sábado, 1 de fevereiro de 2025

Marcel Proust - No Caminho de Swann (IV - nomes de terras: o nome, Dentre os quartos - a)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann

ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust

nomes de terras: o nome

IV(a) 

     Dentre os quartos cuja imagem eu mais seguidamente evocava em minhas noites de insônia, nenhum se parecia menos com os quartos de Combray, polvilhados de uma atmosfera granulosa, polinizada, comestível e devota, do que o do Grande Hotel da Praia, em Balbec, cujas paredes esmaltadas continham, como as de uma piscina onde a água azuleja, um ar puro, azul e salino.[1] O tapeceiro bávaro encarregado do arranjo daquele hotel tinha variado a decoração das peças e, naquela que eu habitava, estendera ao longo de três paredes umas estantes baixas, com vidraças, nas quais, segundo o lugar que ocupavam, e por um efeito que ele não previra, vinha refletir-se tal ou tal parte do cenário mutável do mar, desenrolando assim um friso de claras marinhas, apenas interrompido pela armação de acaju. Tanto assim que toda a peça tinha o aspecto de um desses dormitórios modelos que se apresentam nas exposições de móveis modern style, ornados com obras de arte que se supõe alegrarão os olhos de quem ali dormir e cujos motivos são adequados ao local onde deve encontrar-se a habitação.
     Mas também nada se assemelhava menos ao Balbec real do que aquele com que eu tantas vezes sonhara, nos dias de tempestade, quando o vento era tão forte que Françoise, levando-me aos Campos Elísios, me recomendava não andasse muito perto das paredes para que não me caísse uma telha na cabeça e falava lamuriosamente dos grandes sinistros e naufrágios que vinham nos jornais. O meu maior desejo era ver uma tempestade no mar, não tanto como um belo espetáculo, mas como a revelação de um instante da verdadeira vida da natureza; ou antes, para mim só eram belos os espetáculos que eu sabia não terem sido artificialmente arranjados para me agradar, mas que eram necessários e imutáveis — a beleza das paisagens ou das grandes obras de arte. Apenas tinha curiosidade e avidez daquilo que julgava mais verdadeiro que o meu próprio ser, aquilo que tinha para mim o valor de me mostrar um pouco do pensamento de um grande gênio, ou da força ou graça da natureza, tal qual se manifesta quando entregue a si mesma sem intervenção humana. Assim como o lindo som de uma voz, isoladamente reproduzido pelo fonógrafo, não nos consolaria da perda de nossa mãe, uma tempestade mecanicamente imitada me deixaria tão indiferente como as fontes luminosas da Exposição.[2] Desejaria também, para que a tempestade fosse absolutamente verdadeira, que a própria costa fosse uma costa natural, e não um dique recentemente criado por alguma municipalidade. Aliás, a natureza, por todos os sentimentos que despertava em mim, me parecia o que havia de mais oposto às produções mecânicas dos homens. Quanto menos trazia a sua marca, mais espaço oferecia à expansão de minha alma. E sucedia que eu conservava o nome de Balbec, que nos citara Legrandin, como o de uma praia muito próxima daquelas “costas fúnebres, famosas por tantos naufrágios, envoltas durante seis meses do ano pela mortalha das brumas e a espuma das vagas”.[3]

“Ainda sentimos sob os pés”, dizia ele, “muito mais que no próprio Finisterra (e ainda mesmo que os hotéis ali se superponham agora, sem poder modificar a mais antiga ossatura da terra), ali sentimos o verdadeiro fim da terra francesa, europeia, da Terra antiga. E é o último acampamento de pescadores, semelhantes a todos os pescadores que viveram desde o começo do mundo, em face do reino eterno das névoas e das sombras”.

