quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (2a) - De repente Míchkin se aproximou

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte
2.

     De repente Míchkin se aproximou de Evguénii Pávlovitch.

- Evguénii Pávlovitch disse ele, com estranha vivacidade, apertando-lhe a mão -, creia que eu o considero como o melhor e o mais honrado dos homens, apesar de tudo. Pode ficar certo disso!...

     Evguénii Pávlovitch recuou um passo, surpreendido. Teve de lutar, um momento, com uma irresistível vontade de rir. Mas, reparando melhor, notou que o príncipe parecia outro, ou, no mínimo, estava em um estado de espírito todo especial.

- Não tenciono apostar, príncipe - disse ele -, que o senhor não quisesse dizer o que disse e nem tampouco deixar de falar comigo, absolutamente. Mas de que é que se trata? Não está se dando bem, aqui?
- Talvez, talvez. E o senhor foi muito hábil em perceber que talvez não fosse ao senhor que eu quisesse me dirigir. - disse isso com um sorriso estranho e até mesmo absurdo; mas logo, como que repentinamente excitado, ajuntou: - Não me queira relembrar a minha conduta de há três dias atrás. Só eu sei quanto vivi envergonhado estes três últimos dias... Sei que fui culpado!...
- Mas que foi que o senhor fez assim de tão terrível?
- Vejo que está mais sentido comigo do que qualquer outra pessoa, Evguénii Pávlovitch. Está até corando; isso é sinal de bom coração. Vou-me embora, dentro em breve, pode ficar certo disso.
- Que foi que lhe aconteceu? Porventura irá ter um ataque? - perguntou Lizavéta Prokófievna a Kólia, muito espantada.
- Não se assuste, Lizavéta Prokófievna. Não estou com um ataque. O que há é que estou resolvido a sumir. Eu sei que sou um desfavorecido da natureza. Estive doente durante vinte e quatro anos, desde o meu nascimento até completar vinte e quatro anos. Deve tomar tudo quanto eu digo agora, como coisa de um homem doente. Vou-me embora, imediatamente, imediatamente. Pode ficar certa disso. Não me sinto envergonhado, não, pois seria estranho que eu estivesse envergonhado disto, não seria? Mas estou deslocado na sociedade... Falo, não por vaidade ferida! ... Estive a refletir durante estes três dias e achei cá comigo que lhe devia explicar certas coisas sinceramente e de modo bem digno para com a senhora, na primeira oportunidade que eu tivesse. Há ideias, grandes ideias, sobre as quais eu não devo começar a falar, porque na certa faria todo o mundo rir, O Príncipe Chtch... ainda agora me avisou sobre tal coisa. Minha atitude não é conveniente. Não tenho nenhum senso de proporção. Minhas palavras são incoerentes, não se enquadrando no assunto; e isso é uma degradação para tais ideias. Portanto, não tenho nenhum direito!... Além disso, sou sensível morbidamente... Estou mais do que certo de que ninguém, aqui nesta casa, feriria meus sentimentos e que sou mais querido aqui do que mereço. Mas eu sei (e sei ao certo) que vinte anos de doença devem deixar traços, e que por conseguinte é impossível a qualquer pessoa deixar de rir de mim... as vezes. Não é assim, não é mesmo? - e ficou como que à espera de uma resposta, olhando à sua volta. 

     Todos se detiveram, em uma difícil perplexidade, ante esta explosão inesperada, mórbida e, em todo o caso, aparentemente sem causa. Mas esta explosão acabou por produzir um estranho episódio.

