é estranho! - disse ele. - O senhor realmente me respondeu falando sério, príncipe?
- Como assim, e o senhor não perguntou sério? - replicou Míchkin, surpreso. 

     Todos riram.

- Vá a gente confiar nele - disse Adelaída. - Evguénii Pavlovitch sempre quer troçar com alguém! Se vissem que histórias ele conta às vezes, com perfeita seriedade! 
- Acho que esta conversa está mais é cacete e que nem valia a pena ter começado - comentou Aleksándra, sem ninguém esperar - E a nossa ideia de darmos um passeio? 
- Então, vamos. Está uma noite admirável - exclamou Evguénii Pávlovitch - Mas para lhe mostrar que desta vez eu estava falando sério e, mais ainda, para mostrar ao príncipe isso, o que o senhor disse me interessou extremamente, príncipe, e lhe asseguro que não sou de modo algum um camarada pateta, como lhe devo ter parecido, embora, de certo modo, eu o seja, um tanto!, e se aqui as senhoras me permitem e os senhores também, farei ao príncipe uma última interrogação para satisfazer a minha própria curiosidade; depois do que, ponto final! Tal pergunta me ocorreu propriamente há duas horas. Vai ver, príncipe, como também, às vezes, penso em coisas sérias; à tal pergunta já eu respondi, mas vejamos como a responde o príncipe. Falou-se, ainda agora, sobre um “caso individual”. Tal frase aqui dita há pouco, é muito significativa; a todo passo a estamos ouvindo. Todo o mundo falou e comentou, ultimamente, um hediondo assassinato de seis pessoas. por um certo jovem, e o estranho discurso feito pelo conselho de defesa, no qual foi dito que considerando bem a pobreza do criminoso, devia ter sido natural para ele pensar em matar as pessoas. Não foram estas, propriamente, as palavras usadas, mas o sentido, penso eu, foi este, ou quase assim. A minha opinião privada é que o advogado que deu expressão a essa tão estranha ideia estava convicto de exprimir o sentimento mais liberal, mais humano e mais progressista que podia ser articulado em nossos dias. Ora, que fazer então disso? E esta corrupção de ideias e de convicções, a possibilidade de um ponto de vista assim deformado e extraordinário, um “caso individual”, ou um exemplo típico? 

O Idiota: Terceira Parte (1c) - O príncipe
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