     Um dia, em Combray, quando eu falava diante do sr. Swann naquela praia de Balbec, a fim de saber dele se era o lugar mais adequado para assistir às tempestades mais violentas, ele respondeu: “Creio que conheço Balbec! A igreja de Balbec, dos séculos XII e XIII, ainda metade romana, é talvez a mais curiosa amostra do gótico normando, e tão singular… dir-se-ia arte persa”. E aqueles lugares que até então me haviam parecido natureza imemorial, ainda contemporânea dos grandes fenômenos geológicos — e tão fora da história humana como o Oceano ou a Ursa Maior, com aqueles selvagens pescadores, para quem, tanto como para as baleias, não existira Idade Média —, foi para mim um grande encanto vê-los entrar de súbito na série dos séculos, tendo conhecido a época romana, e saber que o trevo gótico viera nervurar aqueles rochedos selvagens na hora devida, como essas plantas franzinas mas vivazes que, ao chegar a primavera, quebram aqui e ali a neve polar. E se o gótico trazia àqueles lugares e àqueles homens certa fixação que lhes faltava eles também lhe conferiam outra em retorno. Eu procurava imaginar como tinham vivido aqueles pescadores, o tímido e insuspeitado ensaio de relações sociais que ali haviam tentado, durante a Idade Média, amontoados num ponto das costas do Inferno, ao pé dos penhascos da morte; e mais vivo me parecia o gótico, agora que, separado das cidades onde até então o imaginara, eu podia ver como, num caso particular, sobre selvagens rochedos, havia germinado e florescido num fino campanário. Levaram-me a ver reproduções das mais famosas estátuas de Balbec, os apóstolos de cabelo crespo e nariz curto, a Virgem do pórtico, e, de pura alegria, parava-me a respiração no peito quando eu pensava que poderia vê-los modelarem-se em relevo sobre o fundo da bruma eterna e salgada. Então, pelas noites tempestuosas e frescas de fevereiro, o vento — soprando em meu coração, a que não fazia estremecer menos que a lareira de meu quarto, o projeto de uma viagem a Balbec — mesclava em mim o desejo da arquitetura gótica como o de uma tempestade no mar.
     Desejaria tomar logo no dia seguinte o belo e generoso trem da uma e vinte e dois, cujo horário de partida eu não podia ler nos prospectos das companhias ferroviárias sem que o meu coração palpitasse: essa hora parecia abrir num ponto preciso da tarde uma saborosa incisão, um signo misterioso a partir do qual as horas desviadas, embora conduzissem à noite e à manhã seguintes, já não transcorreriam em Paris, mas sim numa das cidades por onde o trem passa e entre as quais ele nos permitia fazer uma escolha; pois parava em Bayeux, Coutances, Vitré, Questambert, Pontorson, Balbec, Lannion, Lamballe, Benodet, Pont-Aven, Quimperlé, e avançava magnificamente sobrecarregado de nomes que me oferecia e entre os quais eu não sabia qual escolher, na impossibilidade de sacrificar um só que fosse.[4] Mas, mesmo sem esperá-lo, poderia, vestindo-me às pressas, partir pelo noturno, se meus pais deixassem, e chegar a Balbec quando a madrugada se erguesse sobre o mar furioso, de cuja espuma arrebatada eu me iria refugiar na igreja de estilo persa. Mas a aproximação das férias da Páscoa, que meus pais me prometeram fazer passar uma vez no Norte da Itália, eis que a esses sonhos de tempestade, que inteiramente me haviam enchido a alma, só desejosa de não ver mais que vagas acorrendo de todos os pontos, cada vez mais alto, sobre a costa mais selvagem, perto de igrejas escarpadas e rugosas como rochedos, em cujas torres gritassem os pássaros marinhos, eis que de súbito, apagando-os, tirando-lhes todo encanto, excluindo-os porque lhe eram opostos e só poderiam enfraquecê-los, vinha substituí-los o sonho contrário da mais irisada primavera, não a primavera de Combray, ainda acremente picada de todas as agulhas da geada, mas aquela que já cobria de lírios e anêmonas os campos de Fiesola e ofuscava Florença com fundos de ouro como os de Fra Angelico.[5] Desde então, só me pareciam ter algum valor os raios de luz, os perfumes, as cores; pois a alternância das imagens produzira em mim uma mudança de face do desejo e — tão brusca como as que às vezes há em música — uma completa mudança de tom em minha sensibilidade. Depois acontecia que uma simples variação atmosférica rica bastasse para provocar em mim essa modulação sem que houvesse necessidade de aguardar o retorno de uma estação do ano. Pois muitas vezes encontramos perdido em uma delas um dia de outra estação, à qual nos transporta e cujos prazeres particulares nos evoca e faz desejar, e nos vem interromper os sonhos que formávamos, colocando, aquém ou além do seu lugar, no calendário interpolado da Felicidade, essa folha arrancada de um outro capítulo. Mas em breve, como esses fenômenos naturais de que só podemos tirar um proveito acidental e assaz minguado para a nossa saúde ou conforto até o dia em que a ciência deles se apodera e, produzindo-os à vontade, coloca em nossas mãos a possibilidade do seu aparecimento, enfim subtraído à tutela e capricho do acaso, assim a produção daqueles sonhos de Atlântico e de Itália deixou de estar unicamente submetida às mudanças das estações e do tempo. Para fazê-los renascer, bastava-me pronunciar estes nomes: Balbec, Veneza, Florença, no interior dos quais acabara por se acumular o desejo que me haviam inspirado os lugares que eles designavam. Mesmo na primavera, encontrar nalgum livro o nome de Balbec era o suficiente para me despertar o desejo das tempestades e do gótico normando; mesmo num dia de tempestade, o nome de Florença ou de Veneza me dava o desejo do sol, dos lírios, do palácio dos Doges e de Santa Maria das Flores.