- Mas por que está dizendo isto aqui?! - exclamou Agláia, de repente. - Por que está dizendo isso a eles? A eles? A eles? - parecia irritada até ao ápice de indignação. Seus olhos faiscavam. O príncipe ficou a olhá-la, mudo, atarantado, cada vez mais lívido. - Não há aqui ninguém que mereça tais palavras - rompeu Agláia - Não há aqui ninguém, ninguém que valha o seu dedo mínimo, nem o seu espírito, nem o seu coração! É mais honrado do que qualquer deles, mais nobre, melhor, mais bondoso, mais inteligente do que qualquer deles! Alguns nem mereceriam se abaixar para levantar o lenço que o senhor deixasse cair!... Por que humilhar se, pôr-se abaixo deles? Por que há de falsear tudo que é seu? Por que é que não tem orgulho?  
- Deus nos acuda! Quem esperaria uma coisa destas? - gritou Lizavéta Prokófievna.
- Salve, “pobre cavaleiro”! - gritou Kólia, entusiasmado. 
- Cale a boca!... Como ousam eles insultar-me em sua casa? - disse Agláia, correndo para perto de sua mãe e a ela se dirigindo, sem que ninguém esperasse. Estava agora naquele estado histérico em que não há mais diferenciação nem conveniência a respeitar.- Por que é que todos me torturam todos, todos? Por que estiveram me importunando estes três últimos dias, por sua causa, príncipe? Nada me induziria a casar-me com o senhor! Consinta que lhe diga que jamais o faria, sob consideração de espécie alguma. Mas compreenda bem! Então pode lá alguém casar com uma criatura como o senhor? Mire-se em um espelho, veja com o que se parece aí, parado! Por que me martirizam e não param de dizer que me hei de casar com o senhor? O senhor deve saber. O senhor está dentro do conluio, com eles, também!  
- Mas nunca ninguém te martirizou a tal respeito! - murmurou Adelaída assombrada. 

     E Aleksándra, por sua vez, disse: 

- Mas nunca ninguém pensou em tal coisa! Nunca se disse uma palavra quanto a isso! Quem a andou atormentando? Quando foi atormentada? Quem podia ter dito tal coisa? Não estará ela delirando? - e a generala se dirigiu para a sala, trêmula de raiva.   
- Todo o mundo anda falando, todo o mundo, nestes três últimos dias! Não quero me casar com ele, absolutamente, jamais! - e ao gritar assim, rompeu em pranto, e escondendo o rosto no lenço, caiu sobre uma cadeira. 
- Mas nem ele próprio...

     E inesperadamente o príncipe titubeou: 

- Mas eu não vos pedi... Agláia Ivánovna!
- O... quê? - aparteou Lizavéta Prokófievna indignada, toda espanto e horror. - Que é isso? - e não podia dar crédito aos seus ouvidos. 
- Quero dizer que... quero dizer que... - gaguejou o príncipe. - Eu apenas quis explicar a Agláia Ivánovna... isto é, só quis ter a honra de aclarar bem que não tive a intenção.., a honra de pedir a mão dela... em tempo algum. A culpa não é minha, a culpa não éminha, com efeito, Agláia Ivánovna. Eu nunca desejei, nunca isso me entrou na cabeça. E nunca hei de querer, vós mesma vereis isso por vós. Podeis ficar certa. Alguma pessoa por vingança me deve ter caluniado. Por que estardes aborrecida?

     E dizendo isso, se aproximou de Agláia. Afastando o lenço com que cobria o rosto, Agláia olhou de esguelha para aquele rosto aparvalhado, entendeu bem a significação do que ele dizia e caiu repentinamente em um acesso de riso. Mas um riso tão alegre, tão irresistível, tão engraçado e tão gostoso que Adelaída não se pôde conter, principalmente quando olhou também para o príncipe. Atirou-se para a irmã, abraçou-a e rompeu no mesmo riso de meninas de escola, um riso que era um prazer. Olhando-as, o príncipe também se pôs a rir, repetindo várias vezes, com uma expressão de júbilo e de felicidade:

- Isso! Assim! Muito bem! Muito bem! Deus seja louvado!

     Aleksándra também se juntou a eles, rindo de todo o coração. Parecia que as três não parariam mais de tanto rir. - Coisas mesmo de loucos! - sentenciou Lizavéta Prokófievna. - Primeiro assustam a gente, depois então...

     Agora dera o Príncipe Chtch... em rir também, o mesmo fazendo Evguénii Pávlovitch. Kólia, esse então ria sem parar. o mesmo se dando com Míchkin, que olhava para todos eles.