     Mas se esses nomes absorveram para sempre a imagem que eu formava dessas cidades, assim o fizeram transformando-as e submetendo às suas próprias leis o seu reaparecimento em mim; tiveram por consequência tornar essa imagem mais bela, mas também mais diferente daquilo que as cidades da Normandia e da Toscana podiam ser na realidade, e agravar a futura decepção de minhas viagens com o incremento que davam às alegrias arbitrárias de minha imaginação. Exalçavam a ideia que eu fazia de certos lugares da Terra, tornando-os mais particulares e por conseguinte mais reais. Não imaginava então as cidades, as paisagens, os monumentos, como quadros mais ou menos agradáveis, recortados aqui e ali numa mesma matéria, mas cada um deles como um desconhecido, essencialmente diferente dos outros, por que minha alma ansiava e que lhe seria proveitoso conhecer. E quanto não adquiriam de mais individual ainda, por serem designados por nomes, nomes que eram só para eles, nomes como os têm as pessoas! O que as palavras nos apresentam das coisas é uma imagem clara e usual como essas que se dependuram nas paredes das escolas para dar às crianças o exemplo do que é um banco, um pássaro, um formigueiro, coisas tidas como semelhantes a todas as do mesmo gênero. Mas os nomes apresentam das pessoas — e das cidades que nos habituam a julgar individuais e únicas como pessoas — uma imagem confusa que extrai deles, da sua sonoridade deslumbrante ou sombria, a cor com que vem uniformemente pintada, como nesses cartazes, inteiramente azuis ou inteiramente vermelhos, em que, devido aos limites do processo empregado ou a um capricho do cenógrafo, são azuis ou vermelhos, não somente o céu e o mar, mas os barcos, a igreja, os transeuntes. Como o nome de Parma, uma das cidades aonde eu mais desejava ir desde que lera La Chartreuse, me aparecia compacto, liso, malva e suave, quando me falavam de uma casa qualquer de Parma onde eu seria hospedado, davam-me o prazer de pensar que habitaria uma casa lisa, compacta, malva e suave, que nada tinha de comum com as moradias de nenhuma cidade da Itália, pois a imaginava somente com o auxílio dessa pesada sílaba do nome de Parma, onde não circula nenhum ar, e de tudo o que eu lhe fizera absorver de doçura stendhaliana e do reflexo das violetas. E quando pensava em Florença, era como numa cidade miraculosamente perfumada e semelhante a uma corola, porque se chamava a cidade dos lírios, e sua catedral, Santa Maria das Flores. Quanto a Balbec, era um desses nomes em que ainda se viam pintar, como sobre uma velha cerâmica normanda que conserva a cor da terra de que foi tirada, a representação de algum costume abolido, algum direito feudal, o antigo aspecto de um lugar, uma pronúncia obsoleta, causada por suas sílabas heteróclitas e que eu não duvidava encontrar até no estalajadeiro que me serviria café com leite à minha chegada e me levaria a ver o mar encapelado à frente da igreja e a quem eu emprestava o aspecto disputador, solene e medieval de uma personagem de fabliau.
     Se minha saúde se firmasse e meus pais me permitissem, se não uma estada em Balbec, ao menos, a fim de conhecer a arquitetura e as paisagens da Normandia ou da Bretanha, que tomasse uma vez aquele trem da uma e vinte e dois, no qual tantas vezes já embarcara em imaginação, eu desejaria de preferência parar nas cidades mais belas; mas, por mais que as comparasse, como escolher, tal como entre indivíduos que nos é impossível trocar um por outro, como escolher entre Bayeux, tão alta nas suas nobres rendas de tom vermelho e cujo cimo era iluminado pelo ouro velho da sua última sílaba; Vitré, cujo acento agudo losangava de madeira negra a antiga vidraria; a suave Lamballe, que, no seu branco, vai do amarelo casca de ovo ao gris-pérola; Coutances, catedral normanda, a que o ditongo final, gorduroso e amarelo, coroava de uma torre de manteiga; Lannion, com o rumor, em seu silêncio aldeão, do coche seguido pela mosca; Questambert, Pontorson, risíveis e ingênuas, penas brancas e bicos amarelos espalhados pela estrada daqueles lugares fluviais e poéticos; Benodet, nome quase sem amarras, que o rio parece querer arrastar para o meio de suas algas; Pont-Aven, voo branco e róseo da asa de uma leve touca que tremulamente se reflete numa água esverdinhada de canal; Quimperlé, este mais preso, e desde a Idade Média, entre os arroios com que murmura e se emperla numa grisalha igual à que desenham, através das teias de aranha de um vitral, os raios de sol transformados em desgastadas pontas de prata brunida?
     Essas imagens eram falsas ainda por outro motivo; é que eram forçosamente muito simplificadas; sem dúvida, aquilo a que minha imaginação aspirava e que meus sentidos só percebiam no presente de modo incompleto e sem prazer nenhum, eu o havia encerrado no refúgio dos nomes; e como eu ali acumulara sonho, esses nomes imantavam agora os meus desejos; mas os nomes não são muito vastos; quando muito, podia introduzir neles duas ou três das “curiosidades” principais da cidade, onde elas se justapunham sem nada de permeio; no nome de Balbec, como no vidro de aumento das canetas que a gente compra de lembrança nas praias, eu percebia vagas alvorotadas em torno de uma igreja de estilo persa. Pode ser até que a simplificação dessas imagens fosse uma das causas do domínio que tomaram sobre mim. Quando meu pai resolveu, um ano, que fôssemos passar as férias da Páscoa em Florença e em Veneza, não tendo como fazer entrar no nome de Florença os elementos que habitualmente compõem as cidades, fui obrigado a tirar uma cidade sobrenatural da fecundação, por certos aromas primaveris, do que eu supunha constituir, em essência, o gênio de Giotto. Em suma — e visto que não se pode fazer com que caiba em um nome muito mais duração que espaço —, como em certos quadros de Giotto que apresentam em dois momentos diversos da ação uma mesma personagem, aqui deitada no leito, ali preparando-se para montar a cavalo, o nome de Florença achava-se dividido em dois compartimentos. Num deles, sob um dossel arquitetônico, eu contemplava um afresco a que estava parcialmente superposta uma faixa de sol matinal, poeirenta, oblíqua e progressiva; no outro (pois não considerando os nomes como um ideal inacessível e sim como uma ambiência real em que iria mergulhar, a vida ainda não vivida, a vida intata e pura que eu neles encerrava dava aos prazeres mais materiais, às cenas mais simples, essa atração que têm nas obras dos primitivos) atravessava eu rapidamente — para acorrer mais depressa ao almoço que me esperava com frutas e vinho de Chianti, a Ponte Vecchio entulhada de junquilhos, narcisos e anêmonas. Era isso (embora me achasse em Paris) o que eu via, e não o que estava em redor de mim. Mesmo sob um simples ponto de vista realista, as terras que desejamos ocupam a cada momento muito mais espaço em nossa vida verdadeira do que a terra onde efetivamente nos achamos. Se eu mesmo tivesse prestado mais atenção, naquela época, ao que havia em meu pensamento quando pronunciava as palavras “ir a Florença, a Parma, a Pisa, a Veneza”, por certo me daria conta de que aquilo que eu via não era absolutamente uma cidade, mas alguma coisa de tão diferente de tudo quanto conhecia, de tão delicioso, como o poderia ser para uma humanidade cuja vida sempre houvesse