- Vamos dar um passeio, vamos dar um passeio! - exclamou Adelaída. - Nós todas, e o príncipe vem conosco. Por que há de ir embora, excelente amigo? Ele não é formidável.,Agláia? Não é. mamãe? Vou até lhe dar um beijo e abraçá-lo, por causa da explicação que deu ainda agora a Agláia. Mamãe, deixas-me dar um beijo nele? Agláia, deixas que eu dê um beijo no teu príncipe? - ia dizendo a estouvada rapariga.

     E imediatamente saltou para o príncipe e o beijou na testa. Ele lhe agarrou as mãos, apertando-as com tanta força que ela quase gritou. Olhou-a com infinito contentamento e apressadamente lhe puxou a mão que três vezes beijou.

- Vamos! - chamava Agláia. - Príncipe, escolte-me! Deixa, mamãe, apesar dele me ter recusado? O senhor me recusou foi por bem, não é, príncipe? Mas não é assim que se oferece o braço a uma dama. Não sabe como é que se dá o braço a uma dama? Assim, sim. Vamos; nós é que abriremos o caminho. Não quer que nós dois sigamos na frente, téte-à-téte? - não parava de falar, sempre rindo, espasmodicamente. 
- Louvado Deus! Louvado Deus! - repetia Lizavéta Prokófievna, embora não soubesse com o que se estava alegrando tanto.
“Que gente extraordinariamente engraçada!” - pensava o Príncipe Chtch..., talvez pela centésima vez desde que os conhecia; mas gostava dessa gente engraçada. Quanto a Míchkin, não se sentia lá muito atraído por ele. E ao saírem, o príncipe parecia meio sem jeito e, por certo, um tanto preocupado. Quanto a Evguénii Pávlovitch, esse estava no mais franco bom-humor. Em todo o caminho para a estação da estrada de ferro brincava com Adelaída e Aleksándra que riam de suas graças com tão acentuada presteza que logo desconfiou que elas não estavam mais era ouvindo o que ele dizia. E ao pensar nisso, rompeu de repente em uma risada franca, cujo motivo não houve meio de elas compreenderem. Esse modo divertido era característico do homem que ele era. Conquanto as duas irmãs continuassem de disposição hilariante, não deixavam de olhar para Agláia e Míchkin que seguiam na frente. Evidente era que a conduta da irmã mais moça constituía um completo enigma.

     O Príncipe Chtch... tentava conversar sobre outros assuntos com Lizavéta Prokófievna, com a intenção, decerto, de lhe distrair o espírito, só conseguindo amolá-la terrivelmente. Parecia estar ofuscada, respondia ao acaso, e às vezes nem mesmo isso. Mas esse não seria o fim dos enigmas de Agláia, aquela noite. O último coube como quinhão ao príncipe, sozinho. Quando se tinham distanciado cerca de uns cem passos da casa, Agláia disse, quase ciciando, de tão baixo, ao seu obstinadamente mudo cavalheiro: 

- Olhe ali, à direita.

     O príncipe olhou. 

- Mas olhe com mais atenção. Está vendo ali no parque, aquele banco lá onde estão aquelas três grandes árvores?... Um banco verde? Míchkin respondeu que estava vendo. - Gosta do lugar? Muitas vezes vou me sentar lá, sozinha, às sete horas da manhã, quando todo o mundo está dormindo. - o príncipe sussurrou que o local era encantador. - E agora pode me deixar. Não quero mais continuar andando de braço dado. Ou melhor, pode continuar de braço comigo, mas não me dirija a palavra, uma só vez que seja. Quero ir pensando só.  