decorrido em fins de tardes de inverno esta maravilha desconhecida: uma manhã de primavera. Aquelas imagens irreais, fixas, sempre iguais, enchendo-me as noites e os dias, diferenciaram aquela época de minha vida das que a precederam (e que poderiam confundir-se com ela aos olhos de um observador que só vê as coisas de fora, isto é, que não vê nada), como um motivo melódico introduz numa ópera uma novidade que a gente não poderia suspeitar se se limitasse a ler o libreto, e menos ainda se ficasse fora do teatro a contar os quartos de hora que passavam. E ainda, mesmo do ponto de vista puramente quantitativo, em nossa vida os dias não são iguais. Para percorrer os dias, as naturezas um pouco nervosas, como era a minha, dispõem, como os automóveis, de “velocidades” diferentes. Há dias montuosos e difíceis, que se leva um tempo infinito a subir, e dias em declive, que se deixam descer num ímpeto, cantando. Durante aquele mês — em que eu repassava como uma melodia, sem poder saciar-me, aquelas imagens de Florença, de Veneza e de Pisa, e em que o desejo que despertavam em mim tinha alguma coisa de tão profundamente individual como se se tratasse de um amor, um amor por uma pessoa — não deixei de acreditar que correspondiam a uma realidade independente de mim, e deram-me a conhecer uma esperança tão bela como a que poderia alimentar um cristão dos primeiros tempos na véspera de entrar no paraíso. Assim, sem me importar com a contradição que havia em querer olhar e tocar, com os órgãos dos sentidos, o que fora elaborado pelo sonho e não percebido por eles — e tanto mais tentador para os sentidos por ser diferente de tudo o que eles conheciam —, era isso mesmo que me lembrava a realidade daquelas imagens e que mais me inflamava o desejo, porque era como uma promessa que seria cumprida. E embora a minha exaltação tivesse por motivo um desejo de gozo artístico, os guias o alimentavam ainda mais que os livros de estética e, mais que os guias, os indicadores das estradas de ferro. O que me comovia era pensar que aquela Florença que eu via próxima mas inacessível, em minha imaginação, se o trajeto que a separava de mim, em mim mesmo, não era viável, eu poderia atingi-la por um atalho, por um desvio, tomando o “caminho de terra”. Por certo, quando me repetia, dando assim tanto valor ao que ia ver, que Veneza era “a escola de Giorgione, a morada de Ticiano, o mais completo museu de arquitetura doméstica da Idade Média”,[6] sentia-me feliz. Era-o no entanto ainda mais quando, saindo para uma caminhada, e andando depressa por causa do tempo que, depois de alguns dias de primavera, se tornara de novo um tempo de inverno (como o que encontrávamos habitualmente em Combray na Semana Santa) — ao ver nos bulevares os castanheiros que, mergulhados num ar glacial e líquido como água, nem por isso deixavam, convidados pontuais, já preparados, a quem nada desanima, de ir arredondando e cinzelando em seus blocos congelados a irresistível verdura cujo progressivo ímpeto o poder abortivo do frio contrariava mas não conseguia refrear —, eu pensava que já a Ponte Vecchio estava juncada de jacintos e anêmonas e que o sol da primavera já tingia as ondas do Grande Canal de um azul tão sombrio e tão nobres esmeraldas que, vindo quebrar-se ao pé das pinturas de Ticiano, podiam com elas rivalizar em riqueza de colorido. Não mais pude conter a alegria quando meu pai, consultando o barômetro e deplorando o frio, começou a procurar quais seriam os melhores trens, e quando compreendi que, penetrando após o almoço no laboratório fumoso, na sala mágica que se encarregava de operar a transmutação em redor de si, poderia a gente acordar no dia seguinte na cidade de mármore e ouro “recamada de jaspe e calçada de esmeraldas”.[7] Assim, ela e a cidade dos lírios não eram apenas quadros fictícios que a gente pusesse à vontade diante da imaginação, mas existiam a certa distância de Paris que urgia absolutamente franquear se quiséssemos vê-las, em certo lugar determinado da terra, e em nenhum outro, numa palavra, eram bem reais. E ainda mais reais se tornaram para mim quando meu pai, ao dizer-nos: “Em suma, podem ficar em Veneza de 20 a 29 de abril e chegar a Florença na manhã de Páscoa”, fê-las sair a ambas, não só do Espaço abstrato, mas desse tempo imaginário onde situamos não uma única viagem de cada vez, mas outras, simultâneas e sem grande emoção, por serem apenas possíveis — esse Tempo que tão bem se refabrica que o podemos passar numa cidade depois de o ter passado em outra — e consagrou a elas esses dias particulares que são o significado de autenticidade dos objetos nos quais os empregamos, pois esses dias únicos se gastam com o uso, já não podemos vivê-los aqui depois de os ter vivido acolá; senti que era para a semana a iniciar-se na segunda em que a lavadeira devia trazer o colete branco que eu manchara de tinta, que se dirigiam, a fim de ali se absorverem, ao sair do tempo ideal onde ainda não existiam, aquelas duas Cidades Rainhas cujos domos e torres eu ia inscrever, na mais emocionante das geometrias, dentro do plano da minha própria vida. Mas ainda me achava a caminho do auge da alegria; atingi-o afinal (pois só nesse momento tive a revelação de que, pelas ruas marulhosas, avermelhadas pelo reflexo dos afrescos de Giorgione, não eram, como eu continuara a imaginar apesar de tantas advertências, os homens majestosos e terríveis como o mar, trazendo, sob as dobras do manto sangrento, a sua armadura de reflexos de bronze” que passeariam em Veneza na semana próxima, às vésperas da Páscoa, mas de que poderia ser eu a minúscula personagem que, numa grande reprodução de São Marcos que me haviam emprestado, o ilustrador representara de chapéu-coco, diante dos pórticos), quando ouvi meu pai dizer-me: “Ainda deve fazer frio no Grande Canal; farias bem em pôr na mala, para o que der e vier, o teu sobretudo e o teu casaco grosso”. A estas palavras, elevei-me a uma espécie de êxtase; e, o que até então julgara impossível, senti que verdadeiramente penetrava entre aqueles “rochedos de ametista semelhantes a um recife do mar das Índias”; numa ginástica suprema e acima de minhas forças, despindo-me, como de uma carapaça sem utilidade, do ar de meu quarto que me cercava, substituí-o por partes iguais de ar veneziano, aquela atmosfera marinha, indizível e particular como a dos sonhos que minha imaginação encerrara no nome de Veneza; senti operar-se em mim uma miraculosa desencarnação; veio juntar-se-lhe em seguida essa vaga ânsia de vômito que se sente ao apanhar uma forte dor de garganta, e tiveram de meter-me no leito com uma febre tão tenaz, que o doutor declarou que era preciso renunciar, não só a deixar-me partir agora para Florença e Veneza, mas, mesmo quando estivesse inteiramente restabelecido, evitar-me, pelo menos durante um ano, qualquer projeto de viagem e qualquer causa de agitação.
 
continua na página 255...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (IV - nomes de terras: o nome, Dentre os quartos - a)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] A menção à futura viagem à praia de Balbec, presente nos diálogos do pai do herói com Legrandin em “Combray”, aparece aqui sob a forma da antecipação do quarto que muito mais tarde o herói encontrará naquele hotel. [n. e.]
[2] Referência às fontes instaladas no Campo de Marte por Bechmann para a Exposição Universal de Paris, no ano de 1889. [n. e.]
[3] Citação quase literal das palavras de Legrandin, retomando uma referência do livro Pierre Nozière, de Anatole France, e do livro Souvenirs d’enfance et de jeunesse, de Renan. [n. e.]
[4] A enumeração de nomes de cidades da região da Normandia e da Bretanha contém o nome “Balbec”, cidade fictícia a que o herói vai ainda duas vezes. Além disso, nenhuma linha de trem conseguiria passar pela sequência de todas as cidades enumeradas. [n. e.] 
[5] Guido di Fra Angelico (1400?-55), célebre por seus “fundos de ouro”, decorou o convento de San Marco, em Florença. [n. e.] 
[6] Citação quase literal de passagens dos livros Modern painters e Stones of Venice, do crítico inglês John Ruskin. Este último, traduzido para o francês por Mathilde Crémieux, recebeu resenha feita por Proust. [n. e.]
[7] Novo empréstimo a Ruskin, em Stones of Venice. A passagem está semeada de referências à obra daquele que mobilizou grande parte do interesse artístico de Proust sobre arquitetura e pintura e de quem ele traduziu e publicou duas obras em parceria com sua mãe e com sua amiga Marie Nordingler. [n. e.]

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