     Tal aviso era desnecessário, porém. O príncipe não teria proferido, em caso algum, uma só palavra, pois o seu coração começara a palpitar violentamente desde que ela lhe mostrara o banco lá no parque. Depois de um minuto de atarantamento, enxotou, com vergonha, certa ideia inconcebível.
     É um fato mais do que sabido já por todo o mundo que o público que se ajunta em volta do coreto de música de Pávlovsk é mais “seleto” nos dias de semana do que nos domingos e feriados ou dias santos, em que “toda espécie de gente” acorre para lá, vinda da cidade. E a moda é juntarem-se perto do coreto de música no Vauxhall. A orquestra é a melhor das nossas bandas de parques e quase sempre toca peças novas. Há muito decoro e decência de comportamento nos jardins, embora haja um ar de simplicidade e de convívio. Esses veranistas reúnem-se ali com o fim de encontrar conhecidos. Muitos o fazem com real prazer e frequentam os jardins só com esse fim. Outros há que vão apenas por causa da música. Cenas desagradáveis são ali muito raras, embora possam ocorrer ocasionalmente, até mesmo em dias de semana. O que, aliás, é inevitável. Estava uma noite propícia e havia muita gente no jardim. Todos os lugares perto da orquestra estavam tomados. O nosso grupo sentou-se nas cadeiras um pouco mais ao lado, perto da saída, à esquerda do edifício.
      Todo aquele povo e mais a música reavivavam um pouco Lizavéta Prokófievna e divertiam as moças. Já tinham trocado olhares com alguns veranistas e acenado afavelmente para vários conhecidos, examinado vestidos, notado os que lhes pareciam excêntricos, discutindo-os com sorrisos sarcásticos. Evguénii Pávlovitch também, a cada instante, se curvava, saudando pessoas de suas relações. Agláia e Míchkin, sempre juntos, já estavam começando a atrair atenções. E logo vários rapazes vieram ter com as moças e a generala, uns dois ou três ficando a conversar com elas. Eram amigos de Evguénii Pávlovitch. Entre eles estava um belo e jovem oficial, de muito bom-humor e que conversava muito. Apressou-se em se dirigir a Agláia e fazia o possível para despertar a atenção dela. Ela se portou muito graciosamente, e com desembaraço, perante ele, Evguénii Pávlovitch pediu licença ao príncipe para apresentar-lhe esse seu amigo.
     Míchkin a custo compreendeu o que queriam dele, mas a apresentação foi feita, tendo ambos se inclinado e apertado as mãos. O amigo de Evguénii Pávlovitch fez logo uma pergunta ao príncipe que, ou não respondeu, ou gaguejou qualquer coisa de modo tão estranho que o oficial ficou a olhar para ele um pouco, depois para Evguénii Pávlovitch, de soslaio, compreendendo logo por que fora feita a apresentação; sorriu, altivamente, e se voltou de novo para Agláia. O único a notar que Agláia havia enrubescido, foi Evguénii Pávlovitch.
     O príncipe nem sequer observou que outras pessoas estavam conversando e prestando atenção em Agláia. Achava-se talvez inconsciente ou, pelo menos, durante momentos e momentos esteve ali como se não estivesse sentado ao lado dela. Agora, por exemplo, aspirava estar muito longe, poder desaparecer dali completamente.
     É indubitável que se sentiria bem melhor em um lugar ermo e triste onde pudesse ficar sozinho com os seus pensamentos, sem que ninguém soubesse do seu paradeiro. Ou, no mínimo, estar em casa, na varanda, sem mais ninguém, acolá, sem Liébediev e nem os filhos dele; estirado no sofá, com a cabeça enterrada no travesseiro e assim permanecer um dia, uma noite e mais outro dia. Pensava e sonhava com as montanhas e, de modo muito particular, com um sítio em que sempre gostava de pensar, um sítio onde sempre gostara de ir e donde costumava contemplar a aldeia lá embaixo; a cascata brilhando como um filete branco, a cair; as nuvens brancas, e aquele castelo em ruínas. Oh, que saudades! Por que não estava agora lá. sem pensar em nada? Oh! A não pensar em coisa alguma, pelo resto da vida! E então mil anos não seriam demasiado longos! E ser completamente esquecido aqui! Oh! Sim, completamente. Teria sido bem melhor, com efeito, que o não tivessem conhecido, e que tudo não passasse de um sonho. Pois não dava justamente ao mesmo, sonho ou realidade? De vez em quando olhava para Agláia, e por cinco minutos não retirou o olhar de cima do seu rosto.
 
O Idiota: Terceira Parte (2a) - De repente Míchkin se aproximou
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